Acredite nos que buscam a verdade... Duvide dos que encontraram! (A.Gide)

15 outubro 2008

Re: artigo de L.F.Pondé: CONSERVADOR ou não?

Pedro" <pedrohmpereira@uol.com.br> escreveu:
 
Olá, Ralf, como vai?
 por acaso, você leu este texto (
http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq1310200820.htm) do filósofo Luis Felipe Pondé, na Folha de S. Paulo de hoje? 
leitura errônea minha ou o cara é um puta de um conservador?
 sei que é uma mensagem sem contexto com o fluxo de informações da Trópis. mas é que não imaginei outra pessoa mais próxima para sanar essa dúvida pontual.
  um abraço, ...  Pedro Martins
 
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RESPONDENDO:
 
Não conheço o resto do trabalho do Pondé, Pedro - mas para basear-se exclusivamente nesse artigo (REPRODUZIDO LOGO ADIANTE PARA TODOS OS INTERESSADOS) foi leitura errônea sua, sim... :-) 
 
1. Uma limpeza de terreno prévia: Eu costumo dizer que em política e/ou filosofia não há nada mais bobo, mais oco, que termos como "progressista", "retrógrado" ou "reacionário". Pois implicam a crença de que há um rumo que é NATURALMENTE O CERTO para os acontecimentos da História - contrapondo-se a que a história seja resultado de nossas OPÇÕES feitas a cada momento (independente de serem racionais ou emocionais - "paixões" - mas sim opções).
 
O marxismo, na medida em que afima que a História tem um rumo natural (e que, portanto, o que vai nesse rumo é 'progressista'  e que tudo o que se contrapõe a ele é 'reacionário'), é visto por muitos como uma forma de CRENÇA ou RELIGIÃO. Pode-se enquadrar como 'concepções escatológicas da história' tanto a espera cristã do juízo final e da 'Nova Jerusalém' quanto a espera marxista da revolução e do comunismo final. Alguns chegam a ver o marxismo como a última grande heresia do judaísmo (depois do cristianismo e do islamismo); outros apontam nele a mesma crença em "progresso" tipicamente oitocentista que está por trás do positivismo (e - digo eu - desse 'positivismo espiritualista' e tardio que é a antroposofia de R.Steiner). E acho que os dois julgamentos têm fundamento.
 
Meu ideal de uma sociedade perfeita pode até coincidir com a imagem que Marx faz do comunismo ideal (a sociedade sem classes e sem governo já realizada, no final dos seus dolorosos processos de implantação) - mas eu invisto nesse ideal apenas porque analisei as outras possibilidades e cheguei à conclusão de que essa é a mais desejável para a humanidade - e não porque seja "o rumo certo e/ou natural da evolução".  Ou em outras palavras: escolher sermos bons apenas porque escolhemos, e não porque tivéssemos qualquer obrigação nesse sentido - imposta quer por Deus, quer pela natureza, quer pelas 'leis da História'.
 
O vazio da palavra "progressista" se comprova no fato de que, no uso, progressista sou sempre eu e minha tchurma, retrógrados são sempre os outros... Os neo-liberais se referem a qualquer idéia de esquerda como "retrógrada", "de há muito ultrapassada" etc. - ao mesmo tempo em que tantos da esquerda se referem a si mesmos como "progressistas" e aos neo-liberais como retrógrados ou reacionários...
 
Com isso, tudo o que NÃO quero dizer é que a razão está com esta ou aquela das partes, e sim que essas são palavras ocas, que eu evito a todo custo!
 
2. Conservação e inovação: O caso destas duas palavras é diferente elas têm sentido real, sim! E muito rico.
 
Quando muito jovem eu tive uma aulas de análise musical fantásticas, baseadas na dialética entre a conservação e a inovação. Infelizmente era inexperiente demais para ir pedir ao professor as referências filosóficas que o embasavam. Se não me engano tem quem tenha trabalhado assim dentro da Escola de Frankfurt - e nem sei se já Hegel e/ou Marx não haviam usado essa formulação em algum momento. De qualquer modo, acho que isso é melhor enfrentado (melhor que por Hegel e Marx) pela dialética sem síntese apresentada no século XX por Stephane  Lupasco e por Edgar Morin ('pensamento complexo') - a qual, de resto, não é muito mais que chegar ao pensamento taoísta (chinês) com 2400 anos de atraso...  
 
Morin provavelmente diria que conservação e inovação estão numa relação complexa = são ao mesmo tempo opostos, concorrentes e complementares. Ou seja: as duas são indispensáveis à existência, as duas precisam uma da outra, e não obstante vão sempre se opor uma à outra e/ou concorrer uma com a outra como se fosse pra ganhar. Mas não é pra ganhar... Se uma ganha da outra é desastre total.
 
Num organismo vivo, conservação pura é envelhecimento, esclerose, decadência e morte. Inovação pura tem um nome bem específico: câncer (= o desenvolvimento de novos tecidos com regras totalmente novas, com desconsideração total do 'planos' já existentes naquele organismo).
 
Acho que o que o Pondé está querendo dizer nesse texto é que sempre existem, sim, valores e conquistas anteriores da humanidade a conservar, a não jogar fora. Que a escolha do que deve ou não deve ser conservado não é simples, é um permanente desafio, é sempre complexa. E que não devemos julgar que os pensadores que se dedicaram a pensar sobre o aspecto "conservar" eram todos uns bobos ou uns sacanas.
 
Isso também não quer dizer que tenhamos que aceitar tudo o que esses pensadores propuseram. Muitos podem ter apostado que o melhor modo de preservar os melhores valores conquistados pela humanidade fosse a aristocracia - e podemos duvidar disso e fazermos outras apostas. Mas seria infantil meramente demonizar esses autores.
 
Conheço pouco dos autores citados pelo Pondé. Assim do "ouvir falar" sei que algumas das posições de Hume me caem muito mal - mas duvido que eu também não tenha a aprender de seus arrazoados. Por outro lado, o Tocqueville me inspira profunda simpatia, e me dá raiva quando o vejo citado por neoliberais e quejandos. Me parece que é com a maior honestidade e boa vontade que ele aponta os perigos dos sistemas que tentam ser democráticos - perigos reais, que os EUA ilustram muito bem. E muito ao contrário de demonizar Tocqueville, acho que temos que estudá-lo carinhosamente com o intuito de desenvolver modos de evitar esses perigos.
 
3. Liberdade x igualdade: Esse é um problema para lá de real. A minha Filosofia do Convívio - especialmente o seu "processador central" que é o Pluralismo Absoluto - é precisamente uma proposta de como lidar com isso. Não por acaso o último trabalho de certo fôlego que publiquei se chama Liberdade socialmente sustentável. (Está inteiro em www.tropis.org/biblioteca ).
 
Acho que no momento é só! ABRAÇO GRANDE,
 
Ralf
 
São Paulo, segunda-feira, 13 de outubro de 2008



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LUIZ FELIPE PONDÉ

Conservar o quê?


Devemos conservar a consciência da longa experiência humana com sua própria loucura

O DEBATE entre conservadores e progressistas é mais complicado do que imagina nossa vã filosofia.
Quais são suas origens, para além de querermos ser simpáticos com feministas, minorias diversas, pobres, jovens, ateus ou religiosos? O termo "conservador" nasce francês, no início do século 19. Referia-se aos simpatizantes da "carta" que o britânico Edmund Burke escrevera a um intelectual francês logo após a revolução de 1789.
Burke não usa o termo na carta, mas critica duramente as ilusões de mudança social radical e a tendência dos jacobinos em reduzir a vida ao cálculo econômico e à retórica política. Ele detestava o desprezo pela experiência dos ancestrais e via esse desprezo como arrogância e estupidez. Num primeiro momento, "conservar" seria preservar as instituições políticas em funcionamento e as intuições morais e religiosas que sustentariam uma condição civilizada sempre em risco. Não se mexe com seres humanos sem temor. De onde viria esse temor? Sua carta ficou conhecida como "Reflexões sobre a Revolução na França". Lê-la nos tira da banalidade nesse debate.
Outros dois nomes marcam as raízes deste ceticismo para com as utopias políticas, racionalistas e "científicas" que nascem com Francis Bacon (séculos 16-17), Jean-Jacques Rousseau (século 18) e ganham força com o pensador utópico Karl Marx (século 19): o escocês David Hume (século 18) e o francês Aléxis de Tocqueville (século 19).
A complexidade já se revela nessa variedade. Infelizmente reduzimos rudemente esta herança a dois dos sentidos que ela adquiriu ao longo dos séculos 19 e 20. Os únicos conhecidos pelo senso comum.
O primeiro é o "amor ao mercado" (e atualmente, com a crise americana, o ruído volta na esteira da batalha entre democratas e republicanos). O segundo é o "amor à religião". Fora do seu contexto filosófico, esses traços viram caricaturas ridículas. Hume, Burke e Tocqueville não são sinônimos de "Bush pai, Bush filho e cristãos americanos fanáticos". Não é "coisa" de gente careta com medo de sexo, ciência e insensíveis à pobreza.
fundamento racional da moral. Para ele, nossa ação é movida por hábitos ancestrais e pelo afeto (senso moral) e não porque "conhecemos" racionalmente o Bem e o Mal. A razão é escrava das paixões. Hume considerava "fanáticos" tanto os racionalistas (crentes na razão) quanto os religiosos radicais.
Burke afirmava que as crenças e os hábitos são formas testadas no confronto com nossa perigosa e frágil humanidade. As relações humanas se constroem em ambientes concretos (família, bairro, trabalho, igreja, cemitérios) e não através de abstrações políticas ou morais como "liberdade, fraternidade e igualdade". O resumo disso é sua frase: "A sociedade é uma comunidade de almas que reúne os mortos, os vivos e os que ainda não nasceram".
Os revolucionários eram afoitos que negavam os mortos (a sabedoria do passado) e punham em risco os que ainda não tinham nascido, querendo programar politicamente como deveria ser o humano perfeito do futuro. Eles só enxergavam a si mesmos (o presente sem passado).
Os jacobinos eram péssimos psicólogos, historiadores e cientistas sociais.
Tocqueville visitou os EUA em 1831 e analisou o impacto da democracia nos hábitos e costumes (entre outras coisas). Era um filósofo social e político sutil.
Ele percebeu alguns riscos da democracia: a tirania invisível da maioria, a inteligência medíocre e excessivamente prática, a vitória da opinião pública sobre o pensamento, o utilitarismo mesquinho, a tensão sem solução entre os dois dogmas da democracia, a liberdade e a igualdade. A primeira radicaliza as diferenças entre as pessoas, a segunda esmaga essas diferenças em nome da miserável média humana.
Antes da política estão os dramas morais e eles transcendem as formas políticas. Daí a idéia de que a "redenção política" seja ridícula. A religião tem valor porque acolhe a dor e o mistério sem resposta da vida humana.
Conservar o quê? A dúvida para com as soluções racionais e "científicas" apressadas, e as fórmulas políticas de "gabinete". Conservar a consciência da longa experiência humana com sua própria loucura.
Isso não implica em recusar mudanças, implica sim em prudência com as ilusões de que os humanos sejam facilmente racionais, belos e bons.

luiz.ponde@grupofolha.com.br

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