Acredite nos que buscam a verdade... Duvide dos que encontraram! (A.Gide)

04 janeiro 2010

O biscoito poético fino de Kátia Portes Leão: como ainda ousamos não conhecer?

Não passe os olhos por cima: passe por dentro. São filigranas. Mas depois de fisgado pela primeira, quem sabe a segunda, tem um mel que te sugará até o fim. (Fiquei falando assim depois de lê-la: estão vendo?)

Com toda honestidade: cadê texto dessa qualidade & densidade & visgo no Brasil de hoje? É provável que haja, admito: ainda não sou onisciente... Mas que sejam muitos não é provável, não: pra perceber isso, meu tino alcança!

E no entanto descobri que tem só 6 seguidores no seu blog - PODE??

Não, não pode não: veja estas 3 amostras aqui e depois vá lá: adote-se, deixe-se adotar: você só tem a ganhar! (Zé Ralf)

http://contoscontragotas.blogspot.com/
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domingo, 3 de janeiro de 2010
Kátia Portes Leão
Sobre a saudade e as baratas

Amor,

nem sempre te noto.
A vida exige rapidez cumulativa.
Cedo, frágil, vez ou outra
e não te noto.
Os horários nem sempre se encontram,
nem nós mesmos,
vez ou outra. Vez ou outra.

Mas, amor,
teu corpo é parte tão sincera do meu
que sinto falta de outro esôfago:
umedeço d'água a garganta e, de repente,
me desmorono liquidamente.

Faltam-me teus órgãos, pêlos, cheiro, roupas.
Agora aqui, só com metade de mim.

Meu corpo me desobedece e uma saudade-tiro-12 explode em meu tórax.
Choro sem saber.
Tuas mãos e teu carinho - como o dia amanhece sem?

- Bom dia, amor!
com muito sono e inconsciência,
vou dizer pra tua fotografia.
Sem mecanismos automáticos,
muito longe disso:
é por saudade, amor.
Por saudade.

Chegando de viagem,
como se já não bastasse:
baratas.
Não sei matá-las sozinha.

Indefesa, meu bem,
indefesa.

Faz um dengo,
faz minha vontade?

Volta logo.
domingo, 3 de janeiro de 2010
Kátia Portes Leão
Pra ti, menina, meu abraço.
Pois é, menina,

Diante de garoa, chuva ou tempestade,
não são todos os toldos desta cidade
que podem abrigar minhas úmidas vontades.

Alguns cômodos, camas ou casas inteiras são menores que eu.

Pode ser sim que me falte ousadia. De fato.
E talvez eu tenha mesmo demasiada inocência.
Inda sou incapaz de certas coisas.

Não caibo em todas as cidades.
Não me encontro em todos os meus eus.
Desabito-me.
Sou desconhecida e viajante.
Assumo minhas infâncias.

[meus abraços são terrivelmente sinceros
e minhas intenções, muito sabidas]

Minha savana, meu lar, é meu sagrado, meu templo.
Desenlame os pés, por sutil gentileza, antes de adentrá-lo.

Pois é, menina,
dá-me aqui, um abraço.
Ser humano inda não tem cura.
O erro é tão comum quanto a mediocridade.

Não pertenço a este mundo. De fato.
Estou efêmera hoje
e, diga-se de passagem,
momentaneamente poética.

Importo-me, em verdade, muito pouco em parecer ou ser ridícula.
A vida é muito pouco lírica.
Concretizemo-la rapidamente!

No tapete, frente à minha porta, pisam apenas pés descalços

que eu quero refrescar minhas costas quentes.

Mas menina, como ia dizendo:
toma aqui meu abraço.


segunda-feira, 16 de novembro de 2009
Kátia Portes Leão
Bastiana

No seu rosto, vó Bastiana, vejo o tempo.
Óbvio assim: vejo o tempo escorregando, infante, pelas rugas, pelas frestas - teus segredos tão antigos.

Quando resolvo te incomodar aos domingos com minhas visitas, tento recuperar o perdido, a memória, o tesouro.

E driblo o sono, te acompanho. Ouço, palavra por palavra, teus resmungos e tuas lembranças.
Concordo que os escorpiões sejam perigosos, vó Bastiana.
E que os pecados se alastram por aí? Sim. Concordo. E talvez não falemos sobre os mesmos pecados. Somos registros de dois tempos, ponteiros conversam. As horas passam.

Minha memória se confunde com a tua, vó Bastiana. Longe de mim violentar teus comentários com o giro cruel de uma fita no gravador. Quero ser capaz de guardar, nafitalinamente, teus comentários de seda, algodão agreste.

Mas tudo se esvai num instante. Ai, esse tempo! Que meus ouvidos são só dois e teus relatos ficam entrelaçados nos fios dos meus sentidos, ouço e não ouço, vó Bastiana, entende?
Meus ouvidos acariciam tuas palavras que me chegam, como viajantes solicitando meus repousos.

Meus olhos te percebem, atentos, doces, amendoados. Temos lá nossas semelhanças - por dentro e por fora do sangue, temos. Tempos.

Dona Nair, vó Bastiana e eu, conversamos nesta última vez, até nossos olhos reclamarem.
Contavam da casa de tia Rita - que insistia em economizar as luzes, apagava todas, deixava as visitas no breu da noite. O medo da assombração assolava as crianças que corriam, desesperadas, pela casa. O pavor dos mortos cujos retratos ainda faziam parte da decoração: retratos e mais retratos, suas caras espreitando....
... Dona Nair, sabidamente ressuscitando a alma mineira, pergunta:
- Mas não faltava comida, não é, mãe?
A vó Bastiana completa: - Ah, comida não faltava não!

O prazer da mesa farta - de gente, de perfumes, de comida.

Quando, às seis do dia seguinte, momento do dia em que vó Bastiana sempre se dedicou a observar o horizonte, ela disse:
- Ah, Kátia, a boca da noite é tão triste, você não acha?

Sorri.
Se inda me resta alguma poesia,
descobri de onde ela invém.

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Um comentário:

  1. "Menino",

    [Sim. Menino. E digo assim, não em desrespeito ao homem-ralf-rickli mas, em respeito ao acúmulo de tantos meninos que dão forma a esse rickli-ralf-homem. Menino, assim, carinhosamente]

    tu é danado, despropositado - levando água na peneira sempre que pode!

    Meu biscoito poético fino, levo lá pra casa e a gente come enquanto toma um café-chêroso!

    Lisongeada.

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