Acredite nos que buscam a verdade... Duvide dos que encontraram! (A.Gide)

24 outubro 2009

novidades sérias sobre civilizações perdidas da Amazônia + reflexões sobre a dimensão ideológica

Atenção, tropeiros & dondemirantes & demais amigos que se levam a sério como buscadores de "caminhos tropicais de conhecimento e prática":
 
A matéria de que reproduzo trechos abaixo é muito mais que curiosidade. Ajuda a sintonizar o verdadeiro espírito que inspirou o impulso Trópis desde antes de vocês aparecerem - e se eu capto corretamente o espírito do Binho, também tem profundamente a ver com o impulso que o move no Dondemiras.
 
Depois da transcrição dos fragmentos comento um pouco mais sobre o sentido que vejo em ir atrás deste tipo de conhecimento!  Abraços .................... Ralf
 

 
Cidades perdidas da Amazônia
A floresta tropical amazônica não é tão selvagem quanto parece
 
[trechos selecionados por Ralf para os amigos]
 
Michael J. Heckenberger vem fazendo pesquisas arqueológicas na região do Xingu e em outras partes da Amazônia brasileira desde 1992, mais recentemente como professor da University of Florida
 
http://www2.uol.com.br/sciam/reportagens/img/xingu.jpg

Kuhikugu, conhecida pelos arqueólogos como sítio X11, é a maior
cidade pré-colombiana já descoberta na região do Xingu. Abrigava
mil pessoas ou mais e servia como o eixo central de uma rede de aldeias menores.
 
(...) Frequentemente os antropólogos viram o ambiente florestal, em geral, como não propício à agricultura; a pouca fertilidade do solo parecia excluir os grandes assentamentos ou as densas populações regionais.Por esse motivo, a Amazônia do passado parece [= parecia] ter sido muito semelhante à Amazônia dos tempos atuais.

Porém, essa visão começou a cair por terra na década de 70, conforme os acadêmicos revisaram os relatos dos primeiros europeus sobre a região, que falavam não de tribos pequenas, mas de densas populações. Conforme o best seller de Charles Mann "1491" descreve com eloquência, as Américas eram densamente habitadas na véspera do desembarque dos europeus, e a Amazônia não era exceção. Gaspar de Carvajal, o missionário que escreveu as crônicas da primeira expedição espanhola rio abaixo, observou cidades fortificadas, estradas largas com boa manutenção e muitas pessoas. Carvajal escreveu em seu relato de 25 de junho de 1542:

"Passamos entre algumas ilhas que pensávamos ser desabitadas, porém ao chegarmos por lá, tão numerosos eram os povoados que vieram à nossa vista... que nos afligiu... e, quando nos viram, saíram para nos encontrar no rio em mais de duas centenas de pirogas (canoas), carregando 20 a 30 índios em cada uma, e algumas até com 40... estavam enfeitados com cores e vários emblemas, e portavam várias cornetas e tambores... e em terra, uma coisa maravilhosa de ver foram as formações de grupos que ficavam nas aldeias, todos tocando instrumentos e dançando em toda parte, manifestando grande alegria ao nos ver passando pelas suas aldeias. "
 
A pesquisa arqueológica em várias áreas ao longo do rio Amazonas, como a ilha do Marajó na foz do rio e sítios próximos às modernas cidades de Santarém e Manaus, confirma esses relatos. Essas tribos interagiam em sistemas de comércio que se espalhavam até localidades remotas. Sabe se menos das localidades mais próximas dos limites ao sul da Amazônia, mas um trabalho recente em Llanos de Mojos nas várzeas da Bolívia e no estado do Acre sugere que eles também apresentaram sociedades complexas. Em 1720, o guarda de fronteira Antonio Pires de Campos descreveu uma paisagem densamente habitada na cabeceira do rio Tapajós, pouco a oeste de Xingu:

"Esses povos existem em um número tão enorme que não é possível contar seus povoados ou aldeias, [e] muitas vezes em um dia de marcha passa-se por 10 a 12 aldeias, e em cada uma há de 10 a 30 habitações, e dentre essas casas há algumas que medem 30 ou 40 passos de largura... até mesmo suas ruas, que eles fazem bem retas e largas são mantidas tão limpas que não se encontra nenhuma folha caída..."
Uma Antiga Cidade Murada
Robert Carneiro, do American Museum of Natural History, de Nova York, que morou com os cuicuro na década de 50, sugeriu que o estilo de vida organizado e a economia produtiva agrícola e pesqueira poderiam suprir comunidades muito mais substanciais, mil a 2 mil vezes maiores – várias vezes a população contemporânea de algumas centenas. Ele também registrou evidências de que, na realidade, a área já teve um sítio pré-histórico (designado X11 em nossa pesquisa arqueológica) cercado de imensos fossos. Os irmãos Villas Boas – indianistas brasileiros indicados para o Prêmio Nobel da Paz pela sua participação na criação do Parque do Xingu – já tinham relatado esses trabalhos [= esse tipo de obra] no solo perto de muitas aldeias.
 
(...)
 
Em janeiro de 1993, logo após eu ter chegado à aldeia dos cuicuro, o principal chefe hereditário, Afukaka, me levou a uma das valas no sítio (X6) por eles denominada Nokugu, que recebeu o nome do espírito de onça que se pensa lá habitar. Passamos por moradores locais que construíam um enorme açude de peixes ao longo do rio Angahuku, já cheio devido às chuvas sazonais. O fosso, que corre por mais de 2 km, tinha 2 a 3 metros de profundidade e mais de 10 metros de largura. Embora eu tivesse a expectativa de encontrar uma paisagem arqueológica diferente da atual, a escala dessas comunidades antigas e de suas construções me surpreendeu. Os assistentes de pesquisa cuicuro e eu passamos os meses seguintes mapeando esse e outros trabalhos no solo no sítio de 45 hectares.

Desde essa época, nossa equipe estudou vários outros sítios na área, analisando mais de 30 km em linha reta em transectos através da floresta, mapeando, examinando e escavando os sítios. No final de 1993, Afukaka e eu voltamos para Nokugu, para que eu relatasse o que aprendi. Seguimos os contornos do fosso externo do sítio e paramos ao lado de uma ponte de terra, por onde costumava passar uma estrada enorme que tínhamos desenterrado. Apontei para uma antiga estrada de terra, totalmente reta, com largura de 10 a 20 metros, que levava para outro sítio antigo, Heulugihïtï (X13), a cerca de 5 km de distância. Atravessamos a ponte e entramos em Nokugu.

A estrada, margeada por meios-fios baixos de terra, abriu-se até 40 metros – largura das autoestradas modernas de quatro pistas. Percorridas algumas centenas de metros, passamos por cima do fosso interno e paramos para observar o interior da trincheira escavada recentemente, onde tínhamos encontrado uma base em forma de funil, para uma paliçada de tronco de árvore. Afukaka contou-me uma história a respeito de aldeias construídas sobre paliçadas e ataques-surpresa em um passado remoto.

Caminhamos por trechos de floresta, arbustos e áreas desmatadas que agora cobrem o sítio, marcas de atividades variadas no passado. Saímos em meio a uma clareira gramada cercada de enormes palmeiras que marcavam uma antiga praça. Girei devagar e apontei a borda perfeitamente circular da praça, marcada por uma elevação de um metro de altura. Expliquei a Afukaka que as altas palmeiras lá se instalaram séculos atrás, a partir de jardins de compostagem em áreas domésticas.
 
Deixando a praça para explorar as redondezas, nos deparamos com altos sambaquis, depósitos de restos, que muito se assemelhavam aos de trás da casa do próprio Afukaka. Estavam repletos de recipientes quebrados, exatamente iguais, nos mínimos detalhes, aos utilizados pelas esposas da tribo para processar e cozinhar a mandioca. Em uma visita posterior, quando escavávamos uma casa pré-colombiana, o chefe curvou-se dentro da área central da cozinha e retirou um enorme fragmento de cerâmica. Disse que concordava com minha impressão de que o cotidiano da sociedade antiga era muito semelhante ao atual. "Você está certo!", Afukaka exclamou. "Veja, um apoio de panela" – um undagi, como os cuicuro o chamam, usado para o cozimento da mandioca.

Essas ligações fazem dos sítios dos xinguanos locais muito fascinantes, que se encontram entre os poucos assentamentos pré-colombianos na Amazônia onde a evidência arqueológica pode ser conectada diretamente com os costumes atuais. Em outros locais, a cultura indígena foi totalmente dizimada ou o registro arqueológico está disperso. A antiga cidade murada que mostrei a Afukaka era muito parecida com a aldeia atual, com sua praça central e estradas radiais, apenas eram dez vezes maiores.
 
Da Oca à Organização Política
"Suntuosa" não é uma palavra que, em geral, venha à mente para descrever uma casa com um tronco central e sapé. Ocidentais pensam em uma "cabana". Mas a casa que os cuicuro erguiam para o chefe em 1993 era enorme: bem mais de 1 mil m2. É difícil imaginar que uma casa construída como um cesto gigante virado para baixo, sem uso de pedras, cimento ou pregos pudesse ficar tão grande. Mesmo a casa comum de um xinguano com 250 m2 é tão grande quanto uma casa média americana.

O que faz a casa do chefe sobressair não é apenas o tamanho, mas também a sua posição, localizada no ponto mais ao sul da praça central circular. Quando se entra na aldeia pela estrada de acesso formal, as famílias de boa posição moram à direita (sul) e à esquerda (norte). O arranjo reproduz, em escala maior, a planta de uma casa individual, cujo ocupante de posição destacada pendura a sua rede à direita, ao longo do comprido eixo da casa. A estrada de acesso corre aproximadamente de este a oeste; na casa do chefe, sua rede fica posicionada na mesma direção. Quando um chefe morre, ele também é deixado em uma rede com a cabeça voltada para o oeste.
 
Este cálculo corpóreo básico é aplicado em todas as escalas, de ocas a toda a bacia do Alto Xingu. As aldeias antigas são distribuídas pela região e interconectadas por uma rede de estradas alinhadas com precisão. Quando cheguei pela primeira vez à área, levei semanas para mapear valas, praças e estradas usando as técnicas padrões de arqueologia. No início de 2002, começamos a usar o GPS, que nos permitiu mapear a maior parte dos trabalhos no solo em questão de dias. Descobrimos um grau impressionante de integração regional. O planejamento parece quase determinado, com um lugar específi co para tudo. No entanto, fundamentava-se nos mesmos princípios básicos das aldeias atuais. As estradas principais correm do leste para o oeste, as secundárias se irradiam para fora do norte e do sul e as menores proliferam em outras direções.
 
Mapeamos dois agrupamentos hierárquicos de povoados e aldeias em nossa área de estudo. Cada um consistia em um centro principal cerimonial e várias aldeias satélites grandes em posições precisas em relação ao centro. Essas cidades provavelmente tinham mil ou mais habitantes. As aldeias menores estavam localizadas mais longe do centro. O agrupamento do norte está centrado no X13, que não é uma cidade, e sim um centro de rituais, semelhante a um terreno para festividades.
 
(...)
 
A identificação de grandes núcleos populacionais murados, espalhados numa área comparável à de Sergipe, sugere que havia, no mínimo, 15 agrupamentos espalhados pelo Alto Xingu. Entretanto, como a maior parte da região não foi estudada, a quantidade correta pode ter sido muito superior. A datação por radio-carbono dos sítios já escavados sugere que os ancestrais dos xinguanos chegaram à região, vindos do oeste, e começaram a modificar as florestas e a zona úmida a seu critério cerca de 1.500 anos atrás ou até antes disso. Nos séculos que antecederam a descoberta da América pelos europeus, os sítios foram reformados, passando a compor uma estrutura hierárquica.
 
Cidades-Jardins da Amazônia
Há um século, o livro Garden cities of tomorrow (Cidades-jardins do futuro), de Ebenezer Howard, propôs um modelo para um crescimento urbano sustentável de baixa densidade populacional. Um precursor do movimento ecológico atual, Howard idealizou cidades interligadas como uma alternativa para um mundo industrial, repleto de cidades com arranha-céus. Sugeria dez cidades com dezenas de milhares de habitantes, que teriam a mesma capacidade funcional e administrativa que uma só megacidade.

Os antigos xinguanos parecem ter construído esse sistema, um tipo de urbanismo de estilo verde ou protourbanismo – uma incipiente cidade-jardim.
 
[Interpolado de um trecho anterior do artigo:]  A pessoa mais famosa a buscar civilizações perdidas no sul da Amazônia foi Percy Harrison Fawcett. O aventureiro britânico esquadrinhou o que denominou "selvas não mapeadas", buscando uma cidade antiga na Amazônia – a Atlântida – , repleta de pirâmides de pedra, ruas de seixos e escrita alfabética. Suas narrativas inspiraram Conan Doyle em O mundo perdido e talvez os filmes de Indiana Jones. O recente e empolgante livro de David Grann, The lost city of Z (Z, a cidade perdida), refez o trajeto de Fawcett antes de seu desaparecimento no Xingu, em 1925.
 
[Continuação do texto antes da interpolação:] Talvez Percy Fawcett estivesse no lugar certo, mas com o foco equivocado: cidades de pedra. O que faltava aos centros em termos de pequena escala e elaboração estrutural, os xinguanos conseguiam alcançar pela quantidade de cidades e por sua integração. Se Howard tivesse conhecimento de sua existência, poderia ter-lhes devotado um trecho no Garden cities of yesterday (Cidades-jardins do passado). O conceito comum de cidade como uma densa rede de prédios de alvenaria remonta à época das antigas civilizações dos oásis nos desertos, como na Mesopotâmia, mas que não possuíam as mesmas características ambientais. Não só as florestas tropicais amazônicas, como também as paisagens das florestas temperadas da maior parte da Europa medieval, eram pontilhadas por cidades e vilarejos de tamanhos similares a essas no Xingu.
 
http://www2.uol.com.br/sciam/reportagens/img/grafico_amazonia2.jpg 
 
http://www2.uol.com.br/sciam/reportagens/img/grafico_amazonia1.jpg
 

CONTINUAÇÃO e CONCLUSÃO das palavras de introdução da mensagem (Ralf)
 
Creio que para nós brasileiros descendentes apenas parcialmente de ameríndios e com quase-nada de de cultura ameríndia preservada, o foco central do interesse nas questões indígenas não pode ser a defesa da continuidade da cultura e organização dos grupos indígenas atuais.
 
Reparem que eu disse central. Claro que podemos nos dispor a colaborar com eles nisso, mas antes de mais nada se eles quiserem, e sob a liderança deles - ou então estaremos repetindo mais uma vez o discurso de que eles não são capazes de escolher seus caminhos por si, e dependem da nossa tutoria ou orientação... Bobagem imensa, pois todos os seus principais atos de resistência e sobretudo a atual renascença indígena aconteceram "pelas nossas costas".
 
Já quando tentamos sintonizar o espírito do ser-índio (leia-se "ser" como verbo), isso ajuda a nos transformarmos. E, com isso, nos tornarmos agentes de (1) tentativas de modificação dos cursos da civilização ocidental em que estamos inseridos OU de (2) geração de sementes, esporos, mudas, brotos de contraculturas (sub-culturas que evoluem em direção diferente da cultura principal).
 
Se fizermos isso, também estaremos colaborando com as lutas dos índios, mas de um modo não-invasivo. Pois afinal, para o bem deles, quem tem que se modificar é a civilização ocidental, não eles.
 
Estudarmos a natureza da civilização branda e difusa que os ancestrais deles (e parcialmente nossos) haviam construído nas Américas é um primeiro para a nossa reeducação necessária antes de sermos dignos de dialogar/colaborar com eles, quer diretamente, quer construindo nossos próprios rumos de um modo menos burro.
 
Um último detalhe: é um engano patético pensar que o estudo de concepções-de-mundo desenvolvidas na Europa seja suficiente para nos orientar diante do desafio de encontrar os modos de vida adequados nas Américas e nos trópicos em geral. Seja marxismo, liberalismo burguês, cristianismo histórico ou esotérico - qualquer outra coisa que tenha sido pensada sob aquelas condições, e não diretamente nestas.
 
Também a idéia de adaptar alguma coisa que tenha sido pensada em outras condições dá sempre em desastre.
 
O que temos que fazer é levarmos em conta todos esses pensamentos em conta ao repensarmos as questões a partir da nossa posição. Mas primeiro temos que limpar nossa cabeça da progamação predominantemente européia que ela recebeu - e um dos melhores caminhos para isso é a tentativa de nos sintonizarmos com o espírito antigo das Américas.
 
E a aproximação antropológica a isso pode ser um caminho relativamente mais neutro em termos de ideologia, sobretudo quando juntamos uma pluralidade de visões antropológicas não harmônicas entre si (sendo "ideologia", antes de mais nada, a universalização artificial de um particular, a ênfase na diversidade é o agente de desideologização por excelência).
 
No penúltimo trecho que destaquei em roxo no texto, temos o antropólogo de formação ocidental e o índio descobrindo o passado juntos, cada um contribuindo com os elementos, conhecimentos e técnicas de que dispõe. Dá para imaginar a emoção do índio ao descobrir naquele momento a confirmação de que os autores daquela civilização perdida eram os seus póprios ancestrais - e a emoção do antropólogo ao participar disso. Nesse momento vive um sentimento de humanidade una, por trás de toda a diversidade. Nesse momento esquece-se inclusive a divisão entre oprimidos e opressores, e reluz a percepção do humano-em-comum por baixo desses papéis.
 
Eu aposto todas as minhas fichas, aposto a minha vida, em que é só o fortalecimento cada vez maior dessa percepção do humano-em-comum que pode nos salvar.
 
É a partir dessa percepção que teremos o poder para destruir, aniquilar os papéis de oprimido e opressor (o que não é o mesmo que aniquilar as pessoas que os ocupam... a não ser que elas se agarrem aos papéis e por isso sejam aniquiladas junto com ele - em última análise por escolha sua, não por nossa intenção). Nenhum exacerbamento desse antagonismo de papéis jamais terá o poder de destruí-lo e de libertar a humanidade de sua maldição - libertação essa pela qual não aspiro em abstrato (= idealismo como força de opressão, que Marx denunciou sem porém conseguir deixar de incorrer nele) e sim por cada uma das crianças concretas que se encontram no planeta neste momento, e por todas aquelas que hão de vir.
.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

NÃO COMENTE.
Este blog só permanece no ar para fins históricos.

Observação: somente um membro deste blog pode postar um comentário.