Acredite nos que buscam a verdade... Duvide dos que encontraram! (A.Gide)

27 março 2012

APELO DA MÃE DE ALEXANDRE IVO AO PREFEITO DO RIO DE JANEIRO CONTRA A OFENSIVA HOMOFÓBICA NA CÂMARA DA CIDADE

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Caro Prefeito Eduardo Paes

Sou uma mulher, uma filha e uma mãe que carrego comigo a maior dor que um ser humano pode carregar: a dor de ter um filho assassinado pela homofobia.

O meu filho foi torturado por três indivíduos de porte físico maior que o dele durante 3 horas. Ele lutou o quanto pôde por sua vida e sofreu todas as atrocidades que um crime de ódio pode produzir em um ser humano. Um menino de 14 anos que tinha o maior medo da violência e a sofreu na íntegra - e como golpe final eles usaram a própria camisa do meu filho e o enforcaram.

Isso ocorreu em São Gonçalo, em 20/06/20l0, durante a Copa do Mundo da África, e de lá pra cá me dei conta de que a homofobia mata, a homofobia produz assassinos e deixa marcas que vamos carregá-las durante nossa existência.

E é por isso que estou usando este espaço para que tome conhecimento de que desde o assassinato do meu filho essa estatística vem crescendo absurdamente não só na população LGBT mas em outros campos.

E o senhor como homem, como filho e principalmente como pai deve tomar uma posição para que possamos de verdade fazer políticas públicas voltadas para esse assunto, para que Mães como eu não venham a ver seus filhos desfigurados pela intolerância a ponto de ter que enterrá-los como foi o meu caso,

... pela ignorância, pelo preconceito, e o que é pior: pela falta de LEI e JUSTIÇA que assola nosso país,

... e principalmente por parlamentares que insistem em votar LEIS usando discursos RELIGIOSOS.

Esse é um pedido de Mãe que ainda está em busca de JUSTIÇA pelo assassinato do meu filho ALEXANDRE THOMÉ IVO RAJÃO.

ANGÉLICA IVO (mãe)
23.03.2012

PELA CRIMINALIZAÇÃO DA HOMOFOBIA

Texto reformatado por Ralf.R, com ligeiras revisões.
Fonte: Lei Alexandre Ivo - OFICIAL
https://www.facebook.com/pages/Lei-Alexandre-Ivo-OFICIAL/149014631845962?sk=wall

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13 março 2012

A diferença entre Comunidade e Sociedade e a universalização do direito de ser indivíduo


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Este texto, de 2006, é parte do terceiro artigo da minha coletânea Pedagogia do Convívio: na invenção de um viver humano (p.36-40). A ideia postar no blog agora me veio quando vi no Facebook o banner abaixo, do movimento Ocupa Lisboa, que vinha ainda acompanhado do comentário "e que tal trabalharmos numa cura?".
   
Qual a relação? Sugiro que vejam por vocês mesmos se encontram!  Uma observação: existem no texto várias referência do tipo "ver 11.3"; elas se referem a outros trechos da mesma coletânea, disponível na íntegra em http://www.tropis.org/biblioteca/pedocon2007.pdf . 
  
  
ALDEIAS - A LUZ E A SOMBRA
O que mais me chama atenção na vida de aldeia é o modo como as crianças circulam pelos diferentes espaços, com freqüência juntas com as da mesma idade e com as mais velhas, que assumem nisso certo grau de responsabilidade de modo mais ou menos espontâneo – e como nisso vão ganhando um panorama da vida da sua comunidade em suas diversas variantes. Lá onde estiverem, os adultos presentes se sentirão responsáveis por todas, não apenas por seus próprios filhos ou parentes próximos.

Naturalmente nem sempre é confortável ter crianças brincando por perto, porém o fato de tê-las a maior parte do tempo tem também uma dimensão pedagógica para os adultos: não os deixa esquecer em nenhum instante da realidade do corpo social em que vivem, e pode servir de freio à sua própria infantilidade (sim: a dos adultos).

É provável que os poderosos da humanidade tivessem cometido bem menos irresponsabilidades se tivessem tido que tomar suas decisões na presença participante de seus filhos, e não desassistidos em suas brincadeiras de poder pretensamente solenes, tão freqüentemente com farta irrigação alcoólica.

Por outro lado, as crianças permanecem incômodas por muito menos tempo – ou seja: conquistam mais cedo certo traquejo e maturidade – quando têm a oportunidade de viver na presença da vida adulta real (isto é: não meramente de uma simulação de vida com pretensões pedagógicas). Entender que há pessoas receptivas, ranzinzas, sérias, alegres, tristes... que há coisas que se fazem ou se dizem em um lugar mas não em outro... todos esses dados elementares de socialização acontecem aí de modo muito mais eficiente que mediante qualquer instituição imaginável da vida moderna.

Também é extremamente rico o fato de que as crianças se vejam logo frente ao mundo adulto, ou à comunidade como um todo, sem a intermediação constante dos pais – intermediação que em nossa sociedade com freqüência atrapalha o amadurecimento dos filhos até mesmo idade adulta adentro.

Mais uma coisa propiciada por essa situação é a descoberta gradual da afinidade com esta ou aquela das atividades ou ofícios cultivados na comunidade, freqüentemente iniciando já na infância os vínculos que levarão a uma relação mestre-aprendiz e a uma entrada na vida adulta muito menos despreparada que a dos jovens na sociedade moderna.

São fatos como esse que se expressam no ditado africano “é preciso toda uma aldeia para educar uma criança”, não à toa escolhido como epígrafe do primeiro artigo que escrevi sobre a Pedagogia do Convívio (incluído como 1 neste volume).

Mesmo nos grandes aglomerados populacionais atuais, uma tal educação pode ser conseguida, pelo menos em alguma medida, por grupos que tenham um efetivo senso de comunidade. Infelizmente isso ainda acontece com menos freqüência por escolha (o que os norte-americanos chamam de “comunidades intencionais”) do que como conseqüência de um ou de outro tipo de discriminação e/ou rejeição entre diferentes grupos sociais.

Esta última declaração traz à baila o outro lado da moeda: os problemas da dimensão-comunidade, quer como aldeia ou em outras formas tradicionais, quer como círculo ou rede entremeados na sociedade mais ampla. Alguns exemplos:
  • conter um repertório muito restrito de possibilidades humanas;
  • reprimir de um modo ou de outro os impulsos de experimentar outras formas-de-ser que não as já conhecidas na comunidade, especialmente em crianças e jovens;
  • acobertar atos indefensáveis por irmandade ou compadrio;
  • concentrar forças de resistência a mudanças necessárias ou desejáveis...


Por todas essas razões falo de “reinventar” a aldeia, não apenas “reencontrá-la” ou “restaurá-la”. E onde há vontade, não temos dúvida de que a inteligência e a sensibilidade são capazes de, juntas, realizar aperfeiçoamentos e viabilizações.

Mas por que insistir no modelo se, como acabo de dizer, ele não deixa de ter seus perigos?

De modo nenhum se trata de “romantismo”, “utopismo” ou de coisas semelhantes: todos os outros modelos também têm seus perigos – às vezes os mesmos da aldeia, às vezes outros, mais freqüentemente uma mistura – e por outro lado raras vezes têm mais que uma fração das virtudes ou poderes positivos da aldeia ou comunidade, sobretudo na educação.

Suspeito que decorra disso, pelo menos em boa parte, o sempre mencionado estado de crise que já parece ter se tornado parte integrante dos sistemas educação: é preciso “aldeia” (comunidade) para que haja educação, e não haverá educação sem que se reinvente a comunidade. Pelo menos não uma educação que capacite o ser humano a não ser anti-social, ou seja: um ser em guerra permanente com a própria natureza humana, que é a de ser vivo associativo.[1]

 
NOVAS TRIBOS?  (UM POUCO DE SOCIÓLOGO-LOGIA)
Aqui quase escuto alguém me perguntar se não concordo com as idéias do sociólogo francês Michel Maffesoli (entre outros), de que já entramos num novo “tempo das tribos”, onde predominam os valores do local, da proximidade, das escolhas por afeto – valores comunitários, enfim –, e que isso representa ainda um declínio do individualismo.[2]

A pergunta é útil, pois respondê-la exige a explicitação de uma fundamental tomada  de posição quanto a um conceito sociológico fundamental – para o que peço licença especial, pois o meu conhecimento do corpus teórico dessa disciplina é bastante limitado!

Esse conceito é a distinção entre “comunidade” e “sociedade”. Ouço dizer que foi fixada por Ferdinand Tönnies numa obra de 1887 (Gemeinschaft und Gesellschaft). Uns 30 anos depois, em Economia e Sociedade, Max Weber diz que “comunidade” se refere a relacionamentos sociais baseados no sentimento subjetivo (afetivo ou tradicional) de participar da constituição de um todo – enquanto que “sociedade” seria uma estruturação baseada em relações de interesses de natureza racional. (Textos dos dois se encontram em Florestan Fernandes, 1973).

Passados outros 90 anos, no entanto, parece difícil sustentar uma divisão nítida entre afetivo e racional, como se evidencia inclusive de estudos neuro-cognitivos como os de Damásio, Izquierdo e tantos outros. E olhada com honestidade, a suposta racionalidade das relações de sociedade se mostra geralmente uma imposição com motivos bem pouco racionais!

Minha percepção pessoal parece identificar “por aí” hoje um vago consenso, pouco consciente, que reconheceria as seguintes distinções entre sociedade e comunidade:

Antes de mais nada, dizer que “sociedade” no sentido macro (p.ex. “a sociedade brasileira”) tenha algo a ver com o sentido contratual de “sociedade” (p.ex. uma sociedade comercial) é ou um grande engano ou, de uma vez, um embuste. No mínimo porque a grande maioria das pessoas que participam de uma sociedade, no sentido macro, o faz involuntariamente. E é exclusivamente do sentido macro que falaremos a seguir.

Nesse consenso intuitivo e difuso, a diferença entre sociedade e comunidade seria antes de mais nada de escala, tendo como referência o alcance da percepção direta do indivíduo humano. Estudos recentes apontam que o limite máximo dos círculos de contatos pessoais se situa entre 120 e 150 pessoas – coisa que provavelmente a maior parte de nós pressente intuitivamente (ver Dunbar 2005, Manhart 2006).

Mais importante ainda, porém, seria a direção do movimento que constitui essas diferentes formações: “sociedade” evoca um todo que se impõe às partes como que de cima para baixo – ou melhor: de fora para dentro, ainda que os que vêm de fora cercando sejam poucos em comparação com o cercados, talvez como uns poucos boiadeiros que conseguem cercar um grande rebanho.

Essa mesma comparação aponta ainda para mais um aspecto: a um olhar histórico, nenhuma “sociedade” (no sentido macro) parece ter se constituído sem o uso de força (ou violência) pelo menos em algum momento. Em resumo: temos aí um todo que só se mantém pela compressão das partes.

Em contrapartida, a idéia de formação de comunidades sugere um movimento das partes para o todo. Provavelmente podemos dizer: um movimento de expansão das possibilidades de cada indivíduo através de conexões – o que, partindo de muitos indivíduos, vai gerar naturalmente uma complexa trama de redes que se justapõem e que se interseccionam aqui e ali.[3] (É preciso advertir que, de modo geral, bairros e vilas dentro de uma cidade grande não são um exemplo real de comunidade, em que pese o esforço de tantos em afirmá-lo pelos mais variadas interesses doutrinários e/ou políticos).

Enfim: com “comunidade” estamos falando então de uma formação inteiramente estruturada, uma rede molecular cristalina, ainda que viva e flexível, onde nenhuma pessoa deixa de ter conexões. Com “sociedade”, falamos no limite de um amontoado de partículas sem vínculos próprios entre si, mantido em determinada forma por uma minoria estruturada que a cerca.

Pois bem: passando os olhos pelos textos de Maffesoli encontro de fato uma porção de temas que são caros a nós da Trópis: o ressurgimento do sentimento comunitário a partir de relações pessoais; a ausência de atrelamento exclusivo do sujeito a uma só tribo ou comunidade; o reencantamento da nossa percepção do mundo (ver 2.5 e seção D); a ênfase em uma razão sensível, que tem a ver com o que chamo de integração entre cognição analítica e cognição estética (ver 8).

Mas o modo como essas idéias aparecem em Maffesoli me parece francamente confuso.

Na Pedagogia do Convívio falamos dessas coisas de modo assumidamente programático, propositivo, político.

Maffesoli diz estar sendo descritivo, como sociólogo... mas não se sabe de onde terá tirado essas descrições como características do momento contemporâneo. Fala sobretudo de segunda mão, referindo-se a estudos de outros autores... que na maior parte das vezes estão tratando dos fenômenos da dimensão “comunidade” de modo geral, e não no momento contemporâneo; aliás, até os exemplos dados pelo próprio Maffesoli procedem de momentos espalhados pela história.

Sem maiores análises, eu diria que as críticas que me saltam aos olhos são três:
  1. Não há nada de novo nos processos descritos como novidade por Maffesoli, a não ser sua visibilidade – conquistada em parte pela existência da internet, mas já de antes pela generalização das pesquisas de opinião informando a publicidade, os roteiros das novelas etc. Talvez tenha havido mais mudança no foco do olhar dos cientistas sociais do que na própria sociedade.
  2. Creio que Maffesoli generaliza excessivamente para a sociedade inteira as características típicas de movimentos de adolescentes e jovens, sem dar a devida atenção aos possíveis sentidos da variável “idade”. Também ainda não o vimos falar da manipulação intencional de tais movimentos através da mídia, com interesses de mercado.[4]
  3. Não me parece menos que fantasioso falar de um “declínio do individualismo” em nossa época. O próprio Maffesoli demole essa idéia ao enfatizar a vinculação de cada um hoje com múltiplas comunidades, no lugar da fidelidade a uma só. Supreende que não pareça perceber que a escolha desse mix único é precisamente uma expressão de... individualidade!


Mais ainda, falar de declínio equivale a dizer que existiu um momento anterior em que algum tipo de individualismo foi dominante e generalizado em todo o tecido social. E, honestamente, não vejo nenhuma evidência disso.

Pois a palavra “individualismo” sugere opção, e não o que temos tido na modernidade: isolamento e incomunicabilidade causados de fora para dentro, pela imposição da participação na estrutura gigântica e internamente amorfa chamada “sociedade”.[5]

Na sociedade moderna nos vemos sim desassociados, mas tão “indivíduos” quanto as bolinhas de isopor no enchimento de uma almofada, ou as “diferentes” bolhas numa garrafa de refrigerante.

Onde chegou a haver algo que mereça o nome “individualismo”, isso parece ter sido um privilégio restrito a elites econômicas ou intelectuais – das quais talvez se possa dizer que nunca deixaram de ser “tribos”, tendo as econômicas com certeza se empenhado em manter a maioria da população na forma de massa, “destribalizada”, em benefício da sua própria tribalidade... cultivada talvez justamente por ser condição para sua simultânea individualidade.

Pois, em lugar de se oporem, vejo que comunidade e individualidade se pertencem; é uma quem permite e quem gera a outra, de modo simultâneo e contínuo.[6]

Donde a construção ou reconstrução intencional de comunidades dentro do corpo mesmo da sociedade, sendo autêntica, longe de significar uma desindividualização do ser humano, deve representar, isso sim, um passo na direção da universalização do direito de ser indivíduo – o que talvez seja uma real novidade na história humana.[7]




[1] O que penso ser a tradução de zôon politikón.mais adequada à percepção do mundo que temos hoje. Essa expressão usada por Aristóteles em sua Política é comentada em diversos artigos deste volume, especialmente em 8 e 12 – do que não se deve depreender que tenhamos afinidade com o pensamento desse filósofo como um todo, como deixa claro o segundo desses artigos.
[2] O tempo das tribos: o declínio do individualismo na sociedade de massas. Maffesoli 1998.
[3] Para uma exploração dessa mesma imagem estrutural no campo do ensino-e-aprendizado, ver 11.3.6.
[4] Do que falo no pequeno artigo Os rebeldes programados da Dona Burguesia (1999), em Rickli 2006f, www.tropis.org/biblioteca/torpedos.html
[5] “Imposição da participação” no mínimo pela eliminação de tudo o que pudesse ser opção alternativa ou, mais ainda, pela sua cooptação – que é o anzol que vejo na isca que é a palavra “inclusão”, cf. o recente artigo Contra o mito da inclusão, em www.tropis.org/biblioteca (Rickli 2006g; também o artigo Os rebeldes programados, mencionado acima, fala da cooptação).
[6] Apesar de algumas diferenças de linguagem e perspectiva, é na verdade do mesmo fenômeno que Íris B. Goulart (1987) fala no belíssimo fechamento de seu estudo Psicologia da Educação no Brasil: “A construção da subjetividade não pode ser ignorada no processo da educação (...) uma vez que o homem produz uma síntese do seu Eu na medida em que transforma, conscientemente, os objetivos sociais em objetivos particulares e, segundo Heller, desse modo socializa a sua particularidade. Em contrapartida, [é] à medida que constrói a sua singularidade [que] o homem pode atuar sobre as condições objetivas da sociedade. Nisto consiste a visão dialética da educação (...)”
[7] Esta conclusão é concorde com o que vejo de melhor nas idéias do autor justificadamente controverso que é Rudolf Steiner – com as quais não concordo “por atacado” mas tenho que reconhecer como um gigantesco repositório de insights instigantes e consistentes que seria estúpido desperdiçar!

09 março 2012

A entrevista de Haddad (ótima) que o Estadão quase escondeu (picotando em 15 páginas)


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Fernando Gallo, de O Estado de S. Paulo - 12 de fevereiro de 2012
"O tempo livre, a alma e, quem diria, uma prótese de primeira natureza, tudo é insumo precioso na busca do lucro. Sob o pretexto de satisfazer as necessidades humanas, a parafernália capitalista não faz mais do que zelar pela sua perpetuação, rebaixando os homens a meios de sua própria conservação". Talvez pudesse ser Marx, mas é um autêntico Fernando Haddad, atirando contra o sistema.
Haddad critica erros da
                'esquerda autoritária' - FIlipe Araújo/AE - 09.02.2012
FIlipe Araújo/AE - 09.02.2012
Haddad critica erros da 'esquerda autoritária'
Era 1998, último ano do primeiro mandato de Fernando Henrique Cardoso, quando o ex-ministro lançava pela editora Vozes um pequeno livro intitulado "Em defesa do socialismo - Por ocasião dos 150 anos do Manifesto", referência à obra comunista de Marx e Engels. É a obra mais política da bibliografia de Haddad, que ainda conta outros quatro títulos : "Sindicatos, cooperativas e socialismo" (2003), "Trabalho e linguagem - Para a renovação do socialismo" (2004), "O sistema soviético" (1992) e "Desorganizando o consenso - Nove entrevistas com intelectuais à esquerda" (1998).
Nas obras, Haddad critica "o mal infinito da acumulação capitalista", defende a socialização da propriedade privada - "mantendo-se o mercado" - e dos meios de comunicação. Vê um mundo em que a cooperação entre cooperativas seria a superação da ordem capitalista.
O petista censura o modelo da União Soviética, autoritário e de economia centralmente planificada - "deveria ser chamado pelo nome próprio de despotismo" - e diz que ele "ruiu em boa hora, tirando dos ombros socialistas um fardo político descomunal".
Em 2001, em um debate após uma exposição sua que originou o livro sobre cooperativas, argumentou: "O PT deveria empunhar com mais brio a bandeira do socialismo". Hoje diz: "podemos nos valer dessa bandeira com tranquilidade".
O ex-ministro recebeu o Estado na sede do PT Nacional em São Paulo, onde despachava provisoriamente até sexta-feira, para falar sobre os livros e temas contemporâneos que dialogam com sua obra. Sustentou que algumas "ideias-força" das obras permanecessem atuais e lembrou: "Quando escrevi esses textos, não estava pensando em me candidatar a nada, mas em fazer o debate aflorar".
O que quer dizer ser socialista no século XXI?
Em primeiro lugar, afastar toda a tradição autoritária que permeou a ação política, sobretudo do stalinismo e variantes, sem abdicar de dois valores importantes: o combate às desigualdades socioeconômicas e uma celebração da diferença, da diversidade, da tolerância. Essa é uma plataforma que dialoga com o pensamento socialista moderno.
Aquilo que o sr. escreveu em 1998 continua valendo?
Meus livros ficaram sempre na primeira edição, nunca me vi obrigado a fazer uma revisão. Não saberia te dizer se publicaria tal qual foi lançado. Mas algumas ideias-força permanecem atuais. Minha tese de mestrado foi sobre o colapso do sistema soviético e a interpretação daquele fenômeno, de 1917 a 1989. Aproveitei para promover um acerto de contas com a esquerda autoritária, particularmente o stalinismo e o trotskismo, que viam naquela experiência soviética, nos dois países mais importantes, Rússia e China, perspectivas emancipatórias. Eu recusei desde sempre essa interpretação. Via naquelas experiências um modo sui generis de transição de velhas sociedades asiáticas, em geral organizadas sob o manto do despotismo, na longa transição para o modo capitalista de produção. Enquanto as pessoas pensavam que pudesse desembocar numa sociedade sem classes, eu via o contrário.
Crítica igual ou semelhante pode ser estendida a Cuba?
A qualquer modelo autoritário e de economia centralmente planejada.
O sr. não acha que a presidente Dilma deveria condenar a situação dos presos políticos em Cuba?
O que a presidenta disse é que todos têm o dever de casa a fazer quando se trata de direitos humanos. A questão dos direitos humanos não pode se restringir a direitos civis e políticos. A humanidade estendeu esse conceito e trabalha também com direitos sociais. Os países têm que ser analisados à luz desse conjunto de direitos historicamente consagrados. Os direitos civis e políticos, que são essenciais pra vida democrática, mas não diminuir a importância do atendimento a direitos sociais. Tudo isso somado, todos os países têm um direito de casa a fazer.
Mas há uma questão histórica da esquerda com Cuba. O sr. não acha que a esquerda deveria condenar mais fortemente os problemas da ilha?
O excepcional trabalho que Cuba faz em relação aos direitos sociais, sobretudo no que diz respeito a saúde e educação, não pode servir de pretexto para diminuir a agenda dos direitos civis e políticos. Você tem uma agenda complexa, e mesmo se valendo da explicação clássica das consequências do embargo econômico que os Estados Unidos impõem sobre a ilha, ainda assim essa questão deveria ser endereçada, porque ela é parte da problemática da expansão da liberdade e da igualdade entre os indivíduos.
A influência de Marx em sua obra é muito evidente. O sr. o chega a chamá-lo de “teórico genial”. Marx continua atual?
Do ponto de vista do pensamento brasileiro, havia uma tradição que dialogava muito com a perspectiva marxista, que tem o Caio Prado, Fernando Novaes, Fernando Henrique Cardoso. Depois pensadores que não eram marxistas, mas que dialogavam com a tradição da esquerda radical, como por exemplo Antonio Cândido, Luis Felipe de Alencastro, Chico de Oliveira, Paulo Arantes.
O sr. se encaixa onde?
Estou falando de pessoas que influenciaram a minha formação. Todos esses, marxistas ou não, esquerdistas radicais, por assim dizer, moldaram a minha formação. Não escreveria essa interpretação do que foi o modelo soviético sem a inspiração desses autores. Evidente que o Marx é a inspiração longínqua, mais moderna. E não é mais possível falar em marxismo, são marxismos. Eu me filio à tradição de Frankfurt, que tem no Adorno e no Marcuse as expressões mais vistosas.

O economista Nouriel Roubini disse no ano passado que Marx estava certo quando previu o fim do capitalismo. O sr. concorda com essa tese?
O Marx nunca negou o que o capitalismo produziria de riqueza material. Aliás, foi quem descreveu a dinâmica de produção de riqueza e de mercadoria, e do domínio da natureza pelo homem. Se nós retomarmos as obras de juventude do Marx, ele tinha muita consciência do potencial do capitalismo em termos de produção de riqueza e de ciência e tecnologia. Talvez antes do que qualquer outro economista liberal. Isso é um paradoxo. O maior crítico do capitalismo foi aquele que antecipou seu potencial de desenvolvimento. Mas ele dizia que isso seria feito às custas de uma desigualdade cada vez maior, de injustiças sociais cada vez maiores, de um fosso social que dividiria a sociedade em classes, com perspectivas muito distintas umas das outras. Esse diagnóstico permanece. Não podemos negar a evolução material que essa sociedade teve, mas esse desenvolvimento material não se desdobrou em melhoria da qualidade de vida para todo mundo, em mais igualdade. E, de certa maneira, do ponto de vista espiritual não houve um enriquecimento do ponto de vista de solidariedade, do humanismo, do pacifismo, do respeito aos direitos humanos. Pelo menos não se deu na mesma proporção. Há muito que ser reformado e explorado. Tem uma agenda econômica inexplorada que diz respeito a formas alternativas de organização da propriedade.
Aliás, o sr. dedicou se dedicou, em um de seus trabalhos, a refletir sobre sindicatos e cooperativas. O sr. ainda avalia o modelo de "cooperação entre cooperativas" como a superação do capitalismo? Acredita que isso seja desejável?
Ali eu estava dizendo como o Marx entendia a superação do capitalismo. É um texto de exegese. As pessoas entendem que o Marx opunha planejamento e mercado. O Marx nunca trabalhou nessas categorias. As categorias que ele trabalhava eram da esfera da política. Ele entendia o capitalismo como sendo regido por uma dupla determinação: despotismo dentro da fábrica e anarquia fora dela. É assim que ele via a dinâmica da economia capitalista. E ele dizia que o despotismo dentro da fábrica pode ser superado por formas alternativas de organização da propriedade. E apontava a cooperativa como forma de superação do despotismo manufatureiro. Mas ele via um problema de difícil solução da anarquia, porque as cooperativas podem se organizar e competir entre si mantendo de certa maneira a lógica do capital sem patrão. E ele dizia que a superação da anarquia se daria pela cooperação entre as cooperativas.
O sr. argumenta também que, para subverter a lógica do capital, seria preciso democratizar a política tributária, e que, para isso, seria necessário criar um "imposto sobre a superfluidade dos bens". Por que isso é necessário e como isso se daria?
Outra medida de se fazer essa discussão é quando você discute a taxação das grandes fortunas. Ou quando você aumenta impostos sobre bens supérfluos, como bebida e cigarro. A ideia é que você deve usar o sistema tributário para orientar a produção. O sistema tributário pode ser usado para emitir sinais do que a sociedade democrática deseja que seja produzido. Quando você isenta bens de primeira necessidade, desonera de impostos a cesta básica ou o material de construção pra edificar moradias populares, você está pensando a partir dessa lógica.
O sr. citou a bebida e o cigarro...
Te dou um exemplo de uma das coisas mais regressivas do ponto de vista tributário. Você tem 7 milhões de veículos em São Paulo que pagam IPVA, e você tem iates, jatos executivos e helicópteros, uma das maiores frotas do mundo, que não paga imposto sobre propriedade de veículos automotores.
O sr. acha que helicópteros tinham que pagar IPVA?
A Constituição autoriza a cobrança de imposto de todos os veículos automotores. Se você tem um carro popular, 4% sobre o patrimônio de quem tem um carro popular, não vejo nennhuma razão pra não cobrar os mesmos 4% de quem circula pela cidade de helicóptero.
O sr. vai comprar uma briga com os donos de helicóptero. São Paulo tem uma das maiores frotas do mundo. 
Daí compra um carro popular! (risos)
Mais à frente, o sr. diz que esse imposto tenderia a ter efeitos muito limitados e que, para haver uma melhor distribuição da renda, seria necessária a “socialização da propriedade privada”, mas “mantendo-se o mercado”. O sr. pode explicar melhor?
Veja que hoje até o BNDES financia a organização de cooperativas no país. Essa vertente da economia solidária pode ser explorada de maneira muito profunda. A ideia de que trabalhadores possam assumir a gestão de empresas que estejam em estado falimentar tem sido recorrente a toda a literatura que pensa o assunto.
Mas isso é um objetivo a ser alcançado?
É uma possibilidade a ser explorada. Uma das coisas erradas da esquerda é transformar o livre pensar em dogmas. Quando escrevi esses textos, não estava pensando em me candidatar a nada. Estava pensando em fazer o debate aflorar. Há aquilo em que há plausibilidade, que é fruto de um desejo de um sonhador, um intelectual que estava disposto a permanecer no campo da imaginação e não abdicar disso que vários intelectuais abdicaram. Me compadeço de ver pessoas que eram adeptas de uma visão autoritária da esquerda, stalisnistas ou trotskistas, defendendo o extremo oposto daquelas ideias, migrando do Estado absoluto sem prestar contas dessa mudança de posição. Me sinto à vontade pra falar do tema porque desde a minha militância estudantil eu sempre guardei distanciamento desse pensamento.
Na avaliação do sr., a transição de um capitalismo de empresas para um capitalismo de cooperativas exigiria, além de um imposto progressivo sobre a propriedade, a "centralização progressiva nas mãos do Estado democrático do processo de intermediação financeira", de modo a garantir recursos para "a cooperativização dos não-proprietários". Como se daria essa centralização?
O que já estava aparecendo no horizonte, é que o sistema financeiro, da forma como ele foi desregulamentado, ele ia produzir uma crise de proporções gigantescas, como produziu. Já nos anos 90, todos os economistas progressistas diziam o seguinte: a desregulamentação do sistema financeiro como vem sendo feita vai gerar um caos financeiro no mundo, que é o que se verificou pouco tempo depois. O que eu dizia naquela época era que eu não via como as políticas keynesianas tradicionais serviriam de guia para a superação da crise que se avizinha. Essa é uma crise de proporções grandes e as políticas keynesianas clássicas, monetária e fiscal, não vão dar conta. O Estado vai ter que participar cada vez mais do sistema de crédito. Que, aliás, é o que está acontecendo na Europa nesse momento de um jeito, e nos Estados Unidos de outro.  Mas mesmo nos Estados Unidos, onde não há perspectiva de estatização de bancos, como na Europa. Hoje o Estado americano tem muito mais atuação no sistema financeiro do que tinha em 2008.
O sr. sugere no livro que "a socialização dos meios de comunicação, a partir da criação de cooperativas de jornalistas e artistas" seria uma forma de alterar um quadro em que, segundo o sr., "a lógica privada define a pauta política em discussão numa esfera pública". Como se daria essa socialização?
Não é polêmico. Até os liberais reconhecem. Escrevi em uma época em que o mundo virtual estava iniciando. De certa forma o mundo virtual realizou uma parte dessa utopia. Quando você tem uma lógica estritamente privada não há como negar que a visão de mundo do proprietário incida sobre a maneira pela qual o sistema de promoção das pessoas vai ocorrer. Quando se fala em socialização da propriedade privada, as pessoas imediatamente associam com privatização. Esse foi um dos grandes equívocos que a esquerda cometeu no passado. Evidentemente que alguns serviços essenciais têm que ser tratados pelo Estado. Em todo o mundo se observa isso, a começar pela educação pública. Mas quando você democratiza acesso ao conhecimento, ao crédito, à terra, a renda, quando você organiza cooperativas, e há várias maneiras de organizar cooperativas... em geral pensamos em cooperativas com aquela visão romântica do começo do século XIX. Mas o que é o Linux, se não uma produção cooperativa de um sistema operacional? O que é a Wikipedia, se não a produção cooperativa de uma enciclopédia eletrônica?
O Estado deve fomentar esse tipo de organização?
Cuidando muito pra que isso não implique o erro correlato. Se a propriedade impõe um viés ou outro, não pode o Estado impor um viés. A ideia é tornar as pessoas mais livres. O ideal de um socialista é tornar as pessoas mais livres. E sempre que você puder fomentar formas alternativas de organização da produção material e cultural, sem que esse fomento signifique se imiscuir num assunto próprio dessa esfera, ele é bem vindo. Sempre que o Estado pode fomentar a cultura sem incidir sobre a orientação dessa produção, por meio do sistema de crédito, por exemplo, ou do sistema tributário de incentivos, permitir que as pessoas se organizem de formas alternativas, seja na produção material, seja na espiritual, de informação, de cultura, penso que vai na direção de ampliar a esfera de autonomia e liberdade do individuo.  Como isso pra mim é um pressuposto de toda ação, a esfera da liberdade, porque acredito que só vamos produzir uma sociedade mais justa ampliando a liberdade dos indivíduos e isso significa muitas vezes acesso a crédito, a propriedade intelectual, a bens materiais, você promove uma sociedade mais livre.
O sr. é contrário à regulamentação da mídia?
No que diz respeito a conteúdo, sim.
E no que diz respeito à forma?
No que diz respeito a propriedade cruzada, a impedir monopólio, como nos Estados Unidos, por exemplo, eu penso que é agenda até liberal. A questão da propriedade cruzada dos meios de comunicação já foi discutida e solucionada há muito tempo no mundo desenvolvido. Impedir a oligopolização pra que haja mais pluralidade de opiniões, isso não é atividade que incide sobre a reprodução simbólica, mas tem boas repercussões sobre a reprodução simbólica em proveito do pluralismo.
O que deveria ser feito? Uma lei de meios, como na Argentina?
Quando você fala em lei de meios aqui, as pessoas, com razão, até pelo nosso passado autoritário, pensam imediatamente numa lei que vai inibir a circulação de opiniões. O que uma lei de meios poderia fazer era fomentar a circulação de opiniões, impedindo a oligopolização do setor. Quanto mais plural for a sociedade, quanto mais arejados forem os canais de comunicação, quanto mais as pessoas puderem tomar conhecimento do que pensam as outras, e formar livremente seu juízo sobre os temas de interesse público, mais democrática será a sociedade.
O sr., então, é contrário a que uma empresa tenha uma televisão com penetração em 100% do território nacional, um jornal,  uma cadeia de radio...
Nos termos da sociedade liberal, penso que deve haver limites pra propriedade cruzada. Mas nos termos de uma sociedade liberal. A lei americana é um bom termômetro.
Mas isso deveria ser feito no Brasil e de que forma?
Aí é papel do Congresso discutir os modelos. Mas eu entendo que qualquer lei que vise democratizar o acesso à informação ela tem que ser pensada sobre a ótica econômica, e não sobre a ótica da reprodução simbólica. A reprodução simbólica tem que ser cada vez mais livre. E pra que ela seja cada vez mais livre você tem que oferecer condições pra que o pluralismo viceje no país e não a oligopolização, concentração da informação nas mãos de meia dúzia de famílias.
Falávamos sobre a propriedade privada e um dos temas da semana foi a concessão dos aeroportos. O PSDB falou em estelionato eleitoral, disse que o PT agora entrou nas privatizações. O sr. acha que esse tema vai voltar à campanha? Como o sr. vê essa discussão?
Eu quando era assessor do ministro do Planejamento, eu redigi a lei das PPPs.
A gosto ou a contragosto?
Eu fui pra isso. Fui convidado pelo Guido (Mantega). Participei da elaboração da lei de concessão do lixo, do transporte público (refere-se à sua atuação como chefe de gabinete da secretaria de finanças na gestão Marta Suplicy).
Como é que o sr. defende a socialização da propriedade privada e as concessões?
Não vejo contradição entre o Estado desenvolver políticas que permitam aos indivíduos acesso a formas emancipadas de organização da produção e tarefas que tem que ser executadas pra garantir o bem estar. Você não pode esperar os trabalhadores se organizarem em cooperativas ou organizar formas de trabalho livre, intelectual, artístico, cientifico, enquanto há tarefas que tem de ser feitas no curtíssimo prazo pra garantir o bem estar da sociedade. O ProUni é uma parceria público-privada que elaborei na época em que redigi as PPPs.
Mas aí é um modelo bem diferente da concessão de aeroportos.
A parceria público-privada nas suas várias possibilidades, e na minha opinião o que se fez nos aeroportos foi exatamente isso, uma parceria público-privada pra garantir os investimentos necessários para garantir a ampliação do serviço, é diferente do modelo dos anos 90. Primeiro porque nos anos 90 a tônica foi a transferência de propriedade. E aqui não se trate disso. A Vale do Rio Doce deixou de ser patrimônio público.
O sr. está fazendo uma diferenciação entre privatização e concessão.
Você estabeleceu uma parceria público-privada em que o setor público entra com o equipamento, o investidor entra com a ampliação dos serviços e compartilham do resultado econômico. Isso é completamente diferente de vender a Vale.
Mas o sr. disse em entrevista à TV Estadão, sobre as OSs, que era contrário à gestão de equipamentos públicos por empresas privadas.
Na saúde?
É.
Na saúde, sim.
No caso dos transportes é deferente?
Saúde e educação são, do ponto de vista constitucional, deveres do Estado. Você tem uma lógica constitucional. É dever do Estado. Por que a gestão de uma universidade pública precisa ser transferida pra iniciativa privada? Não vejo razão pra isso.
Mas essa lógica não vale para os transportes?
Não vale mesmo. Porque ali você está falando de investimento, de uma área de atuação do poder público que não é dever exclusivo do Estado. Você não está falando de um direito básico como saúde e educação. O governo Lula fez concessão de rodovias. Qual a diferença pra concessão de aeroportos? Só que compara os preços dos pedágios nas rodovias estaduais e nas federais. Vai ver que a diferença muito grande. O princípio da modicidade tarifária foi o eixo que norteou o processo. Aliás, a presidenta Dilma remodelou inteiro o modelo do setor elétrico invertendo a lógica dos anos 90. Colocou a modicidade tarifária na centralidade do processo. A parceria público-privada é um instrumento moderno de gestão pública.
No livro o sr. afirma ainda que o marketing político é guiado por "concepções rasteiras" que tratam o eleitor como consumidor. Diz ainda que ele só oferece as condições para que o eleitor confirme suas convicções e preconceitos. Ainda pensa dessa forma?
O marketing político, eu digo em outra passagem, ele é incontornável. Você vai lidar com a questão da forma. Ela é importante, mas tem que estar subordinada à tua plataforma de atuação. Quando quer que o candidato subordine a plataforma à forma, na minha opinião presta um desserviço à democracia e concorrendo pra produzir efeitos deletérios sobre ela. Trabalhar forma, apresentação, faz parte do processo moderno de abordagem do eleitor. Mas você tem que ter claro que a orientação política tem que prevalecer.
A revista "The Economist" postulou recentemente que o Brasil é o "mais ambíguo dos países que praticam o capitalismo de Estado". O modelo brasileiro é efetivamente de capitalismo de Estado?
Ainda há uma confusão muito grande entre o publico e o privado no Brasil. Essa separação ainda não foi realizada de maneira cristalina. O mais curioso é que o capitalismo é que vem assumindo essa feição mais recentemente. Em vez de nos tornarmos mais capitalistas, é o capitalismo que está se tornando mais patrimonialista. Veja essa estatização das dividas privadas. É a forma que o capitalismo desenvolveu de socializar os prejuízos e tocar a vida. Mas os custos sociais disso são extraordinários e as pessoas não conseguem nem identificar os culpados porque tudo é feito de maneira anônima.
Mas é um modelo de capitalismo de Estado?
Eu não classificaria dessa forma até porque a maioria das empresas foram privatizadas. Mas apesar da privatização das empresas estatais na década neoliberal, você ainda tem uma cultura patrimonialista na gestão da coisa publica.
O sr. disse em 2001, na exposição que originou o livro das cooperativas, que "o PT deveria empunhar com mais brio a bandeira do socialismo". Isso continua valendo? Mais: o governo tem agido nessa direção?
Eu já descrevi o que entendo por socialismo. Um repudio à tradição autoritária da esquerda e um congraçamento no combate à desigualdade e à intolerância. À luz disso, sim, podemos nos valer dessa bandeira com a maior tranquilidade até porque o PT nasceu do rompimento com essa tradição autoritária, que prevalecia nos antigos partidos comunistas. E sim à segunda pergunta: o governo do presidente Lula inaugurou uma era de combate às desigualdades, foi o período da historia brasileira em que a desigualdade mais caiu. Do ponto de vista da diversidade também estamos dando uma demonstração muito efetiva da integração do negro, do convívio pacifico com as comunidades originárias, com a demarcação de terras, a questão de gênero, por tudo, mais também com a eleição da presidenta da República. E no que diz respeito às oportunidades econômicas, os números estão aí. Nunca se gerou tanto emprego, nunca se apoiou tanta cooperativa, nunca se socializou tanto o crédito. O acesso ao conhecimento também, você dobrar as matriculas nas universidades federais, promover o maior programa de concessão de bolsas de estudo pra jovens de baixa renda, isso tudo faz parte de uma agenda que é aderente ao que eu enunciei.
Permita-me fazer uma contraposição, que é inclusive do sociólogo Chico de Oliveira, que o sr. citou há pouco. Como fica a divida pública? O Brasil gasta 20 vezes mais com juros da dívida do que gasta com o Bolsa Família.
A dívida pública caiu à metade no governo Lula. A dívida externa foi paga.
Mas o Brasil continua gastando muito mais com os juros da dívida do que com a Educação, por exemplo, ou qualquer outra área.
Mas os gastos, com a rolagem da dívida publica, são decrescentes. Uma coisa é você gastar pouco com a dívida pública e manter no mesmo patamar elevado, como nós herdamos. Nós pagamos a divida externa e estamos liquidando a dívida interna. A dívida interna era superior a 60% do PIB, e hoje é inferior a 40%. Estamos nos livrando desse passado de irresponsabilidade fiscal.
Como defender o socialismo depois de uma eventual aliança com o prefeito Kassab?
Servi o governo Lula com gosto, como professor universitário. Ele representou, do ponto de vista das oportunidades, um momento da história do Brasil que eu nunca tinha vivido. Tenho 49 anos de idade e vivi a melhor década da minha historia. O governo Lula abriu um leque de oportunidades de desenvolvimento do país que não estavam dadas. Estamos discutindo hoje aquilo que era impensável nos anos 80 e 90. Perspectivas de desenvolvimento humano que não estavam dadas. O governo Lula teve que fazer alianças. Não vou falar de um partido ou outro. No plano federal, os partidos aliados foram parceiros de um projeto, até porque perceberam que era um projeto que elevava as nossas pretensões. Muitos se renderam Às evidencias tardiamente. Na política você não pode abdicar dos seus princípios, em primeiro lugar, sobretudo éticos, você não pode abdicar das suas pretensões de transformação da sociedade. O PT vai ser sempre um partido que vai buscar a transformação da sociedade pra melhor. E sabe que o jogo democrático... o grande erro da esquerda autoritária com a qual o PT rompeu foi imaginar que não precisava de ninguém pra mudar o mundo. Nós compreendemos os dilemas da democracia, os constrangimentos nacionais de uma vida política onde as pessoas têm opiniões diversas, onde não há amadurecimento pra algumas propostas. Temos também que compreender que muitas ideias de esquerda se mostraram infrutíferas, outras estão mostrando um potencial importante de transformação.
Não incomoda ao sr., como intelectual, a frase "nem direita, nem esquerda, nem de centro" do Kassab? Não há que haver ideologia pra fazer aliança?
Em primeiro lugar ele não é filiado ao meu partido, mas a um outro, que tem outra visão de mundo. Em segundo lugar, se você decide participar do jogo da política democrática, você não pode abdicar... deixa eu achar a palavra correta (pensa alguns segundos). Quando se faz esse compromisso com a democracia, você está, de certa maneira, se comprometendo em respeitar as regras desse jogo que você aceitou jogar. E a democracia é um governo de maioria. É um governo de coalizão. Não estamos num sistema bipartidário, mas pluripartidário. Todo partido que ganhar uma eleição sabe que vai ter que promover uma aliança pra governar. Como sair dessa aparente contradição? Você tem uma visão de mundo e terá que se aliar com quem pensa diferente de você. A partir do resultado. O governo Lula, apesar de ter feito uma coalizão com partidos que não professam a ideologia do PT, que não comungam a mesma visão de mundo, essa coalizão resultou em mais igualdade e mais liberdade pra população brasileira. O resultado do governo Lula é aderente àquilo que ele defendeu nas campanhas eleitorais das quais participou. Se uma coalizão colocar em risco os princípios que você defende, aí ela vai estar comprometendo o ideário, e esse é o limite de qualquer aliança.
Mas aí não estamos falando de ética de resultados, e não de princípios? Não é o pragmatismo em detrimento da ideologia?
Mas a ética da responsabilidade weberiana é a regra da modernidade.
Isso quer dizer o quê?
Você tem duas éticas pro Weber. E a ética da responsabilidade é a ética que tem ganhado o ocidente cada vez mais. A ética da responsabilidade prepondera sobretudo num mundo não binário, que é o que estamos vivendo hoje. Não é a polarização no Brasil em torno de duas visões do mundo. Você tem pluripartidarismo, você sabe que tem que estabelecer um governo de maioria, e as alianças tem que ser pautadas de tal maneira a não comprometer o objetivo do processo.
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