ENTRE A
DOMINAÇÃO DO IMPÉRIO E A LIVRE
COOPERAÇÃO: A HUMANIDADE EM SUA LONGA ENCRUZILHADA - INCLUSIVE O BRASIL (1/6)
Ralf
Rickli - julho de 2013
1.
PRÓLOGO: AS FORÇAS EM JOGO DESDE QUE
EXISTE GENTE
Para enfrentar o modesto propósito de resumir a
história da humanidade em três páginas como introdução ao dia de hoje,
“comecemos pondo de lado os fatos” (como disse um dia um certo Rousseau),
ficando apenas com as estruturas que estão por trás da maior parte deles. Modestamente...
1.1 A quase
totalidade dos problemas da humanidade deriva de um só, que é um detalhe
estrutural do caráter humano: a vontade que cada pessoa sente de dominar
outra(s) pessoa(s). Em outras palavras: a vontade de usar sua liberdade
para destruir liberdades de outros.
1.2 Liberdade
é a condição de poder exercer sua própria vontade (fazer o que se quer). A
liberdade é individual por natureza: se refere a cada um.
1.3 Igualdade
é o coletivo de liberdade. É a condição de cada integrante de um
conjunto de seres humanos poder exercer
sua própria vontade, nenhum com menos possibilidades que outro. Portanto, ao
contrário do que alguns pensam, a igualdade não se opõe à liberdade, e sim a
leva ao máximo possível no plural (qualquer número de dois para mais).
1.4 Individualismo,
entendido com honestidade, só pode significar “cada um exercer sua vontade nos
limites do que é capaz sozinho: sem colaboração nem serviço de nenhum
outro”. Já se provou que um ser humano dificilmente sobrevive nessas condições,
e se sobrevive não realiza nada além de sobreviver. (Se chega a realizar, já não
é de modo verdadeiramente individualista, pois é com capacidades que absorveu
dos outros membros de uma coletividade,
ao crescer. Sem coletividade, nenhum filhote de Homo chega a se efetivar
como sapiens).
1.5 Fraternidade,
solidariedade ou cooperação é associar as vontades individuais
para a realização coletiva de fins que beneficiem a todos os integrantes de uma
coletividade. (Por brevidade, podemos admitir a palavra “desenvolvimento” para
essa realização de benefícios). Isso depende de cada um ceder um pouco da sua
liberdade, para harmonizá-la com as dos outros, enquanto quiser fazer parte da
coletividade. Das formas possíveis de desenvolvimento, esta é a que se empenha
em não se afastar da igualdade (ou afastar-se o menos possível). Importante: a
neurociência mostrou que o ser humano é biologicamente capacitado para
isso mediante o “circuito da empatia”.
1.5.1 Pode-se
dizer que organização fraterna ou cooperativa é horizontal, pois as
pessoas ficam mais ou menos em um mesmo nível de poder.
1.5.2 “Esquerda”
é uma designação tradicional da busca por uma sociedade de cooperação
igualitária e horizontalidade em geral. Se muitos pensam que “esquerda” se
refere a uma busca de fortalecimento do poder do Estado, isso decorre da
problemática que será abordada em 1.7 (a tentativa de usar o Estado em
defesa da igualdade).
1.6 Tirania,
ou dominação é uma pessoa usar sua liberdade para se apropriar da
liberdade de outra(s). Com a dominação, a vontade de uma só pessoa passa a
dispor da força de outra(s) para se realizar: em lugar de dispor de 2 braços,
passa a dispor de 4 braços, ou de 40, ou mesmo de, p.ex., 400 mil. O dominador
se torna como que sobre-humano às custas da sub-humanização ou desumanização de
outros (pois um ser humano privado de liberdade está desumanizado).
1.6.1 Pode-se
dizer que a dominação é vertical, em contraste com a horizontalidade da
cooperação, mencionada em 1.5.1.
1.6.2 Cooperação
entre dominadores para melhor dominar constitui oligarquia, o que
(simplificando bastante) termina dividindo a coletividade em classes.
Neste momento não é necessário distinguir entre os diferentes estilos e agentes
históricos (p.ex. feudalismo e capitalismo, aristocracia e burguesia, etc.); o
fundamento geral é que a classe dominante fica com os meios de produção (terra,
máquinas, capital) e, para não sucumbirem todos à fome e outras necessidades, a
classe sem meios termina cedendo sua força de trabalho para operar esses meios,
formando uma sociedade intencionalmente desigual.
1.6.3 O
objetivo da dominação é a própria dominação, ou seja: exercer poder
sobre outro(s). Termos econômicos como “lucro” não comunicam claramente a
natureza desse objetivo: o lucro só interessa por ser um meio de aumentar a
reserva de poder do dominador.
1.6.3.1 Psicológica
e neurologicamente, a efetivação do impulso de dominação só é possível em uma
condição de psicopatia (incapacidade de sentir o que o outro sente), o
que é deficiência do funcionamento do circuito da empatia referido em 1.5.
(Voltaremos a isso no epílogo.)
1.6.4 A
dominação é sempre imposta à força - seja força das armas, seja de
trapaças econômicas que levam à necessidade, seja da difusão de crenças
enganosas.
1.6.4.1 A
violência inicial que institui a dominação costuma vir maquiada em termos como grandeza,
nobreza, majestade. A palavra “violência” costuma ser reservada para as
reações dos oprimidos contra a dominação - reações muitas vezes apontadas como
“tentativa de dividir a sociedade”, quando apenas desnudam a divisão à força
que fez a sociedade ser como é.
1.6.4.2 A maquiagem
sistemática da dominação termina por constituir um vasto sistema de crenças que
se reproduz de geração em geração, em parte automaticamente, em parte mediante
ações intencionais. (Na linguagem marxista, a palavra ideologia se
refere a esse sistema de crenças obscurecedoras, porém é preciso cuidado com
essa palavra, pois também é usada com outros sentidos em outros sistemas de
linguagem, e a maior parte das pessoas termina por usá-la com sentidos
distintos em diferentes momentos).
1.6.5 O sentido
original do Estado é a imposição de vontade dos tiranos através de
grupos de trabalhadores cooptados e armados para isso. Nos termos tradicionais
do interior do Brasil, “os hómi do
coronel”: jagunços, feitor, capataz, administrador etc.
1.6.5.1 Esse
sistema de imposição de vontade costuma ser apresentado aos dominados como
tendo a finalidade de protegê-los de perigos. Às vezes de fato há perigos reais
que vêm de fora do conjunto, mas também pode se tratar de perigos inventados e
propagandeados, ou mesmo de perigos reais criados com a finalidade específica
de convencer que tal “proteção” é necessária.
1.6.5.2 O
Estado raramente foi ele mesmo a cabeça do poder: geralmente é apenas meio de
imposição do poder de alguma oligarquia, que normalmente nem é vista ou conhecida
com clareza, pois faz o Estado se expor e se arriscar em seu lugar.
1.6.5.2.1 Portanto,
a dominação se realiza sempre mediante conspiração. Onde há dominação,
conspiração não é uma exceção e sim a regra. Para obscurecer esse fato,
realiza-se a metaconspiração que é divulgar, por um lado, teorias de
conspiração mirabolantes, irreais, e por outro, divulgar a crença de que
conspirações não existem e que é ridículo dar crédito a toda e qualquer teoria
de conspiração. Isso faz parte das operações da ideologia, no sentido
exposto em 1.6.4.2.
1.6.6 “Direita”
é uma designação tradicional de tudo o que busca a perpetuação da
verticalidade, ou seja: da desigualdade e das estruturas de dominação. Muitas
vezes, porém, a direita propõe a desmontagem do Estado, e aí muitos acreditam
que ela está propondo liberdade e horizontalidade - quando se trata de uma
forma mais refinada de dominação: ela pode (p.ex.) produzir uma relativa
igualdade entre os dominados, enquanto controla as condições a partir de uma
posição cada vez mais invisível e/ou maquiada por propaganda. Uma estrutura,
obviamente, bem mais difícil de combater que a de uma dominação escancarada.
(Comparar com “esquerda” em 1.5.2)
1.7 Onde houve
tentativas de desfazer a dominação, retornando o poder à coletividade una e
cooperativa, tentou-se também inverter o sentido original do Estado: um Estado Democrático
seria um sistema de defesa da coletividade igualitariamente livre contra
as tentativas de dominá-la e tiranizá-la. A ideia não é descabida, pois a
tirania usa força: como resistir a ela sem também usar força?
1.7.1 Em
relação a um Estado Democrático ideal, pode-se falar de uma verticalidade
defensiva, cuja finalidade seria se contrapor à verticalidade da dominação
para garantir que a coletividade possa permanecer organizada horizontalmente,
ou seja: de modo fraterno.
1.7.2 Chegamos
aqui ao drama central da Política, até hoje não resolvido: toda coletividade
sem um sistema de defesa está de fato sujeita a ser apresada e
tiranizada por forças externas. Mas a força que serve para defender é a mesma
que serve para atacar. Como garantir que essa força não seja usada para
tiranizar a própria coletividade que deveria defender? Ou seja: como evitar que
o Estado Democrático passe a atuar como Estado Tirânico, seja a partir de si
mesmo, gerando uma nova oligarquia (como aconteceu na sequência da Revolução
Russa), seja associando-se às forças externas referidas acima (como em 1964 no
Brasil)? (Sobre isso e a Revolução Russa, recomendo enfaticamente a
seguinte fala de Noam Chomsky, por mais que isso venha a me custar pedradas de
muitos: http://www.youtube.com/watch?v=zDJee4stYN0
)
1.7.3 A
honestidade obriga a reconhecer que um Estado Democrático permanece como ideal:
nunca foi plenamente realizado. Já houve tentativas significativas, mas
poucas vezes duraram.
1.7.3.1 Isso
parece dar razão aos anarquistas: melhor seria ter Estado nenhum desde
já - mas esse “desde já” é totalmente ilusório: retire-se totalmente o Estado
de uma coletividade, e ela logo será apresada pelo Estado vigente em outra
coletividade, que com isso se expande como Estado Imperialista. Ou seja:
enquanto subsistir alguma oligarquia no mundo, toda tentativa de implantar
anarquismo levará apenas à submissão a senhores ainda mais remotos que os
anteriores.
1.7.3.2 O
próprio Marx entendia isso. Ele preconizava a tomada das estruturas de poder
pelas classes trabalhadoras para em seguida desmontá-las, levando a uma
sociedade sem classes e sem Estado: é isso o que ele entendia como “a
Revolução”. Mas ele mesmo tinha claro que tal Revolução teria que ser mundial,
numa só sequência de acontecimentos. Pois uma sociedade revolucionada meramente
local seria logo conquistada por forças de dominação externas - ou então teria
que parar no meio do processo (antes de atingir a condição igualitária
desejada) para ter meios de se defender desses ataques externos - gerando mais
uma vez um Estado potencialmente tão opressor quanto aqueles a que tenta
resistir. De modo que a Dominação triunfa mais uma vez: ou invadindo
diretamente a área revolucionada, ou gerando nela um espelhamento de si.
1.7.3.3 Isso
sugere que de momento o melhor que se pode almejar (ou o menos ruim) é lutar
pelo aperfeiçoamento do Estado Democrático - justamente no sentido de que seja
efetivamente Democrático, inventando-se meios de impedir que se torne Tirânico
como de costume - até que um dia existam condições mundiais para a abolição de
todo e qualquer sistema de dominação, de uma vez em todo mundo.
1.7.3.3.1 Mas
não será pensável que já tenhamos atingido essas condições mundiais “para a
abolição de todo e qualquer sistema de dominação, de uma vez em todo mundo”?
Tentar lidar com essa questão em termos de reflexão genérica, como fizemos até
aqui, seria uma futilidade suicida: aqui é forçoso saltar para dentro do
conhecimento de fatos concretos, com localização definida no tempo e no espaço.
Próximo
capítulo:
2. A REALIDADE DO IMPÉRIO: A TIRANIA MUNDIAL ATIVA
(quando eu conseguir!)
.
2. A REALIDADE DO IMPÉRIO: A TIRANIA MUNDIAL ATIVA
(quando eu conseguir!)
Alguns pontos explicados aqui são claros até para um leigo, enquanto outros me trouxeram uma situação até palpável, que eu tive dificuldade de compreender (Sentido original do estado, por exemplo). Acredito que mesmo esses pontos que tive dificuldades TAMBÉM são claros e óbvios pra muitos. Não eram óbvios para mim. Obrigado pela aula, estou sempre atras de textos tão claros quanto este. Continue louco, da forma que nasceu :- p
ResponderExcluirValeu, Erick!!
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