Acredite nos que buscam a verdade... Duvide dos que encontraram! (A.Gide)

27 junho 2010

A CORUJA E O CHOPIM (uma historinha de 1990, ou então: "algumas coisinhas que eu já tinha aprendido 20 anos atrás"...)


NOTA NÃO SEM IMPORTÂNCIA: Ser chopim é um papel social específico entre os bichos. Por um acaso, os chopins de penas tem estas de cor preta - mas existe uma infinidade de pássaros de penas pretas que não são chopins. Por outro lado, entre os chopins sem penas, as cores são as mais variadas; nunca notei nenhuma relação significativa entre o comportamento chopinesco e algum tipo de cor em particular.
Era uma vez uma corujinha um tanto inconformada com a vocação ou fama das corujas. Estava farta dessa história de serem procuradas pelos outros bichos quando tinham dúvidas a esclarecer, problemas a resolver, e em seguida serem deixadas de lado. Sozinhas.
 
– Os bichos parecem ter medo de nós... Nem desconfiam que a gente às vezes também gosta de companhia, de diversão, de falar bobagem como todo mundo. E que sentimos falta de... carinho! E que falta!
 
De fato, as corujas suas colegas, na maior parte, não conseguiam desvestir uma certa solenidade, entregar-se relaxadamente a um carinho – nem mesmo ao terminar um brilhante discurso em favor da descontração e do carinho. Tinham chegado teoricamente à conclusão de sua importância, mas não sabiam como começar. Iriam sentir-se ridículas.
 
– Isso é um círculo vicioso! Vou é procurar a companhia de outros pássaros. Tico-ticos são tão alegres, que me importa se têm cérebro de tico-tico! E os sabiás, como cantam! E como se divertem os chopins!
 
A bem da verdade, devemos esclarecer que nossa corujinha não era ignorante ou preguiçosa de enfrentar o mundo do saber: ao contrário, relativamente jovem ainda, costumava espantar as corujas mais velhas (que lhe entendiam melhor), e tinha de conter-se ao conversar com as de sua idade, geralmente mais versadas do que ela em alguma especialidade, mas incapazes de acompanhá-la em seus ousados vôos transdisciplinares.
 
Isso a fazia confrontar uma imagem de velhice precoce que a irritava muito,
e ela resolveu “mudar-se da casa dos eruditos, e bater a porta ao sair.” (Como boa intelectual, lá por dentro apoiava sua decisão numa espécie de nota de rodapé do pensamento: “No dizer de Nietzsche, citado por Rubem Alves em Conversas com quem gosta de ensinar, que acabamos de reler.”)
 
Foi direto a um conhecido e barulhento galho-bar. Por um instante estremeceu antes de entrar: “vão perceber que não sou habituée”. Mas aí lembrou ter lido que o álcool nivela tudo. Por via das dúvidas invocou a palavra “nonchalance”, estufou o peito, e foi direto até o balcão.
 
– Vê uma purinha aí pra mim, ô meu. – Sentiu-se ótima falando assim. Naturalmente os habitués e garçons estranharam um pouco, mas ela evitou olhar em torno até sentir, na terceira dose, que estava pronta.
 
Ora, a menos que o leitor também esteja bêbado não vai agüentar descrição detalhada dos papos & acontecimentos daquela noite. Basta dizer que logo – ela não lembra como – se viu sentada numa mesa cheia de velhos conhecidos nunca antes vistos. Não era ignorante de artes teatrais, e conseguiu certo sucesso soltando piadas que passaram por novas – é que tinham sido ouvidas há dez, quinze anos, e ela não sabia esquecer.
 
Lá pelas tantas um anu lhe perguntou: – Mas e aí, dona Coruja, conta aí pra nós o que foi que aprendeu lá nos livros, nos seus estudos... Não me leve a mal, eu sou uma ave ignorante, a senhora sabe, mas sou curioso, gosto de perguntar. Conta aí o que aprendeu!
 
– Pois estudando as mais antigas e sagradas escrituras – respondeu com bêbada solenidade lembrando a citação do Eclesiastes que
“acabara de reler em Rubem Alves, op.cit.” – o que aprendi foi o seguinte: no muito saber há enfado, e quem aumenta ciência aumenta tristeza.
 
Olhou em torno, mas não sentiu nem sinal do sucesso que essa frase teria causado entre suas colegas. Sentiu até uma certa decepção, como se de fato esperassem alguma coisa dela, alguma coisa real. Mas como, se real era justamente o que lhe faltava? Não deixou passar mais um instante e completou com outra citação da literatura bíblica: – E que
o vinho alegra o coração do homem. Garçom, traz mais! Traz pra todo mundo. É por minha conta!
 
Foi o bastante: se havia outra expectativa, foi esquecida, e a corujinha foi eleita a uma vez “membra” honorária da turma e rainha daquela noite.
 
 
Mais tarde saíram por aí, ainda em bando, e logo se aproximou da corujinha um chopim. Ela estremeceu: tinha passado a noite com os olhos naquela gracinha de chopim, franguinho ainda, do outro lado da mesa. Tinha tido a impressão de que ele, que quase não tinha falado, às vezes também olhava pra ela, mas achava absurdo pensar que um tão jovem e desejável passarinho desse bola pra uma coruja, e já algo madura. Ainda não sabia que há bichos atraídos pelo aspecto de experiência e sabedoria, mesmo que não lá muito pelo conteúdo das mesmas.
 
Enfim: papo vai, papo vem, terminaram a noite na toca da coruja. Do alto de uma sensação de glória ela só se perguntava: “não sei por que é que esperei tanto pra cair na real!
 
 
Não podemos dizer que não durou, o caso de nossa corujinha e do franguinho de chopim: este, relatando sérias incompatibilidades familiares (ainda mais que chopim costuma sair do ovo em ninhos dos passarinhos mais inesperados!) pediu licença e trouxe as malas para a toca. A coruja ficou muito feliz: da noite para o dia sentia sua vida cheia, rica, divertida... Às vezes estranhava alguma coisa, mas achava que, enfim, era tudo uma questão de tempo, era o aprendizado das regras de uma nova vida, muito mais interessante.
 
Uma ou outra vez alguma atitude do chopim chegava mesmo a chocá-la. Não estava convencida, por exemplo, que dividir a comida por igual fosse um refinamento decadente de sua classe, e se incomodava ao vê-lo encher o prato sem lembrar dos outros. Mas era só ele vir com aquele biquinho pra um cafuné e ela se desmanchava, esquecia tudo.
 
 
Com o tempo começou a descobrir que não desprezava tudo na antiga vida de coruja. Às vezes se pegava entediada no meio da conversa do bar, ou dos chopinzinhos que vinham à sua toca visitar o amigo. Às vezes sentia - estranho! - vontade de discutir algum assunto mais erudito, um pouquinho só... Começou a convidar de vez em quando antigas companheiras. Escolhia as mais ousadas, que não se chocassem com seu caso chopinal, e até soubessem, de um modo ou de outro, apreciá-lo. Ele até que se esforçava: falava pouco, às vezes conseguia dizer alguma coisa sobre um livro que estivesse tentando ler – dava seus foras, é verdade, mas as amigas da coruja eram educadíssimas e consertavam as coisas disfarçadamente, ou fingiam não ver.
 
Depois de algumas vezes também ele não escondia seu tédio, e aí combinaram que não iam fazer tudo juntos: que às vezes ela receberia corujas em casa e ele encontraria os amigos no bar. E algumas vezes funcionou.
 
Mas de repente ele achou injusto ter de sair. Afinal, morava ali ou não morava? E começou a entrar e sair no meio dos encontros de corujas, trazer todo mundo pra lá. A corujada de início até se divertia, mas dali a pouco também se entediavam e, ao verem que toda a comida oferecida era devorada pela chopinzada, começaram a pensar duas vezes antes de visitar a extravagante amiga -
 
... a qual, dessa vez, resolveu reclamar quando se viu sozinha com o chopim. Mas quem disse que este estava com paciência? – Qualé, coruja velha, vai querer regular, agora? – e saiu, jogando-a pra um canto com força bastante pra machucar. Coruja é mais forte que chopim, mas nossa amiga teria achado uma indignidade reagir.
 
“Acho que não dá mais”, ficou pensando sozinha. Mas à medida que a noite avançava e ela relembrava a toca de antes, fria e solitária, perdia toda a coragem de terminar. Lembrava aquelas peninhas pretas, aquele cheirinho de passarinho jovem... e quando afinal o chopim chegou, de madrugada, batendo porta, foi ela quem foi encorujar-se em suas asas e pedir perdão.
 
 
E assim continuaram as coisas. Decidida a não perder o chopim, a coruja passou a investir mais e mais em divertimento e mesa farta. Voltou a pagar rodadas de bar. Em casa muitas vezes observava que já tinham avançado no estoque de inverno, e ainda mal era outono. Pensava às vezes em dar um toque, mas dizia a si mesma “deixe de ser careta! A fábula da Cigarra e da Formiga não passa de uma história capitalista, uma pedagogia da exploração! O negócio é viver o momento, essa moçada tem razão.”
 
Uma ou outra vez chegou a falar de sua preocupação ao chopim – e uma e outra vez saiu arranhada e bicada, de novo sem querer reagir. Pras amigas arranjava alguma desculpa pros machucados, sentia-se meio ridícula, mas não ousava tomar atitude. “Ainda mais que aí vem o inverno, e será tão bom ter o calorzinho do meu chopim...”
 
Mas... justo ao começar o inverno é que estourou a bomba: de repente, a despensa vazia, não havia mais como disfarçar. E a coruja apresentou ao chopim não mais uma previsão, mas um fato consumado.
 
– Bom – reagiu o  passarinho – acho que o melhor que se tem a fazer é ir procurar outros ares. Há lugares onde ainda é verão.
 
– Mas não vai ser difícil a gente começar vida nova, do zero, em outro lugar?
 
– A gente? Por que a gente? Em época de dificuldade é melhor cada um se virar por si. Eu já estou pronto, falô?
 
– Mas, peraí: eu não posso deixar assim minha toca, não tenho muita coisa, mas, sabe como é, esses livros, os desenhos originais de artistas amigos, seria loucura deixar e...
 
– Isso é problema seu! – largou o chopim já virando as costas e disparando pelos ares.
 
 
Não é preciso dizer que foi um duro inverno, o que nossa amiga passou. Na carta em que me contou suas aventuras e desventuras, ela diz ter chegado a duas conclusões – ou melhor: a uma conclusão e uma não-conclusão:
 
“Primeiro”, diz ela, “podem dizer que A Cigarra e a Formiga é uma fábula careta, mas o inverno existe. É frio e dói. Se você, ao contrário das cigarras, é um ser que vive mais de um ano, tem que fazer alguma coisa a respeito. Não precisa fazer como formigas, que acumulam mais do que precisam, e por isso se multiplicam tanto que infernizam o resto do mundo. Mas alguma coisa tem que fazer.
 
“Escrever livros dizendo que o inverno não existe, isso, meu amigo, só fazem os que estão bem abrigados.
 
“Segundo, a não-conclusão: minhas amigas dizem que nunca dá certo, caso de coruja com chopim. Que é sempre assim. Eu não sei. Cientificamente tudo que posso dizer é que esse chopim não deu certo. E que não é prudente trazer chopim pra casa antes de conhecer melhor.
 
“Mas sou uma coruja teimosa: já imaginou se consigo provar, contra todas elas, que é possível a felicidade conjunta de uma coruja e de um chopim? Agora, meu amigo, com licença, acabo de ver uma gracinha pousar no galho ali do lado.”
 
(E eu, o que posso fazer além de, cientificamente, esperar pra ver?)
 
Ralf Rickli • Botucatu, 1990
Publicado anteriormente em Duas Histórias de Corujas
São Paulo: Trópis, 1998

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