Acredite nos que buscam a verdade... Duvide dos que encontraram! (A.Gide)

05 novembro 2015

Doutor Gramaticulino, sua esposa... e este que vos fala

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Introduzindo: um pouco tardiamente fico sabendo que ontem (5 de novembro) foi DIA NACIONAL DA LÍNGUA PORTUGUESA, de acordo com a Lei 11.310/2006 - a meu ver um equívoco, por se referir ao nascimento de (ai!) Ruy Barbosa - infelizmente sancionada pelo nosso Lula, mas proposta no Congresso não sei por quem.
 
Ironia, porque na noite de véspera eu estava FALANDO pela primeira vez em público, no meio duma moçada fantástica da Grande VIX que se identifica como Slam Botocudos, um poema de 2011 - feito mesmo com a intenção de ser em voz alta, mas ainda não havia tido essa oportunidade, principalmente pq o poema é, digamos, um tantinho ousado - e ataca frontalmente a visão de que esse academicismo tradicional à la Ruy Barbosa devesse ser reconhecido como referência para a nossa língua.

Já havia saído aqui no blog em maio de 2011, mas em des-homenagem a esse dia equivocado vai mais uma vez, com ligeiras revisões.

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DOUTOR GRAMATICULINO, SUA ESPOSA...
E ESTE QUE VOS FALA

Ralf Rickli - Curitiba, 18.05.2011
Revisto e re-publcado em Vitória, 05.11.2015,
nono "Dia Nacional da Língua Portuguesa"


Não é querendo lhe ofender,
Dr. Gramaticulino Normoso,
mas essa senhora,
que lhe acompanha em terninhos discretos
nas cerimônias soníferas
a que o senhor a arrasta com suas gravatas francesas...

... essa senhora, da qual nunca extrais
mais que uns inexpressivos aiais,
eu bem que conheço ela
um tantinho outra,
nas madrugadas.

Sim, pois quando a gente se tromba
pelos butecos e becos, e se encoxa
no elevador pras estrelas
de um quartinho apertado...
ah, como ela se contorce
sob os meus dedos, minha língua,
que num minuto inventam dez regras
para abolir no instante seguinte
trocadas por outras dez
– tampouco feitas pra durar
mais que até a próxima explosão
de prazer

E como uiva delícias,
sua senhora Dona Língua Portuguesa
nessas noites em que nos entredevoramos
com tesão
– e amor!
Ah, eu confesso:
até tenho dó
do senhor, que nem desconfia
do que essa mulher é capaz!

Coitado... se soubesse mexer as cadeiras
para além desse um-dois, um-dois
que o pau do jesuíta
e o do general
lhe ensinaram...
Mas faz cem anos que o convidam pra folia,
e o senhor, nada de relaxar!

Pois fique, então, com a sua pose...
mas alforrie essa exposa gostosa
– que ao seu lado ela já nem pousa
mas na minha boca
ela goza.
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26 setembro 2015

BISSEXUALIDADE, A ORIENTAÇÃO SEXUAL MAIS COMUM E INCOMPREENDIDA (e o que os ditos ex-gays têm a ver com isso)

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Versão revista e ampliada em set.2015 do texto publicado originalmente em 09.08.2013 no jornal ES Hoje
com o título "Os tais ex-gays e o caso bi".
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Faz pouco tempo que começou a se falar no Brasil do dia 23 de setembro como "Dia da Bissexualidade", "Dia da Visibilidade Bissexual" ou ainda "Dia da Visibilidade da Bissexualidade". A data foi proposta nos EUA em 1999 e já é celebrada, mesmo se ainda discretamente, em diversos países de todos os continentes.

Mais uma besteira inútil de origem "americana"? Eu não diria isso: a bissexualidade é a menos compreendida das formas de orientação do desejo sexual. Muitos (até mesmo gays) pensam que se trate de uma minoria desprezível seja no sentido numérico, seja no sentido moral: afinal, os adeptos da normatização da vida alheia costumam defender não só a heterossexualidade exclusiva como também a monogamia estrita - sexo com uma só pessoa ao longo da vida - e dizer-se bissexual implica automaticamente em considerar legítimo fazer sexo com pelo menos duas pessoas..

Homens que cumprem na prática a monogamia estrita são tão numerosos mundo afora que talvez lotem um ou dois ônibus... mas os ditos conservadores não se acanham em rosnar regras que eles mesmos não costumam cumprir. São barulhentos, em sua obsessão de dominar a vida alheia. E, entre outras coisas, deram de apresentar como "ex-gays" uma meia dúzia de ex-garotos de programa e ex-travestis como se fossem "a prova" de que "o caminho certo" para todas as dezenas de milhões de brasileiros LGBT fosse aceitar a religião deles para virarem normais.
 
Realmente ridículo - mas a resposta dos ativistas LGBT geralmente não vai além de gritar que orientação sexual não muda e que os ditos ex só estão mentindo a si mesmos. Essa reação não é sem razão, mas ao bater de frente deixa de fora algumas sutilezas, e aí terminamos travados nesse -É! -Não é! e não vamos adiante. Que tal tentar enfrentar a questão com um pouco mais de ginga?
 
Vejam: tem muito homem que nunca sonhou fazer sexo com outro, viveu um casamento convencional por anos ou décadas, até que um dia, por brincadeira ou bebedeira, consentiu em uma aproximação - e aí não quer mais ficar sem o sexo entre iguais. Alguns desses conservam o interesse em mulheres, outros perdem completamente. E aí: houve mudança de orientação sexual, não houve? Acreditem: não!
 
Com base em centenas de milhares de entrevistas sigilosas, Alfred Kinsey apontou 7 variações do desejo, conforme seus objetos: 0: Só diferentes, nenhum igual. 1: Um igual vez ou outra. 2: Iguais com considerável frequência, mas os diferentes ganham. 3: Diferentes e iguais na mesma medida. 4: Diferentes com considerável frequência, mas os iguais ganham. 5: Diferentes só vez ou outra. 6: Exclusivamente iguais. 
 
Como se vê, 5 dos 7 tipos são capazes de prazer com os dois sexos, só 2 não são. A população de gays/lés 100% é relativamente pequena, mas a de 100% héteros também. Em períodos longos sem contato com o sexo oposto, a maior parte se descobre capaz de desejo por iguais. Dos que não chegam a praticar, a maioria se contém com esforço e por medo incutido, bem poucos por nem chegarem a desejar.
 
Nenhum hétero exclusivo optou por ser assim: simplesmente é. O mesmo vale para gays/lés exclusivxs. Já o bissexual, tampouco optou por desejar os dois, mas tem sim três opções para realizar seu desejo: só com iguais, só com diferentes, ou com os dois. Sua história de vida pode ter levado a começar por um dos lados, e esse ter sido satisfatório o bastante para ele nem desconfiar que o outro lado lhe poderia ser igualmente bom, ou ainda melhor - mas potencialmente as opções estão lá o tempo todo.

Supostos ex-gays, se estão felizes, são na verdade bissexuais explorando outra de suas possibilidades. Ex-héteros podem ser a mesma coisa, ou são gays quase-exclusivos que haviam se deixado dominar pela doutrinação social heteronormativa. Alguns destes se libertam da doutrinação social heteronormativa sozinhos ou com ajuda de amigos, outros só com ajuda psicológica.
 
Mas sejamos honestos: também existem héteros quase-exclusivos que a vida levou a viver como homossexuais ou como travestis em situações p.ex. de prostituição forçada por escravização ou penúria. Quando essas condições cessam, tais héteros reencontram sua orientação sem psicólogo nem pastor - ainda mais que no rumo hétero a sociedade inteira ajuda. Mas se ser ex-gay te custa esforço, terapia ou oração, meu bem… então seu caso não é esse - e aí só posso dizer: despacha da tua vida esses parasitas, se solta… e (re)começa a ser feliz sendo o gay ou bissexual que Deus te fez!
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07 junho 2015

POR QUE SOCIALISMO? - Albert Einstein, 1949

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Tradução: Ralf Rickli, 2015 (ver nota introdutória)
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A internet me trouxe ontem esta agradável surpresa: um artigo de Einstein (sim, ele mesmo, o do E=mc²) defendendo incondicionalmente o socialismo. Escrito aos 70 anos, 6 antes de sua morte, 16 depois de sua chegada aos Estados Unidos com 54 anos, 4 anos após o término da 2ª Guerra Mundial. Vou deixar aos leitores, elucubrar sobre esse posicionamento nesse momento, depois de Einstein ter se sentido obrigado a colaborar com o governo dos EUA contra os nazistas, durante a Guerra, porém não sem dramas de consciência.
O artigo foi escrito especialmente para o primeiro número da revista marxista estadunidense Monthly Review, lançada em maio de 1949, e está disponível em http://monthlyreview.org/2009/05/01/why-socialism/

O texto já existia disponível em português em https://www.marxists.org/portugues/einstein/1949/05/socialismo.htm , numa tradução não sem méritos, porém perceptivelmente feita de uma tradução prévia ao espanhol, e que com certeza inadvertidamente deixou escapar palavras, frases e até um parágrafo inteiro. Com isso, decidi fazer esta nova tradução, do zero, disponibilizando-a em https://tr.im/EinsteinSocialismoBlog e também, em apresentação bilíngue, em https://tr.im/EinsteinSocialismoPDF

Esta tradução pode ser reproduzida à vontade, desde que sempre mencionando o nome do tradutor (e do autor, obviamente), e pelo menos um dos endereços eletrônicos tr.im como referência de fonte. Caso seja feita alguma modificação no texto transcrito, também é indispensável que a pessoa responsável pela alteração declare seu nome e descreva com exatidão o que alterou.

Vitória (ES, Brasil), 07.06.2015 - Ralf Rickli
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Será aconselhável que um não especialista em assuntos econômicos e sociais manifeste pontos de vista sobre o tema “socialismo”? Por várias razões, eu acredito que sim.

Comecemos considerando a questão pelo ponto de vista epistemológico [isto é, que analisa o próprio conhecimento científico]. Poderia parecer que não houvesse diferenças metodológicas essenciais entre a Astronomia e a Ciência da Economia: nos dois campos, os cientistas tentam descobrir leis que sejam aceitáveis de modo generalizado para um determinado grupo de fenômenos, com a finalidade de tornar compreensível a interconexão desses fenômenos do modo mais claro possível.

Na realidade, diferenças metodológicas existem. No campo da Economia, a descoberta de leis gerais é dificultada pela circunstância de que os fenômenos econômicos observáveis são com frequência afetados por muitos fatores que é muito difícil avaliar separadamente.

Além disso, como é bem sabido, a experiência acumulada desde o início do assim chamado período civilizado da história humana tem sido grandemente influenciada ­e limitada por fatores cuja natureza de nenhum modo é exclusivamente econômica.

Por exemplo, a maioria dos grandes Estados da história deveu sua existência à conquista. Os povos conquistadores estabeleceram a si mesmos, legal e economicamente, como a classe privilegiada do território conquistado; apossaram-se do monopólio da propriedade da terra e designaram uma classe sacerdotal a partir de suas próprias fileiras. Os sacerdotes, no controle da educação, fizeram da divisão da sociedade em classes uma instituição permanente, criando um sistema de valores pelo qual o comportamento social das pessoas passou a ser guiado desde então, em grande medida em nível inconsciente.

Mas a tradição histórica começou ontem, por assim dizer. Em nenhum lugar nós superamos de fato o que Thorstein Veblen chamou de “fase predatória” do desenvolvimento humano. Os fatos econômicos observáveis pertencem a essa fase, e as leis que podemos derivar deles não são aplicáveis a outras fases. Como o verdadeiro propósito do socialismo é precisamente superar a fase predatória do desenvolvimento humano e avançar para além dela, a Ciência Econômica em seu estado atual pode esclarecer bem pouco sobre a sociedade socialista do futuro.

Em segundo lugar, o socialismo se direciona para uma finalidade socioética. A ciência, no entanto, não tem o poder de criar finalidades, e muito menos de instilá-las nos seres humanos; a ciência pode, no máximo, fornecer os meios com que atingir certas finalidades. As finalidades são concebidas por personalidades com ideais éticos elevados – ideais esses que, quando não são natimortos e sim cheios de vida e vigor – são adotados e levados adiante por aquela multitude de seres humanos que, de modo parcialmente inconsciente, terminam por determinar a evolução da sociedade.

Por essas razões, deveríamos nos precaver no sentido de não superestimar a ciência e os métodos científicos quando o que está em questão são problemas humanos - e não deveríamos presumir que somente especialistas têm direito a se manifestar sobre as questões que afetam a organização da sociedade.

[A CRISE HUMANA ATUAL E A RELAÇÃO INDIVÍDUO-SOCIEDADE]

Incontáveis vozes vêm afirmando, já desde há algum tempo, que a sociedade humana está passando por uma crise; que sua estabilidade foi gravemente abalada. É característico dessa situação que os indivíduos se sintam indiferentes ou até mesmo hostis ao grupo a que pertencem, seja o pequeno grupo ou ao grupo de maior escala. Permitam-me recordar aqui uma experiência pessoal para ilustrar o que quero dizer: não faz muito, eu debatia com um homem inteligente e de boa disposição sobre a ameaça de mais uma guerra – o que, na minha opinião, poria em sério perigo a existência da humanidade – e observei que somente uma organização supranacional ofereceria proteção contra esse perigo. Nesse ponto o meu visitante me disse, com toda calma e indiferença: “Mas por que você se opõe tão profundamente ao desaparecimento da raça humana?”

Tenho certeza que apenas um século atrás ninguém teria declarado algo desse tipo com toda essa despreocupação. Temos aí uma declaração de um homem que lutou em vão para alcançar um equilíbrio interior e mais ou menos perdeu a esperança de alcançá-lo. É expressão de uma dolorosa solidão e isolamento, de que tanta gente sofre hoje em dia. Qual é a causa? Existe saída?

É fácil levantar essas perguntas, mas é difícil respondê-las com qualquer grau de segurança. No entanto eu preciso tentar, o melhor que puder, embora esteja bem consciente de que nossos sentimentos e aspirações são muitas vezes contraditórios e obscuros, e não podem ser expressos em nenhuma fórmula simples e fácil.

O homem é ao mesmo tempo um ser solitário e um ser social. Como ser solitário, ele tenta proteger sua própria existência e a dos que lhe são mais próximos, satisfazer seus desejos pessoais, desenvolver suas habilidades inatas. Como ser social, busca conquistar o reconhecimento e afeição dos seus companheiros de humanidade, compartilhar de seus prazeres, confortá-los em seus sofrimentos, melhorar suas condições de vida. Somente a existência dessas diferentes aspirações, muitas vezes conflitantes, já responde pelo caráter especial de uma pessoa, e sua combinação específica determina a medida em que o indivíduo consegue, por um lado, alcançar um equilíbrio interior e, por outro lado, consegue contribuir para o bem-estar da sociedade.

É bem possível que a intensidade relativa desses dois impulsos seja, em seu principal, determinada pela hereditariedade – mas a personalidade que termina emergindo é formada em ampla medida pelo ambiente em que acontece de a pessoa se encontrar durante o seu desenvolvimento, pela estrutura da sociedade em que ela cresce, pela tradição daquela sociedade, e pelo valor que a sociedade atribui a este ou àquele tipo de comportamento.

Para o indivíduo humano, o conceito abstrato “sociedade” significa a soma de suas relações diretas e indiretas com os seus contemporâneos e com todas as pessoas das gerações anteriores. O indivíduo é capaz de pensar, sentir, aspirar e trabalhar por si mesmo; mas [ao mesmo tempo] ele depende tanto da sociedade – em sua existência física, intelectual e emocional – que é impossível pensá-lo ou entendê-lo fora da moldura que é o contexto social. É “a sociedade” o que lhe proporciona comida, roupas, um lar, a ferramentas do seu trabalho, a linguagem, as formas de pensar, e a maior parte do conteúdo do pensamento; a sua vida se faz possível mediante o trabalho e realizações dos muitos milhões, passados e presentes, que estão escondidos por trás da pequena palavra “sociedade”.

É evidente, portanto, que a dependência do indivíduo em relação à sociedade é um fato da natureza que não pode ser abolido – tanto quanto o é no caso das formigas e abelhas. No entanto, enquanto o inteiro processo de vida das formigas e abelhas é determinado nos mínimos detalhes por instintos hereditários rígidos, o padrão social e os inter-relacionamentos dos seres humanos são altamente variáveis e suscetíveis de mudanças. A memória, a capacidade de realizar novas combinações e o dom da comunicação verbal possibilitaram desenvolvimentos, entre os seres humanos, que não são ditados por necessidades biológicas. Tais desenvolvimentos se manifestam em tradições, instituições e organizações; em literatura; em realizações científicas e técnicas; em obras de arte. Isso explica como acontece de o ser humano ser capaz de, em certo sentido, influir em sua vida mediante a sua própria conduta, e de que nesse processo o pensamento e a vontade conscientes consigam desempenhar um papel.

O ser humano adquire ao nascer, através da hereditariedade, uma constituição biológica que precisamos considerar determinada e inalterável, inclusive os impulsos naturais que são característicos da espécie humana. Em acréscimo, ao longo de sua vida ele adquire uma constituição cultural que ele adota da sociedade por meio da comunicação e de muitos outros tipos de influências. É a sua constituição cultural que está sujeita a mudanças com a passagem do tempo, e que determina em vasta medida a relação entre o indivíduo e a sociedade. A antropologia moderna nos ensinou, através da investigação comparativa das culturas chamadas de primitivas, que o comportamento social dos seres humanos pode diferir grandemente, dependendo dos padrões culturais e dos tipos de organização que predominam na sociedade. Os que se empenham em melhorar a condição humana podem fundamentar suas esperanças nisso: seres humanos não estão condenados por sua constituição biológica a aniquilarem uns aos outros, nem a estar à mercê de um destino cruel autoinfligido.

Se nos perguntarmos de que modo a estrutura da sociedade e a atitude cultural do ser humano deveriam ser mudados para tornar a vida humana tão satisfatória quanto possível, deveríamos estar sempre conscientes de que há certas condições que somos incapazes de modificar. Como já foi mencionado, para todos os efeitos práticos a natureza biológica do ser humano não é modificável. Além disso, os desenvolvimentos tecnológicos e demográficos dos últimos séculos criaram condições que estão aqui para ficar. Em populações assentadas com considerável densidade, levando em conta os bens que são indispensáveis para a continuidade de sua existência, tornam-se absolutamente indispensáveis uma extrema divisão de trabalho e um aparato produtivo altamente centralizado. Foi-se para sempre o tempo – que, olhando-se para trás, parece tão idílico – em que indivíduos ou grupos relativamente pequenos podiam ser completamente autossuficientes. Há pouco exagero em dizer que a humanidade já constitui uma comunidade planetária de produção e consumo.

[A ANARQUIA ECONÔMICA CAPITALISTA COMO ORIGEM DA CRISE HUMANA]

Cheguei agora ao ponto em que posso indicar brevemente o que, para mim, constitui a essência da crise do nosso tempo: refere-se à relação do indivíduo com a sociedade. O indivíduo se tornou mais consciente do que nunca de sua dependência da sociedade - mas sua experiência dessa dependência não é a de um bem positivo, um laço orgânico, uma força protetora, e sim a de uma ameaça aos seus direitos naturais, ou até mesmo à sua existência econômica. Além disso, o indivíduo está posicionado na sociedade de modo tal, que os impulsos egoístas da sua constituição recebem reforço constante, enquanto que os seus impulsos sociais, que por natureza já são mais fracos, se deterioram progressivamente. Todos os seres humanos, qualquer que seja sua posição na sociedade, vêm sofrendo esse processo de deterioração. Prisioneiros de seu próprio egoísmo sem saber disso, sentem-se inseguros, sozinhos e privados de todo desfrute da vida que seja inocente, simples, não sofisticado. O ser humano somente pode encontrar sentido na vida, curta e arriscada como é, mediante sua dedicação à sociedade.

A anarquia econômica da sociedade capitalista como existe hoje é, na minha opinião, a verdadeira fonte do mal. Vemos diante de nós uma enorme comunidade de produtores cujos membros se empenham sem cessar em privar uns aos outros dos frutos de seu trabalho coletivo – não por força, mas em inteiro e fiel cumprimento de regras estabelecidas legalmente. A respeito disso, é importante dar-se conta [do papel do fato] de que os meios de produção – quer dizer, tudo o que dá capacidade de produzir bens para os consumidores, bem como bens de capital adicionais – possam ser propriedade privada de indivíduos (e de fato o sejam, em sua maior parte).

Pelo bem da simplicidade, na discussão a seguir chamarei de “trabalhadores” todos os que não têm parte na propriedade dos meios de produção – embora isso não corresponda com exatidão ao uso costumeiro do termo. O proprietário dos meios de produção está em posição de comprar a força de trabalho do trabalhador. Usando os meios de produção, o trabalhador produz novos bens que se tornam propriedade do capitalista. O ponto essencial deste processo é a relação entre o que o trabalhador produz e aquilo que lhe pagam, ambos medidos em termos de valor real. Na medida em que a contratação do trabalho é “livre”, o que o trabalhador recebe não é determinado pelo valor real dos bens que ele produz, e sim por quais são suas necessidade mínimas, bem como pela relação entre a demanda por força de trabalho por parte dos capitalistas e o número de trabalhadores que competem por empregos. É importante entender que nem mesmo na teoria o pagamento do trabalhador é determinado pelo valor do seu produto.

Capital privado tende a se concentrar em poucas mãos, em parte devido à competição entre os capitalistas, em parte porque o desenvolvimento tecnológico e o crescimento da divisão do trabalho estimulam a formação de unidades de produção maiores, em prejuízo das menores. O resultado desses desenvolvimentos é uma oligarquia do capital privado, cujo enorme poder não pode ser efetivamente controlado sequer por uma sociedade política democraticamente organizada.

Isso é assim porque os membros dos corpos legislativos são selecionados por partidos políticos, que são amplamente financiados, ou influenciados de algum outro modo, por capitalistas privados que, para todos os propósitos práticos, separam o eleitorado da legislatura. A consequência é que os representantes do povo não protegem de fato e de modo suficiente os interesses dos setores menos privilegiados da população. Além disso, nas condições atuais os capitalistas privados inevitavelmente controlam, direta ou indiretamente, as principais fontes de informação (imprensa, rádio, educação). Torna-se assim extremamente difícil para o cidadão individual, e de fato impossível na maioria dos casos, chegar a conclusões objetivas e fazer uso inteligente dos seus direitos políticos.

A situação predominante em uma economia baseada na propriedade privada de capital caracteriza-se então por dois princípios centrais: primeiro, os meios de produção (capital) são possuídos privadamente, e os proprietários dispõem deles como acham melhor; segundo, a contratação de trabalho é livre [isto é, não regulada]. É claro que não há sociedade capitalista pura nesse sentido. Em especial, é preciso registar que os trabalhadores, através de longas e amargas lutas políticas, conseguiram assegurar uma forma um tanto melhorada de “livre contrato de trabalho” para algumas categorias de trabalhadores. Mas, tomada em seu conjunto, a economia atual não difere muito de um capitalismo “puro”.

A produção é realizada com a finalidade do lucro, não com a do uso. Não existem disposições para garantir que todas as pessoas capazes e dispostas a trabalhar sempre consigam achar emprego; quase sempre existe um “exército de desempregados”. O trabalhador está perpetuamente com medo de perder seu emprego. Devido ao fato de que desempregados e trabalhadores mal pagos não formam um mercado rendoso, a produção de bens de consumo é restrita, o que resulta em grandes privações. O progresso tecnológico resulta com frequência em mais desemprego, em lugar de aliviar a carga de trabalho para todos. O lucro como motivação, em conjunto com a concorrência entre os capitalistas, é responsável por uma instabilidade na acumulação e utilização do capital, a qual leva a crises cada vez mais graves. A competição irrestrita leva a um gigantesco desperdício de força de trabalho, e também àquela deformação da consciência social dos indivíduos, que eu mencionei anteriormente.

Essa deformação dos indivíduos, eu a considero o pior dos males do capitalismo. Nosso sistema educacional inteiro sofre desse mal. Uma atitude competitiva exagerada é inculcada no estudante, que, como preparação para sua futura carreira, é treinado para idolatrar um sucesso aquisitivo.

[A SAÍDA PELO SOCIALISMO E SUAS DIFICULDADES]

Estou convencido de que existe apenas um caminho para eliminar esses graves males, e esse é o estabelecimento de uma economia socialista, acompanhada por um sistema educacional orientado para objetivos sociais. Em uma economia tal, os meios de produção são propriedade da própria sociedade, e utilizados de modo planejado. Uma economia planejada, que ajusta a produção às necessidades da comunidade, distribuiria o trabalho a ser feito entre todos os capazes de trabalhar, e garantiria o sustento de cada homem, mulher e criança. A educação do indivíduo, além de desenvolver suas próprias habilidades inatas, se empenharia em desenvolver nele um senso de responsabilidade por seus companheiros de humanidade, em lugar da glorificação do poder e do sucesso, como temos na sociedade atual.

Contudo é preciso lembrar que uma economia planejada ainda não é socialismo. Uma economia planejada pode ser acompanhada por uma escravização completa do indivíduo. A realização do socialismo requer a solução de alguns problemas sociopolíticos extremamente difíceis: como é possível, em face da centralização abrangente do poder político e econômico, impedir que a burocracia se torne todo-poderosa e prepotente? Como se podem proteger os direitos do indivíduo e garantir com isso um contrapeso democrático ao poder da burocracia?

A clareza quanto às metas e aos problemas do socialismo é da mais alta significação em nossa era de transição. Como, na conjuntura atual, a discussão livre e sem barreiras destes problemas se tornou um grande tabu, eu considero a fundação desta revista um relevante ato de interesse público.
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Disponível em PDF e apresentação bilíngue em https://tr.im/EinsteinSocialismoPDF
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