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29 julho 2013

ENTRE A DOMINAÇÃO DO IMPÉRIO E A LIVRE COOPERAÇÃO: a humanidade em sua longa encruzilhada - inclusive o Brasil (capítulo 1/6)

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ENTRE A DOMINAÇÃO DO IMPÉRIO E  A LIVRE COOPERAÇÃO: A HUMANIDADE EM SUA LONGA ENCRUZILHADA - INCLUSIVE O BRASIL (1/6)

Ralf Rickli - julho de 2013

1. PRÓLOGO:  AS FORÇAS EM JOGO DESDE QUE EXISTE GENTE

Para enfrentar o modesto propósito de resumir a história da humanidade em três páginas como introdução ao dia de hoje, “comecemos pondo de lado os fatos” (como disse um dia um certo Rousseau), ficando apenas com as estruturas que estão por trás da maior parte deles. Modestamente...

1.1   A quase totalidade dos problemas da humanidade deriva de um só, que é um detalhe estrutural do caráter humano: a vontade que cada pessoa sente de dominar outra(s) pessoa(s). Em outras palavras: a vontade de usar sua liberdade para destruir liberdades de outros.

1.2   Liberdade é a condição de poder exercer sua própria vontade (fazer o que se quer). A liberdade é individual por natureza: se refere a cada um.

1.3   Igualdade é o coletivo de liberdade. É a condição de cada integrante de um conjunto de  seres humanos poder exercer sua própria vontade, nenhum com menos possibilidades que outro. Portanto, ao contrário do que alguns pensam, a igualdade não se opõe à liberdade, e sim a leva ao máximo possível no plural (qualquer número de dois para mais).

1.4   Individualismo, entendido com honestidade, só pode significar “cada um exercer sua vontade nos limites do que é capaz sozinho: sem colaboração nem serviço de nenhum outro”. Já se provou que um ser humano dificilmente sobrevive nessas condições, e se sobrevive não realiza nada além de sobreviver. (Se chega a realizar, já não é de modo verdadeiramente individualista, pois é com capacidades que absorveu dos outros membros  de uma coletividade, ao crescer. Sem coletividade, nenhum filhote de Homo chega a se efetivar como sapiens).

1.5   Fraternidade, solidariedade ou cooperação é associar as vontades individuais para a realização coletiva de fins que beneficiem a todos os integrantes de uma coletividade. (Por brevidade, podemos admitir a palavra “desenvolvimento” para essa realização de benefícios). Isso depende de cada um ceder um pouco da sua liberdade, para harmonizá-la com as dos outros, enquanto quiser fazer parte da coletividade. Das formas possíveis de desenvolvimento, esta é a que se empenha em não se afastar da igualdade (ou afastar-se o menos possível). Importante: a neurociência mostrou que o ser humano é biologicamente capacitado para isso mediante o “circuito da empatia”.

1.5.1   Pode-se dizer que organização fraterna ou cooperativa é horizontal, pois as pessoas ficam mais ou menos em um mesmo nível de poder.

1.5.2   “Esquerda” é uma designação tradicional da busca por uma sociedade de cooperação igualitária e horizontalidade em geral. Se muitos pensam que “esquerda” se refere a uma busca de fortalecimento do poder do Estado, isso decorre da problemática que será abordada em 1.7 (a tentativa de usar o Estado em defesa da igualdade).

1.6   Tirania, ou dominação é uma pessoa usar sua liberdade para se apropriar da liberdade de outra(s). Com a dominação, a vontade de uma só pessoa passa a dispor da força de outra(s) para se realizar: em lugar de dispor de 2 braços, passa a dispor de 4 braços, ou de 40, ou mesmo de, p.ex., 400 mil. O dominador se torna como que sobre-humano às custas da sub-humanização ou desumanização de outros (pois um ser humano privado de liberdade está desumanizado).

1.6.1   Pode-se dizer que a dominação é vertical, em contraste com a horizontalidade da cooperação, mencionada em 1.5.1.

1.6.2   Cooperação entre dominadores para melhor dominar constitui oligarquia, o que (simplificando bastante) termina dividindo a coletividade em classes. Neste momento não é necessário distinguir entre os diferentes estilos e agentes históricos (p.ex. feudalismo e capitalismo, aristocracia e burguesia, etc.); o fundamento geral é que a classe dominante fica com os meios de produção (terra, máquinas, capital) e, para não sucumbirem todos à fome e outras necessidades, a classe sem meios termina cedendo sua força de trabalho para operar esses meios, formando uma sociedade intencionalmente desigual.

1.6.3   O objetivo da dominação é a própria dominação, ou seja: exercer poder sobre outro(s). Termos econômicos como “lucro” não comunicam claramente a natureza desse objetivo: o lucro só interessa por ser um meio de aumentar a reserva de poder do dominador.

1.6.3.1   Psicológica e neurologicamente, a efetivação do impulso de dominação só é possível em uma condição de psicopatia (incapacidade de sentir o que o outro sente), o que é deficiência do funcionamento do circuito da empatia referido em 1.5. (Voltaremos a isso no epílogo.)

1.6.4   A dominação é sempre imposta à força - seja força das armas, seja de trapaças econômicas que levam à necessidade, seja da difusão de crenças enganosas.

1.6.4.1   A violência inicial que institui a dominação costuma vir maquiada em termos como grandeza, nobreza, majestade. A palavra “violência” costuma ser reservada para as reações dos oprimidos contra a dominação - reações muitas vezes apontadas como “tentativa de dividir a sociedade”, quando apenas desnudam a divisão à força que fez a sociedade ser como é.

1.6.4.2   A maquiagem sistemática da dominação termina por constituir um vasto sistema de crenças que se reproduz de geração em geração, em parte automaticamente, em parte mediante ações intencionais. (Na linguagem marxista, a palavra ideologia se refere a esse sistema de crenças obscurecedoras, porém é preciso cuidado com essa palavra, pois também é usada com outros sentidos em outros sistemas de linguagem, e a maior parte das pessoas termina por usá-la com sentidos distintos em diferentes momentos).



1.6.5   O sentido original do Estado é a imposição de vontade dos tiranos através de grupos de trabalhadores cooptados e armados para isso. Nos termos tradicionais do interior do Brasil,  “os hómi do coronel”: jagunços, feitor, capataz, administrador etc.

1.6.5.1   Esse sistema de imposição de vontade costuma ser apresentado aos dominados como tendo a finalidade de protegê-los de perigos. Às vezes de fato há perigos reais que vêm de fora do conjunto, mas também pode se tratar de perigos inventados e propagandeados, ou mesmo de perigos reais criados com a finalidade específica de convencer que tal “proteção” é necessária.

1.6.5.2   O Estado raramente foi ele mesmo a cabeça do poder: geralmente é apenas meio de imposição do poder de alguma oligarquia, que normalmente nem é vista ou conhecida com clareza, pois faz o Estado se expor e se arriscar em seu lugar.

1.6.5.2.1   Portanto, a dominação se realiza sempre mediante conspiração. Onde há dominação, conspiração não é uma exceção e sim a regra. Para obscurecer esse fato, realiza-se a metaconspiração que é divulgar, por um lado, teorias de conspiração mirabolantes, irreais, e por outro, divulgar a crença de que conspirações não existem e que é ridículo dar crédito a toda e qualquer teoria de conspiração. Isso faz parte das operações da ideologia, no sentido exposto em 1.6.4.2.

1.6.6   “Direita” é uma designação tradicional de tudo o que busca a perpetuação da verticalidade, ou seja: da desigualdade e das estruturas de dominação. Muitas vezes, porém, a direita propõe a desmontagem do Estado, e aí muitos acreditam que ela está propondo liberdade e horizontalidade - quando se trata de uma forma mais refinada de dominação: ela pode (p.ex.) produzir uma relativa igualdade entre os dominados, enquanto controla as condições a partir de uma posição cada vez mais invisível e/ou maquiada por propaganda. Uma estrutura, obviamente, bem mais difícil de combater que a de uma dominação escancarada. (Comparar com “esquerda” em 1.5.2)

1.7   Onde houve tentativas de desfazer a dominação, retornando o poder à coletividade una e cooperativa, tentou-se também inverter o sentido original do Estado: um Estado Democrático seria um sistema de defesa da coletividade igualitariamente livre contra as tentativas de dominá-la e tiranizá-la. A ideia não é descabida, pois a tirania usa força: como resistir a ela sem também usar força?

1.7.1   Em relação a um Estado Democrático ideal, pode-se falar de uma verticalidade defensiva, cuja finalidade seria se contrapor à verticalidade da dominação para garantir que a coletividade possa permanecer organizada horizontalmente, ou seja: de modo fraterno.

1.7.2   Chegamos aqui ao drama central da Política, até hoje não resolvido: toda coletividade sem um sistema de defesa está de fato sujeita a ser apresada e tiranizada por forças externas. Mas a força que serve para defender é a mesma que serve para atacar. Como garantir que essa força não seja usada para tiranizar a própria coletividade que deveria defender? Ou seja: como evitar que o Estado Democrático passe a atuar como Estado Tirânico, seja a partir de si mesmo, gerando uma nova oligarquia (como aconteceu na sequência da Revolução Russa), seja associando-se às forças externas referidas acima (como em 1964 no Brasil)? (Sobre isso e a Revolução Russa, recomendo enfaticamente a seguinte fala de Noam Chomsky, por mais que isso venha a me custar pedradas de muitos: http://www.youtube.com/watch?v=zDJee4stYN0 )

1.7.3   A honestidade obriga a reconhecer que um Estado Democrático permanece como ideal: nunca foi plenamente realizado. Já houve tentativas significativas, mas poucas vezes duraram.

1.7.3.1   Isso parece dar razão aos anarquistas: melhor seria ter Estado nenhum desde já - mas esse “desde já” é totalmente ilusório: retire-se totalmente o Estado de uma coletividade, e ela logo será apresada pelo Estado vigente em outra coletividade, que com isso se expande como Estado Imperialista. Ou seja: enquanto subsistir alguma oligarquia no mundo, toda tentativa de implantar anarquismo levará apenas à submissão a senhores ainda mais remotos que os anteriores.

1.7.3.2   O próprio Marx entendia isso. Ele preconizava a tomada das estruturas de poder pelas classes trabalhadoras para em seguida desmontá-las, levando a uma sociedade sem classes e sem Estado: é isso o que ele entendia como “a Revolução”. Mas ele mesmo tinha claro que tal Revolução teria que ser mundial, numa só sequência de acontecimentos. Pois uma sociedade revolucionada meramente local seria logo conquistada por forças de dominação externas - ou então teria que parar no meio do processo (antes de atingir a condição igualitária desejada) para ter meios de se defender desses ataques externos - gerando mais uma vez um Estado potencialmente tão opressor quanto aqueles a que tenta resistir. De modo que a Dominação triunfa mais uma vez: ou invadindo diretamente a área revolucionada, ou gerando nela um espelhamento de si.

1.7.3.3   Isso sugere que de momento o melhor que se pode almejar (ou o menos ruim) é lutar pelo aperfeiçoamento do Estado Democrático - justamente no sentido de que seja efetivamente Democrático, inventando-se meios de impedir que se torne Tirânico como de costume - até que um dia existam condições mundiais para a abolição de todo e qualquer sistema de dominação, de uma vez em todo mundo.

1.7.3.3.1   Mas não será pensável que já tenhamos atingido essas condições mundiais “para a abolição de todo e qualquer sistema de dominação, de uma vez em todo mundo”? Tentar lidar com essa questão em termos de reflexão genérica, como fizemos até aqui, seria uma futilidade suicida: aqui é forçoso saltar para dentro do conhecimento de fatos concretos, com localização definida no tempo e no espaço.

Próximo capítulo:
2. A REALIDADE DO IMPÉRIO: A TIRANIA MUNDIAL ATIVA
(quando eu conseguir!)
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2 comentários:

  1. Alguns pontos explicados aqui são claros até para um leigo, enquanto outros me trouxeram uma situação até palpável, que eu tive dificuldade de compreender (Sentido original do estado, por exemplo). Acredito que mesmo esses pontos que tive dificuldades TAMBÉM são claros e óbvios pra muitos. Não eram óbvios para mim. Obrigado pela aula, estou sempre atras de textos tão claros quanto este. Continue louco, da forma que nasceu :- p

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