Acredite nos que buscam a verdade... Duvide dos que encontraram! (A.Gide)

22 dezembro 2013

O gemido de Natal dos excluídos (ou: A paradoxal marchinha de Natal do suicida Assis Valente)



Publicado originalmente em 13/12/2013 na coluna Espaço LGBT do jornal ES Hoje. Ligeiramente adaptado em relação ao texto do jornal.




Confesso que me irrita esta época em que toca música de Natal em toda parte - e a irritação chega ao máximo quando aparece a única música brasileira usual nesse repertório: aquela “Papai Noééél... vê se você tem / a felicidade / pra você me dar”. 
 
Por que me irrita tanto? Porque as pessoas a cantam festivamente, sem dar a mínima para o fato de a letra ser uma denúncia da falsidade dessa mesma festividade, e um gemido de dor de uma vítima de todo tipo de opressões e rejeições. [Veja letra completa ao final]

Nascido em pobreza no interior da Bahia, muito cedo o negrinho Assis Valente foi arrancado dos pais - e da infância - para ser criado trabalhando.
 
A sorte pelo menos lhe deu um patrão diferenciado, pois aos 10 anos, além de prático em farmácia, o menino tinha surpreendente conhecimento de literatura. Quando os artistas de um circo passaram necessidade devido à indiferença da cidade, o menino intercedeu por eles com tal eloquência que acabou ganhando do circo uma carona para o mundo. Aos 16 chega ao Rio, já profissionalizado em Salvador como protético. Aos 20 compõe seu primeiro samba, e aos 21 essa paradoxal marchinha de Natal, num quarto solitário de Niterói.

Sensível, de inteligência brilhante... mas baiano, preto, pobre e gay numa metrópole falsamente tolerante, foi com certeza em busca de respeito que aos 30 se casou - para 4 meses depois se atirar do Corcovado num dia 13 de maio. Agonia dupla, o que era pra ser um desfecho trágico emblemático termina quase ridículo: fica enroscado em árvores e é resgatado pelos bombeiros.

Mas nosso Valente morreria mesmo de suicídio, na terceira tentativa, aos 47 anos. Dando continuidade à hipocrisia, grande parte das biografias diz apenas: “devido a dívidas”. Mas como, o autor de Camisa Listrada e Brasil Pandeiro, entre 153 composições? Tímido, reservado, Assis vivia sozinho e pagava para satisfazer a necessidade de atenção, de toque e de calor de corpo que todo ser humano tem - cada um a seu modo. E, com o senso de dignidade hipersensível devido a tantas violações, era um prato cheio para chantagistas.

Um dia se dirigiu a um parque infantil, pôs formicida num guaraná, e partiu. Como quem buscasse a porta da infância perdida.

É por isso que eu acho: ninguém deveria ter o direito de cantar Boas Festas, senão assumindo o compromisso de lutar contra as causas do suicídio do valente Assis. Vamos crescer, gente: Papai Noel não trará mesmo a felicidade para ninguém. Pois ele nem existe. Quem existe somos nós - e somos nós os responsáveis pelo que houver de felicidade ou de infelicidade no mundo.

Que tal lutar por um mundo sem crianças forçadas a trabalhar? E um Natal em que gays, lésbicas e trans não precisem chorar longe de suas famílias, como única alternativa a serem humilhados por elas? Em que possam festejar junto a todas as pessoas que amam, sem separar?

Se alguém vê imoralidade nisso, desculpe, mas não faz ideia do que seja o Bem. E, bem traduzido, o que o canto natalino dos anjos diz é “paz na Terra às pessoas que almejam o Bem”. Assim seja!

 Letra completa da canção "Boas Festas",
de Assis Valente (1932)

Anoiteceu, o sino gemeu
E a gente ficou feliz a rezar
Papai Noel, vê se você tem
A felicidade pra você me dar


Eu pensei que todo mundo
Fosse filho de Papai Noel
E assim felicidade
Eu pensei que fosse uma
Brincadeira de papel


Já faz tempo que eu pedi
Mas o meu Papai Noel não vem
Com certeza já morreu
Ou então felicidade
É brinquedo que não tem



15 novembro 2013

Homossexualidade e Negritude

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Publicado originalmente em 08/11/2013 na coluna Espaço LGBT do jornal ES Hoje. Ligeiramente adaptado em relação ao texto do jornal.
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Zumbi dos Palmares, maior líder da resistência negra nos tempos coloniais, foi morto num 20 de novembro, mês que por isso se tornou referência na luta contra a discriminação racial no Brasil. Como isso se cruza com a luta contra outra discriminação, a por orientação sexual?

Há alguns anos muitos receberam como um insulto a sugestão do antropólogo paulista Luis Mott, casado com o historiador negro baiano Marcelo Cerqueira, de que Zumbi fosse gay. Os argumentos de Mott são de fato bem fracos, mas qual seria o problema, se tiver sido mesmo? Baste lembrar que os maiores guerreiros da Grécia antiga, Aquiles e Alexandre, amavam homens!

Infelizmente, a justíssima autoafirmação de valor dos negros da diáspora muitas vezes se equivoca, encarando a homossexualidade como manifestação de fraqueza branca, na qual seria indigno um negro incorrer. Espalhou-se inclusive o mito de que não havia homossexualidade na África, nem entre os índios - o que o jesuíta Pero Correia desmentia já em 1551: “O pecado contra a natureza, que dizem ser lá em África muito comum, o mesmo é nesta terra do Brasil, de maneira que há cá muitas mulheres que, assim nas armas como em todas as outras coisas, seguem ofício de homens e têm outras mulheres com que são casadas”.

Em 1998, Murray e Roscoe publicaram Boy-Wives and Female Husbands, 350 páginas de textos sobre homossexualidade masculina e feminina na África, começando em 1732 e passando por todo o século 20. Entre as centenas de exemplos, me chama atenção o dos trabalhadores de etnia tsongo, em minas na África do Sul e Moçambique: desde o século 19, é usual que um mais velho convide um mais jovem a ser “sua esposa”, tanto no sentido de cuidar da casa quanto no da satisfação sexual; esta, no entanto, é buscada entre as coxas do parceiro, não se vendo nenhuma necessidade de penetração anal (o que tantos desinformados pensam ser a essência obrigatória da homossexualidade masculina).

Não se trata, porém, de uma situação só tolerada devido à falta de mulheres no ambiente das minas: na mesma região, Moshesh, um chefe bosotho do século 19, deixou claro que em sua tradição não havia punição nem restrição ao sexo entre iguais. E me parece especialmente notável a formulação do povo fânti, de Ghana: os homens e mulheres “que têm alma pesada”, desejam mulheres; já os homens e mulheres “que têm alma leve” preferem homens. Que esplêndida e sábia simplicidade!

De onde vem, então, que a África venha sendo apontada como o pior reduto da homofobia violenta no mundo, quase como mais uma prova de seu suposto primitivismo? Embora ainda escondam, está fartamente provado: tanto a humanidade quanto a civilização começaram na África, e lá não havia miséria antes da intervenção branca. Nem homofobia. Um movimento negro inteligente não pode, portanto, engolir a balela de que homossexualidade seja uma fraqueza importada a rejeitar: cabe-lhe rejeitar a homofobia ao mesmo tempo e com o mesmo vigor com que rejeita a discriminação pela cor - pela sabedoria e pela honra dos seus ancestrais.
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17 outubro 2013

LGBT e Literatura Brasileira


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Publicado originalmente em 11/10/2013 na coluna Espaço LGBT do jornal ES Hoje
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Já falamos de amores entre iguais nas remotas literaturas suméria e hebraica. E na brasileira, tem? Há um paradoxo, aqui: dizem que temos “o 1º romance homossexual da literatura ocidental”: Bom Crioulo, de Adolfo Caminha, que já em 1895 tratou dos amores entre um marinheiro negro e um grumete loiro. Mas, esgotada a edição inicial, o livro foi proibido, e só reeditado em 1985. Só a partir de 1970 autores como João Silvério Trevisan e Caio Fernando Abreu passaram a tratar do tema com naturalidade, não mais com meias palavras ou como aberração, como vemos p.ex. em Raul Pompeia e Lúcio Cardoso.

Do que se escreveu no entremeio, tenho apreço especial por Mário de Andrade, sujeito de espantosa universalidade: formado pianista, inaugurou no país a poesia moderna, a prosa experimental, as políticas públicas de cultura, e a pesquisa respeitosa das religiões afrobrasileiras; não bastasse, foi quem revelou ao mundo a arte do Aleijadinho, então abandonada, e contratou Lévi-Strauss para as pesquisas entre os índios do Mato Grosso que revolucionaram a antropologia.

No campo LGBT, Mário costuma ser mencionado por Frederico Paciência, do livro Contos Novos (1943), mas na verdade há referências sutis espalhadas por toda sua poesia, crônicas, cartas e - o que eu mais gosto - nos Contos de Belazarte, escritos em 1923-25. Dos 7, 3 descrevem mulheres que se envolvem com cafajestes, e terminam com a frase “Fulana era muito infeliz”. Um descreve os sofrimentos do filho pequeno de uma dessas, e outro a paixão de uma adolescente por um professor. No 5º conto, o narrador conhece no bonde um jovem negro cujos olhos “adoçavam tudo que nem verso de Rilke”, e o contrata como doméstico. Não conseguindo romper as barreiras, ajuda-o a casar, batiza o filho… mas admite explicitamente que almejava um amor também corporal.

E aí aparece Nízia Figueira, última remanescente de uma família tradicional. O pai morre e deixa Nízia, aos 16, com um sítio nas imediações de São Paulo e uma criada negra uns dez anos mais velha: a prima Rufina. Vigorosa, esta empreende o plantio de frutas e hortas e vai vender na cidade, junto com os trabalhos de Nízia em tricô. Juntam seu dinheiro, aparecem pretendentes, Nízia nem sabe namorar, o tempo passa, pretendentes desistem, dores vêm e vão… e vão ficando só as duas e a cachaça: “Prima Rufina, se encostando em quanta parede achava, puxava Nízia. Nízia se erguia, agarrava o garrafão em meio, e as duas, se encostando uma na outra, iam pro quarto”. Sexo? O conto não dá nome. Mas fala de uma intimidade em que uma “acabava se aconchegando entre as pernas da outra, fazendo daquela barriga estufada um travesseiro cômodo”. Uma adormecia, a outra “ficava piscando devagar, mansamente. Que calma!”… E o livro ousa concluir: “Nízia era muito feliz”.

Noto agora que estes três textos atacam não só a barreira do sexo igual, mas também a racial, e dois deles a de classe social. Talvez por isso eu goste tanto deles: não são LGBT em abstrato: tratam de um lugar chamado BRASIL.
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20 setembro 2013

AMORES DE GUERREIROS ANCESTRAIS nº 2

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Publicado originalmente em 13/09/2013 na coluna Espaço LGBT do jornal ES Hoje
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Contam antigos papiros que Baskã reinava sobre o pequeno mas aguerrido povo de Akã, nos confins da Ásia. Colérico e instável, era menos querido que o filho Hediyê, autor de proezas nas lutas constantes com os vizinhos rakip - mas nenhuma comparável à do desconhecido boieiro Sevgili, que surpreendeu a todos abatendo o maior guerreiro rakip, pelo quê Baskã o convidou ao palácio. Sevgili sentiu-se honrado, mas nada à vontade na presença do rei - até que chegou o príncipe e (dizem os papiros) “a alma de Hediyê se ligou à alma de Sevgili”.

De olho numa junção de talentos guerreiros, Baskã mandou Sevgili ficar no palácio. Mal cabendo em si, Hediyê tirou e lhe deu sua túnica principesca e, sentindo que era pouco, entregou também o cinto, as melhores roupas, o arco, a espada - como querendo que o outro dividisse com ele o seu lugar na roupa e na vida, pois “o amava como à sua própria alma”.

Sevgili acompanhava Baskã nas batalhas, e tudo ia bem até que o rei reparou que o povo gabava mais os feitos de Sevgili que os seus. Alarmado, mandou que o matassem, mas Sevgili foi avisado e escapou para um esconderijo no mato, onde Hediyê o encontrava. O príncipe tentou demover o pai - mas este se enfureceu ainda mais e por pouco não acerta a lança no próprio filho, gritando “pensa que eu não sei que te juntaste ao boieiro, para vergonha tua e da vida-torta que te pôs no mundo?”
 

Assim Sevgili entendeu que precisava partir para outras terras, e se despediram beijando-se, abraçando-se e chorando em abundância, e Hediyê lhe dizia: “Tu vais vencer. Teus inimigos terão até os nomes varridos da Terra - mas meu nome há de ficar porque eu fiquei contigo. Até meu pai já entendeu que tu serás o rei, e eu serei o teu braço direito, e o nosso Deus Supremo unirá a tua descendência e a minha para sempre”. Pois (dizem os papiros) “Hediyê amava Sevgili com todo o amor da sua alma”.

Muito tempo passou, e muitos conflitos sangrentos naquela terra conturbada - até que um dia Baskã e seus filhos foram emboscados e, sem Sevgili para ajudar, trucidados pelos rakip. Ao sabê-lo, Sevgili chorou amargamente a batalha perdida e a morte do rei que, apesar de tudo, ele havia querido como a um pai - culminando seu pranto na declaração “Hediyê, meu irmão, a dor por ti me transpassa! Tu eras minha alegria, e o teu amor mais desejável para mim que o amor das mulheres”. Pouco depois Sevgili se tornou rei de Akã, e mandou buscar o filho de Hediyê para o proteger.

Que tremenda história de amor gay! Ou não? Homens que assumem sua natureza homoafetiva reconhecem de imediato o sentimento de cada frase. Se emocionam que há 3 mil anos alguém tenha descrito com tal precisão sensações que conhecem tão bem! Mas há quem não admita - pois essa história é da Bíblia, apenas mudei os nomes Jônatas, Davi, Saul e Israel por palavras turcas. Ninguém vê razão para negar que heróis bíblicos matassem, tivessem mulheres mil - mas que amassem um ao outro de corpo e alma, isso “não pode estar lá”. Não procure a razão: não há.

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13 setembro 2013

Os tais ex-gays e o caso bi

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Publicado originalmente no jornal ES Hoje, em 09.08.2013
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É uma minoria barulhenta, entre os religiosos, quem insiste em julgar a diversidade natural como anormal e abominação. E essa deu de apregoar que uma meia dúzia de ex-gays ou ex-travestis seriam prova de que o caminho certo para todos os 20 milhões de LGBTs brasileiros é aceitar a religião deles para virarem normais. Ativistas LGBT retrucam com fúria que orientação sexual não muda e os ditos ex só estão mentindo a si mesmos. Não é sem razão - mas parece que travamos nesse -É! -Não é! e não vamos adiante. Que tal tentar enfrentar a questão com um pouco mais de ginga?

Vejam: tem muito homem que nunca sonhou fazer sexo com outro, viveu um casamento convencional por anos ou décadas, até que um dia, por brincadeira ou bebedeira, consentiu em uma aproximação - e aí não quer mais ficar sem o sexo entre iguais. Alguns desses conservam o interesse em mulheres, outros perdem completamente. E aí: houve mudança de orientação sexual, não houve? Acreditem: não!

Kinsey apontou 7 variações do desejo, conforme seus objetos: 0: Só diferentes, nenhum igual. 1: Um igual vez ou outra. 2: Iguais com considerável frequência, mas os diferentes ganham. 3: Diferentes e iguais na mesma medida. 4: Diferentes com considerável frequência, mas os iguais ganham. 5: Diferentes só vez ou outra. 6: Exclusivamente iguais. Como se vê, 5 dos 7 tipos são capazes de prazer com os dois sexos, só 2 não são. A população de gays/lés 100% é relativamente pequena, mas a de 100% héteros também. Em períodos longos sem contato com o sexo oposto, a maior parte se descobre capaz de desejo por iguais. Dos que não chegam a praticar, a maioria se contém com esforço e por medo incutido, bem poucos por nem chegarem a desejar.

Nenhum hétero exclusivo optou por ser assim: simplesmente é. O mesmo vale para gays/lés exclusiv@s. Já o bissexual, tampouco optou por desejar os dois, mas tem sim 3 opções para realizar o desejo: só com iguais, só com diferentes, ou com os dois. Sua história de vida pode ter levado a começar por um dos lados, e esse ter sido satisfatório o bastante para ele nem desconfiar que o outro lhe poderia ser igualmente bom, ou ainda melhor. Supostos ex-gays, se estão felizes, são é bissexuais explorando outra de suas possibilidades. Ex-héteros podem ser a mesma coisa, ou são gays quase-exclusivos que haviam se deixado dominar pela doutrinação social heteronormativa. Alguns destes se libertam sozinhos ou com ajuda de amigos, outros só com ajuda psicológica.


Reconheçamos: também existem héteros quase-exclusivos que a vida levou a viver como homossexuais ou mesmo travestis em situações p.ex. de prostituição forçada por penúria ou escravização. Quando essas condições cessam, tais héteros reencontram sua orientação sem psicólogo nem pastor, pois no rumo hétero a sociedade inteira ajuda. Mas se ser ex-gay te custa esforço, terapia ou oração, meu bem… então seu caso não é esse - e aí só posso dizer: despacha da tua vida esses parasitas, se solta… e (re)começa a ser feliz sendo o gay que Deus te fez!
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02 setembro 2013

DAS GRACIOSAS ESTRATÉGIAS DOS QUE QUEREM VER UM MUNDO EM CHAMAS

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Com um pé no em nosso nível natural-animal, outro no nosso nível cultural, BRINCAR sempre foi exercitar simuladamente, na infância, habilidades que serão aplicadas pra valer na vida adulta, com a adolescência como uma fase de transição gradual entre a simulação e o pra valer (não importa A MÍNIMA que a adolescência só tenha começado a ser NOMEADA a partir do século tal - antes que me venham com esse tipo de clichê acadêmico europeu).

Também não me venham com aquele papo de que "se jogos violentos produzissem pessoas violentas, jogar Banco Imobiliário produziria ricos". Pois jogar Banco Imobiliário de fato pode estimular o espírito competitivo-especulativo, mas FICAR RICO É UM CRIME DE EXECUÇÃO MUITO MAIS DIFÍCIL que sair dando tiros em alguém - e é por isso que tão pouca gente consegue, mesmo que tenha jogado Banco Imobiliário.

De resto, se apenas 1% dos que jogam games violentos forem induzidos por isso a serem violentos na vida real, isso significará um estrago bárbaro na vida coletiva. Provavelmente são bem menos que 1% os que partem para violência aberta - e mesmo isso JÁ VEM fazendo um estrago bárbaro - à parte determinado tempero nas atitudes de vida mesmo daqueles que não chegam à violência aberta.

Enfim: A CHAVE DO SISTEMA DE DOMINAÇÃO do Império Mundial dos Psicopatas, dominação sob a qual vivemos, é manter todos em conflito com todos, ou a ponto de, tanto na escala microssocial (indivíduos, famílias, grupos de trabalho), quanto na meso (empresas médias, política local e regional) e na macro (grandes corporações, relações internacionais, etc).

Para eles, não importa o credo ideológico que as pessoas recitem, o importante é que estejam em conflito, incapacitadas de construírem consensos e estabelecerem laços. O avô de Bush viabilizava o acesso de Hitler ao aço e o acesso de Stálin ao petróleo, no mesmo momento em que estes guerreavam um com o outro. George Orwell identificou e exemplificou o jogo naquela peça supostamente de ficção que é "1984": QUEM CONTROLA OS DOIS LADOS DO CONFLITO CONTROLA O RESULTADO. E para isso é essencial que tudo ESTEJA sempre em conflito, pois aí as peças estão soltas, móveis, manipuláveis.

Por isso vamos, vamos meninos: vamos brincar de surto e de psicose!!  É DIVERTIDO... e, não, não, não pode ter nenhuma consequência nociva, isso é papo de careta que não entende o dinamismo e a ludicidade da vida das crianças e adolescentes de hoje...

Com vocês, então, o Lança Chamas (Flammen-werfer) disponilbilizado por essa nobre instituição educacional que é o UOL-Folha, para você brincar de DESTRUIR CIDADÃOS, e DETONAR FORÇAS POLICIAIS (neste caso representando o papel que DEVERIAM ter: protetores dos tais cidadãos) - enquanto GANHA DINHEIRO e APERFEIÇOA SUAS HABILIDADES... DE DESTRUIÇÃO,

... oh bravos jovens soldados das novas S.A. (Divisões de Assalto) que apenas não cantam mais 'Deutschland über alles' e sim "o clarão vermelho dos foguetes e as bombas estourando no ar" - visão essa que *é o atestado de que a 'bandeira decorada de estrelas' está dominando o lugar* (conforme reza a primeira estrofe do hino nacional da Matriz).
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08 agosto 2013

O direito e o torto em liberdade e em repressão

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PUBLICADO ORIGINALMENTE NO JORNAL ES HOJE, em 13.07.2013



Em junho prometi seguir detalhando as 1001 Diversidades da sexualidade - e não deixarei de cumprir. Mas, conversando com gente que leu a coluna, ouvi falas como “para mim até tal ponto vai - mas tal outra coisa já passa dos limites” - e percebi que antes de prosseguir é fundamental conversar sobre isso: existem mesmo esses limites? E, se existem, quais são? Existem, p.ex., mulheres trans que anteriormente viviam o papel de homem em um casamento hétero, fizeram operação de transgenitalização, e quiseram continuar vivendo com a esposa de antes num casamento lésbico. E aí? Conheço quem fique indignado dizendo que isso passa dos limites - e quem veja aí uma comovente história de amor.

Há mais de cem anos surgiu a psicanálise. Milhões de pessoas já foram analisadas, e se descobriu que todos têm fantasias sexuais que não dá pra falar, pois vão bem além do que as pessoas dizem umas pras outras que é o normal. Por volta de 1950 Alfred Kinsey pesquisou também as práticas de milhões de pessoas - e se comprovou o dito de Nelson Rodrigues: de perto ninguém é normal!

Então a Ciência diz que pode tudo? Não! A Ciência descreve o que acontece, quem analisa o que se pode é a Ética, filha da Reflexão com a Investigação, mestra de todo Direito digno desse nome (Ética filosófica, não a da tradição, pois esta, religiosa ou não, costuma ser só desculpa para manter a Lei do Mais Forte - que é a própria negação do Direito). E a primeira coisa que a Ética diz é o óbvio que todo mundo pensa que entende - só que não: o limite da liberdade de um é a liberdade do outro. Também na cama: o que dois (ou mais!) fazem por querer, sem um forçar o outro, por que não poderiam? É esse o único limite necessário: quando se força alguém a fazer algo, aí devemos entender que há crime - não por se tratar de sexo, e sim porque, ao tratar um ser humano como objeto, lhe estamos violentando o órgão que o faz ser humano: sua liberdade.

Estuprar, fazer entregar a carteira ou a vida, ou criar situações que obriguem o outro a aceitar condições de trabalho indignas para não ver os filhos na fome, são no fundo a mesma coisa. Forçar o outro devia ser considerado crime sempre, exceto em um caso: reprimir a execução desses crimes, o que não é violentar nenhuma liberdade legítima: é impedir que a liberdade primária de alguém, legítima, seja destruída por uma liberdade nível 2, ilegítima. Já a liberdade nível 3, que reprime a nível 2, é legítima, pois significa proteger a liberdade primária, a qual é a própria humanitude de cada ser humano.

Então está claro: forçar o outro a fazer o que ele não quer é crime. E forçar o outro a não fazer o que ele quer? Se um homem quer beijar outro, e o outro também quer, a liberdade de impedir não é direito de ninguém, é um torto a ser reconhecido como crime - e pregar que dois homens que se beijam livremente devam ser reprimidos, reconhecido como crime de incitação ao crime. Reprimir tais crimes contra a humani/liber/dade é mais que um direito: tem que ser também um dever.
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29 julho 2013

ENTRE A DOMINAÇÃO DO IMPÉRIO E A LIVRE COOPERAÇÃO: a humanidade em sua longa encruzilhada - inclusive o Brasil (capítulo 1/6)

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ENTRE A DOMINAÇÃO DO IMPÉRIO E  A LIVRE COOPERAÇÃO: A HUMANIDADE EM SUA LONGA ENCRUZILHADA - INCLUSIVE O BRASIL (1/6)

Ralf Rickli - julho de 2013

1. PRÓLOGO:  AS FORÇAS EM JOGO DESDE QUE EXISTE GENTE

Para enfrentar o modesto propósito de resumir a história da humanidade em três páginas como introdução ao dia de hoje, “comecemos pondo de lado os fatos” (como disse um dia um certo Rousseau), ficando apenas com as estruturas que estão por trás da maior parte deles. Modestamente...

1.1   A quase totalidade dos problemas da humanidade deriva de um só, que é um detalhe estrutural do caráter humano: a vontade que cada pessoa sente de dominar outra(s) pessoa(s). Em outras palavras: a vontade de usar sua liberdade para destruir liberdades de outros.

1.2   Liberdade é a condição de poder exercer sua própria vontade (fazer o que se quer). A liberdade é individual por natureza: se refere a cada um.

1.3   Igualdade é o coletivo de liberdade. É a condição de cada integrante de um conjunto de  seres humanos poder exercer sua própria vontade, nenhum com menos possibilidades que outro. Portanto, ao contrário do que alguns pensam, a igualdade não se opõe à liberdade, e sim a leva ao máximo possível no plural (qualquer número de dois para mais).

1.4   Individualismo, entendido com honestidade, só pode significar “cada um exercer sua vontade nos limites do que é capaz sozinho: sem colaboração nem serviço de nenhum outro”. Já se provou que um ser humano dificilmente sobrevive nessas condições, e se sobrevive não realiza nada além de sobreviver. (Se chega a realizar, já não é de modo verdadeiramente individualista, pois é com capacidades que absorveu dos outros membros  de uma coletividade, ao crescer. Sem coletividade, nenhum filhote de Homo chega a se efetivar como sapiens).

1.5   Fraternidade, solidariedade ou cooperação é associar as vontades individuais para a realização coletiva de fins que beneficiem a todos os integrantes de uma coletividade. (Por brevidade, podemos admitir a palavra “desenvolvimento” para essa realização de benefícios). Isso depende de cada um ceder um pouco da sua liberdade, para harmonizá-la com as dos outros, enquanto quiser fazer parte da coletividade. Das formas possíveis de desenvolvimento, esta é a que se empenha em não se afastar da igualdade (ou afastar-se o menos possível). Importante: a neurociência mostrou que o ser humano é biologicamente capacitado para isso mediante o “circuito da empatia”.

1.5.1   Pode-se dizer que organização fraterna ou cooperativa é horizontal, pois as pessoas ficam mais ou menos em um mesmo nível de poder.

1.5.2   “Esquerda” é uma designação tradicional da busca por uma sociedade de cooperação igualitária e horizontalidade em geral. Se muitos pensam que “esquerda” se refere a uma busca de fortalecimento do poder do Estado, isso decorre da problemática que será abordada em 1.7 (a tentativa de usar o Estado em defesa da igualdade).

1.6   Tirania, ou dominação é uma pessoa usar sua liberdade para se apropriar da liberdade de outra(s). Com a dominação, a vontade de uma só pessoa passa a dispor da força de outra(s) para se realizar: em lugar de dispor de 2 braços, passa a dispor de 4 braços, ou de 40, ou mesmo de, p.ex., 400 mil. O dominador se torna como que sobre-humano às custas da sub-humanização ou desumanização de outros (pois um ser humano privado de liberdade está desumanizado).

1.6.1   Pode-se dizer que a dominação é vertical, em contraste com a horizontalidade da cooperação, mencionada em 1.5.1.

1.6.2   Cooperação entre dominadores para melhor dominar constitui oligarquia, o que (simplificando bastante) termina dividindo a coletividade em classes. Neste momento não é necessário distinguir entre os diferentes estilos e agentes históricos (p.ex. feudalismo e capitalismo, aristocracia e burguesia, etc.); o fundamento geral é que a classe dominante fica com os meios de produção (terra, máquinas, capital) e, para não sucumbirem todos à fome e outras necessidades, a classe sem meios termina cedendo sua força de trabalho para operar esses meios, formando uma sociedade intencionalmente desigual.

1.6.3   O objetivo da dominação é a própria dominação, ou seja: exercer poder sobre outro(s). Termos econômicos como “lucro” não comunicam claramente a natureza desse objetivo: o lucro só interessa por ser um meio de aumentar a reserva de poder do dominador.

1.6.3.1   Psicológica e neurologicamente, a efetivação do impulso de dominação só é possível em uma condição de psicopatia (incapacidade de sentir o que o outro sente), o que é deficiência do funcionamento do circuito da empatia referido em 1.5. (Voltaremos a isso no epílogo.)

1.6.4   A dominação é sempre imposta à força - seja força das armas, seja de trapaças econômicas que levam à necessidade, seja da difusão de crenças enganosas.

1.6.4.1   A violência inicial que institui a dominação costuma vir maquiada em termos como grandeza, nobreza, majestade. A palavra “violência” costuma ser reservada para as reações dos oprimidos contra a dominação - reações muitas vezes apontadas como “tentativa de dividir a sociedade”, quando apenas desnudam a divisão à força que fez a sociedade ser como é.

1.6.4.2   A maquiagem sistemática da dominação termina por constituir um vasto sistema de crenças que se reproduz de geração em geração, em parte automaticamente, em parte mediante ações intencionais. (Na linguagem marxista, a palavra ideologia se refere a esse sistema de crenças obscurecedoras, porém é preciso cuidado com essa palavra, pois também é usada com outros sentidos em outros sistemas de linguagem, e a maior parte das pessoas termina por usá-la com sentidos distintos em diferentes momentos).



1.6.5   O sentido original do Estado é a imposição de vontade dos tiranos através de grupos de trabalhadores cooptados e armados para isso. Nos termos tradicionais do interior do Brasil,  “os hómi do coronel”: jagunços, feitor, capataz, administrador etc.

1.6.5.1   Esse sistema de imposição de vontade costuma ser apresentado aos dominados como tendo a finalidade de protegê-los de perigos. Às vezes de fato há perigos reais que vêm de fora do conjunto, mas também pode se tratar de perigos inventados e propagandeados, ou mesmo de perigos reais criados com a finalidade específica de convencer que tal “proteção” é necessária.

1.6.5.2   O Estado raramente foi ele mesmo a cabeça do poder: geralmente é apenas meio de imposição do poder de alguma oligarquia, que normalmente nem é vista ou conhecida com clareza, pois faz o Estado se expor e se arriscar em seu lugar.

1.6.5.2.1   Portanto, a dominação se realiza sempre mediante conspiração. Onde há dominação, conspiração não é uma exceção e sim a regra. Para obscurecer esse fato, realiza-se a metaconspiração que é divulgar, por um lado, teorias de conspiração mirabolantes, irreais, e por outro, divulgar a crença de que conspirações não existem e que é ridículo dar crédito a toda e qualquer teoria de conspiração. Isso faz parte das operações da ideologia, no sentido exposto em 1.6.4.2.

1.6.6   “Direita” é uma designação tradicional de tudo o que busca a perpetuação da verticalidade, ou seja: da desigualdade e das estruturas de dominação. Muitas vezes, porém, a direita propõe a desmontagem do Estado, e aí muitos acreditam que ela está propondo liberdade e horizontalidade - quando se trata de uma forma mais refinada de dominação: ela pode (p.ex.) produzir uma relativa igualdade entre os dominados, enquanto controla as condições a partir de uma posição cada vez mais invisível e/ou maquiada por propaganda. Uma estrutura, obviamente, bem mais difícil de combater que a de uma dominação escancarada. (Comparar com “esquerda” em 1.5.2)

1.7   Onde houve tentativas de desfazer a dominação, retornando o poder à coletividade una e cooperativa, tentou-se também inverter o sentido original do Estado: um Estado Democrático seria um sistema de defesa da coletividade igualitariamente livre contra as tentativas de dominá-la e tiranizá-la. A ideia não é descabida, pois a tirania usa força: como resistir a ela sem também usar força?

1.7.1   Em relação a um Estado Democrático ideal, pode-se falar de uma verticalidade defensiva, cuja finalidade seria se contrapor à verticalidade da dominação para garantir que a coletividade possa permanecer organizada horizontalmente, ou seja: de modo fraterno.

1.7.2   Chegamos aqui ao drama central da Política, até hoje não resolvido: toda coletividade sem um sistema de defesa está de fato sujeita a ser apresada e tiranizada por forças externas. Mas a força que serve para defender é a mesma que serve para atacar. Como garantir que essa força não seja usada para tiranizar a própria coletividade que deveria defender? Ou seja: como evitar que o Estado Democrático passe a atuar como Estado Tirânico, seja a partir de si mesmo, gerando uma nova oligarquia (como aconteceu na sequência da Revolução Russa), seja associando-se às forças externas referidas acima (como em 1964 no Brasil)? (Sobre isso e a Revolução Russa, recomendo enfaticamente a seguinte fala de Noam Chomsky, por mais que isso venha a me custar pedradas de muitos: http://www.youtube.com/watch?v=zDJee4stYN0 )

1.7.3   A honestidade obriga a reconhecer que um Estado Democrático permanece como ideal: nunca foi plenamente realizado. Já houve tentativas significativas, mas poucas vezes duraram.

1.7.3.1   Isso parece dar razão aos anarquistas: melhor seria ter Estado nenhum desde já - mas esse “desde já” é totalmente ilusório: retire-se totalmente o Estado de uma coletividade, e ela logo será apresada pelo Estado vigente em outra coletividade, que com isso se expande como Estado Imperialista. Ou seja: enquanto subsistir alguma oligarquia no mundo, toda tentativa de implantar anarquismo levará apenas à submissão a senhores ainda mais remotos que os anteriores.

1.7.3.2   O próprio Marx entendia isso. Ele preconizava a tomada das estruturas de poder pelas classes trabalhadoras para em seguida desmontá-las, levando a uma sociedade sem classes e sem Estado: é isso o que ele entendia como “a Revolução”. Mas ele mesmo tinha claro que tal Revolução teria que ser mundial, numa só sequência de acontecimentos. Pois uma sociedade revolucionada meramente local seria logo conquistada por forças de dominação externas - ou então teria que parar no meio do processo (antes de atingir a condição igualitária desejada) para ter meios de se defender desses ataques externos - gerando mais uma vez um Estado potencialmente tão opressor quanto aqueles a que tenta resistir. De modo que a Dominação triunfa mais uma vez: ou invadindo diretamente a área revolucionada, ou gerando nela um espelhamento de si.

1.7.3.3   Isso sugere que de momento o melhor que se pode almejar (ou o menos ruim) é lutar pelo aperfeiçoamento do Estado Democrático - justamente no sentido de que seja efetivamente Democrático, inventando-se meios de impedir que se torne Tirânico como de costume - até que um dia existam condições mundiais para a abolição de todo e qualquer sistema de dominação, de uma vez em todo mundo.

1.7.3.3.1   Mas não será pensável que já tenhamos atingido essas condições mundiais “para a abolição de todo e qualquer sistema de dominação, de uma vez em todo mundo”? Tentar lidar com essa questão em termos de reflexão genérica, como fizemos até aqui, seria uma futilidade suicida: aqui é forçoso saltar para dentro do conhecimento de fatos concretos, com localização definida no tempo e no espaço.

Próximo capítulo:
2. A REALIDADE DO IMPÉRIO: A TIRANIA MUNDIAL ATIVA
(quando eu conseguir!)
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Reflexões sobre junho-julho 2013: O NEGÓCIO DA REVOLUÇÃO, vídeo que TODOS precisam assistir!!

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Finalmente legendado em português - está aí um vídeo de 27 minutos que nenhum brasileiro pode deixar de assistir neste momento! (Só um detalhe: o original se chama THE REVOLUTION BUSINESS, e não "the business of revolution").
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Reflexões sobre junho-julho 2013: Movimento Occupy denunciou o fascismo dos Black Bloc já no início de 2012

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Esta matéria de CHRIS HEDGE, publicada nos EUA em 06/02/2012, mostra que, tanto lá como aqui, BLACK BLOCs e P2 são diferentes cepas DO MESMO VÍRUS - inoculados na sociedade por agentes DO MESMO IMPÉRIO, como VACINA ANTI-REVOLUÇÃO.

Título original: THE CANCER IN OCCUPY
http://www.truthdig.com/report/page2/the_cancer_of_occupy_20120206/
Tradução e notas entre colchetes: Ralf R.


Os anarquistas Black Bloc, que estiveram em ação nas ruas de Oakland e de outras cidades, são o câncer do movimento Occupy. A presença de anarquistas Black Bloc - chamados assim porque se vestem de preto, escondem a cara, se movem como massa unificada, buscam confrontos físicos com a polícia e destroem propriedades - é um presente do céu para o Estado da Segurança e Vigilância. Os acampamentos Occupy em várias cidades foram fechados justamente porque eram não violentos. Foram fechados porque o Estado percebeu seu amplo potencial de atração, até mesmo para os de dentro dos sistemas de poder. Foram fechados porque articularam uma verdade, sobre o nosso sistema econômico e político, que cruzava transversalmente as linhas políticas e culturais. E foram fechados porque eram locais onde mães e pais com carrinhos de bebê se sentiam seguros.

Os adeptos do Black Bloc detestam a nós que estamos na esquerda organizada, e procuram, bem conscientemente, nos arrancar nossos instrumentos de empoderamento. Confundem com revolução o que são atos de vandalismo banal e de repugnante cinismo. Os verdadeiros inimigos, eles argumentam, não são os capitalistas corporativos, e sim os seus colaboradores no meio dos sindicatos, dos movimentos de trabalhadores, dos intelectuais radicais, ativistas ambientais e movimentos populares como os zapatistas. Qualquer grupo que busca re-estruturar estruturas sociais, especialmente por meio de atos de desobediência civil não violenta ao invés de destruir fisicamente, se torna o inimigo, aos olhos dos Black Bloc. Anarquistas Black Bloc empregam a maior parte da sua fúria não contra os arquitetos do NAFTA (Acordo Norte-Americano de Livre Comércio) ou da globalização, e sim contra os que reagem contra esse problema, como os zapatistas. É uma inversão de sistemas de valores grotesca.

Por não acreditarem em organização, e na verdade se oporem a todos os movimentos organizados, os anarquistas Black Bloc garantem sua própria impotência. Tudo o que eles conseguem ser é obstrucionistas. E são obstrucionistas principalmente para aqueles que resistem. John Zerzan, um dos principais ideólogos do movimento Black Bloc nos Estados Unidos, defendeu o desconexo manifesto "A sociedade industrial e o seu futuro", de Theodore Kaczynski, conhecido como Unabomber, mesmo se não endossou seus atentados. Zerzan é um feroz crítico de uma longa lista de supostos vendidos, a começar por Noam Chomsky. Anarquistas Black Bloc são um exemplo do que Theodore Roszak, em "The Making of a Counter Culture", chamava de "progressiva adolescentização" da esquerda estadunidense.

Em sua extinta revista Green Anarchy (que sobrevive como website), Zerzan publicou um artigo escrito por alguém chamado "Borboleta Venenosa” (Venomous Butterfly), que execrava o Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN). O artigo dizia que "os objetivos dos zapatistas não só não são anarquistas, como sequer são revolucionários. Também denunciou o movimento indígena por “linguagem nacionalista", pelo fato de defender que o povo tem direito de “alterar ou modificar sua forma de governo”, e por ter como objetivos “trabalho, terra, moradia, saúde, educação, independência, liberdade, democracia, justiça e paz”. Tal movimento, o artigo afirmava, não seria digno de apoio pois não demandava "nada de concreto que não possa ser fornecido pelo capitalismo. "

"É claro que não se pode esperar", continuava o artigo, "que as lutas sociais dos explorados e oprimidos se adaptem a algum ideal anarquista abstrato. Essas lutas surgem em situações particulares, provocadas por eventos específicos. A questão da solidariedade revolucionária com essas lutas é, portanto, a de como intervir de um modo que sirva aos nossos próprios objetivos, de uma maneira que seja vantajosa para o nosso projeto revolucionário anarquista." [O original usa o eufemismo “one’s”, mas não há falseamento em traduzi-lo por “nosso”].

Solidariedade vem a ser então o sequestro ou destruição de movimentos concorrentes, o que é exatamente o que os contingentes Black Bloc estão tentando fazer com o movimento Occupy.

"Os Black Bloc podem dizer que estão atacando policiais, mas o que eles realmente estão fazendo é destruir o movimento Occupy", me disse o escritor e ativista ambiental Derrick Jensen quando o contatei por telefone na Califórnia. "Se o seu alvo fosse de fato a polícia, e não o movimento Occupy, os Black Bloc separariam completamente suas ações das do Occupy, em vez de efetivamente usar este último como escudo humano. Seus ataques a policiais são meramente um meio para outra finalidade, que é a de destruir um movimento que não se encaixa no seu padrão ideológico."

"Não vejo problemas no emprego de táticas de escalada [aumento gradativo de pressão que pode chegar a atos violento] para algum tipo de resistência militante, se isso for moral, estratégica e taticamente apropriado", prosseguiu Jensen. "Isso vale no caso de você levantar um cartaz, uma pedra ou uma arma. Mas você tem que ter refletido sobre isso. Os Black Bloc passam mais tempo tentando destruir movimentos que atacando quem está no poder. Eles odeiam mais a esquerda que os capitalistas."

"Seu modo de pensar não é apenas não estratégico, mas ativamente contrário à estratégia", disse Jensen, autor de vários livros, incluindo "The Culture of Make Believe" (A cultura do faz-de-conta). "Eles não estão dispostos a pensar criticamente sobre se a pessoa está agindo de forma adequada no momento. Não vejo problemas em alguém violar limites quando essa violação é a coisa mais inteligente ou apropriada a fazer - mas vejo enorme problema em pessoas que violam limites apenas para violar limites. É muito mais fácil pegar uma pedra e jogar na janela mais próxima do que organizar - ou que pelo menos descobrir em qual janela você deve jogar a pedra, se você for jogar uma pedra. Muito disso é preguiça."

Grupos de manifestantes Black Bloc, por exemplo, moeram as janelas de um café de propriedade local e o saquearam, em novembro, em Oakland. Não era, como Jensen aponta, um ato estratégico, moral ou tático. Foi feito por fazer. Atos de violência, saques e vandalismo são justificados, no jargão do movimento, como componentes de insurreição "selvagem" (feral) ou "espontânea." O movimento defende que atos desse tipo nunca podem ser organizados. Organização, no pensamento do movimento, implica hierarquia, que deveria ser combatida sempre. Não poderia haver restrições a atos de insurreição “selvagens” ou "espontâneos". Quem se machucar se machucou. O que for destruído se destruiu, não importa o quê.

Há um adjetivo para isso: "criminoso".

O movimento Black Bloc está infectado com uma hipermasculinidade profundamente perturbadora. Essa hipermasculinidade, tenho a impressão, é o seu apelo básico. Ela cutuca a volúpia de destruir que se esconde dentro de nós - destruir não apenas coisas, mas também seres humanos. Ela oferece o poder como de deuses que vem com a violência da turba. Marchar como massa uniforme, todos vestidos de preto para se tornarem parte de um bloco anônimo com rostos cobertos, isso supera temporariamente a alienação, os sentimentos de inadequação, impotência e solidão. Confere aos participantes da massa um sentimento de camaradagem. Permite que uma raiva indefinida seja descarregada em qualquer alvo. Piedade, compaixão e delicadeza são banidos pela intoxicação do poder. É a mesma doença que alimenta os enxames de policiais que jogam spray de pimenta e espancam manifestantes pacíficos. É a doença dos soldados em guerra. Transforma seres humanos em feras.

Erich Maria Remarque escreveu em "Nada de novo no front ocidental": "nós íamos em frente, sobrepujados por essa onda que nos carrega, que nos enche de ferocidade, nos transforma em bandidos, em assassinos, em só Deus sabe o que diabos: essa onda que multiplica a nossa força pelo medo e loucura e gana de viver, buscando e lutando por nada além de sair dali” [for our deliverance: impossível determinar, fora de contexto, se se trata de “libertação” ou de “dispensa” no sentido militar].

O estado corporativo [corporate state: neste contexto, o estado dirigido por interesses privados associados para seu bem comum] entende e aplaude a linguagem da força. As táticas do Black Bloc de confronto e destruição de propriedades, o estado corporativo as pode usar para justificar formas de controle draconianas e para incutir medo de apoiar o movimento Occupy nas camadas mais amplas da população. Uma vez o movimento Occupy seja pintado como uma multidão que queima bandeiras e joga pedras, estamos acabados. Se ficamos isolados podemos ser esmagados. A prisão de mais de 400 manifestantes em Oakland na semana passada, alguns dos quais haviam jogado pedras, carregado escudos caseiros e feito barricadas, são uma indicação da dimensão da escalada de repressão, e do nosso fracasso em permanecermos uma oposição unificada e não violenta. A polícia atirou gás lacrimogêneo, granadas de efeito moral e disparos "menos letais" para o meio das multidões. Uma vez na prisão, foram negados medicamentos cruciais aos manifestantes, os quais foram mantidos em celas superlotadas e tocados de um lugar para outro. Uma marcha em Nova York, chamada em solidariedade aos manifestantes de Oakland, viu alguns manifestantes imitarem as táticas dos Black Bloc em Oakland, inclusive jogando garrafas contra a polícia e despejando de lixo na rua. Eles gritavam "foda-se a polícia" e “racist, sexist, anti-gay / NYPD go away" (racista, sexista, anti-gay / cai fora, polícia de Nova York).

Esta é uma luta para conquistar os corações e mentes de um público amplo, bem como daqueles que estão dentro das estruturas de poder e são dotados de uma consciência (incluindo a polícia). Não é uma guerra. Movimentos não violentos de certa forma recebem a brutalidade policial com abraços. A tentativa continuada do Estado de esmagar manifestantes pacíficos, que reivindicam meros atos de justiça, deslegitima a elite do poder. Isso incita uma população passiva a reagir, traz alguns de dentro das estruturas de poder para o nosso lado, e cria divisões internas que produzem paralisia na rede dos canais de autoridade. Martin Luther King promoveu marchas em Birmingham repetidamente porque sabia que o Comissário de Segurança Pública "Bull" Connor era um vilão que iria se exceder na reação.

O clichê da "diversidade de táticas", alegado pelos Black Bloc para acabar com a reflexão, termina por abrir caminho para que centenas ou milhares de manifestantes pacíficos sejam desacreditados por um punhado de arruaceiros. O Estado não poderia ficar mais feliz. É aposta segura, que entre os grupos Black Bloc em cidades como Oakland se encontram agentes provocadores instigando-os a fazer mais confusão. Mas, com ou sem infiltração policial, o Black Bloc está servindo aos interesses do um por cento. Esses anarquistas representam a ninguém além de si mesmos. Os que agiram em Oakland, embora em sua maioria fossem brancos, e muitos de fora da cidade, repudiaram arrogantemente as lideranças afroamericanas de Oakland, que, junto com outros organizadores comunitários locais, deveriam ter determinado as formas de resistência.

O crescimento explosivo do movimento Occupy Wall Street se deu quando algumas mulheres que ficaram encurraladas atrás de um isolamento de malha laranja foram atacadas com spray de pimenta pelo vice-inspetor Anthony Bologna, da Polícia de Nova York. A violência e a crueldade do Estado foram expostos. E o movimento Occupy, por meio de sua firme recusa em responder à provocação da polícia, repercutiu em todo o país. Perder essa autoridade moral, esta capacidade de mostrar através de protesto não-violento a corrupção e a decadência do estado corporativo, mutilaria o movimento. Seria reduzir-nos à degradação moral dos nossos opressores. E é isso o que nossos opressores querem.

O movimento Black Bloc tem a rigidez e dogmatismo de todas as seitas absolutistas. Só os seus adeptos possuem a verdade. Só eles entendem. Só eles se arrogam o direito - porque eles são iluminados e não somos - de repudiar e ignorar pontos de vista concorrentes como infantis e irrelevantes. Eles ouvem apenas as suas próprias vozes, dão atenção apenas a seus próprios pensamentos. Acreditam apenas em seus próprios clichês. E isso os faz não só profundamente intolerantes, mas também estúpidos.

"Se você é hostil à organização e ao pensamento estratégico, a única coisa que lhe resta é a pureza do seu estilo de vida", disse Jensen. “O ’estilismo de vida’ suplantou a organização em grande parte do pensamento ambientalista predominante [mainstream]. Em vez de se opor ao estado corporativista, o ‘estilismo de vida’ sustenta que devemos usar menos papel higiênico e fazer compostagem dos detritos. Este tipo de atitude é inefetivo. Se você abre mão de organizar, ou é hostil a organizar, tudo o que lhe resta é essa hiperpureza, que acaba se tornando dogma rígido. Você acaba atacando pessoas por usarem telefone, por exemplo. Isso vale para os vegans e as questões de alimentação. Vale para as atitudes dos ativistas anti-carro em relação a quem usa carro. Acontece o mesmo com os anarquistas. Quando eu liguei para a polícia depois de ter recebido ameaças de morte, para os anarquistas Black Bloc eu virei 'amante dos porcos’."

Jensen prosseguiu:"Se você vive no território Ogoni e você vê que Ken Saro-Wiwa foi assassinado por causa dos seus atos de resistência não violenta, e você vê que a sua terra continua sendo destruída, então você pode pensar em partir para uma escalada. Eu não tenho dificuldades com isso. Mas a gente tem que ter passado pelo processo de tentar atuar junto ao sistema e ter ‘se ferrado’. É só aí que cabe ‘avançar o sinal’. Não podemos dar curto-circuito no processo. Há um processo de maturação que a gente precisa ser atravessar, enquanto indivíduos e enquanto movimento. A gente não pode simplesmente dizer: 'Ei, vou jogar um vaso num policial porque eu acho legal."