O 'impulso de Manu'
e a Flotilha da Liberdade
- compartilhando um [pre]sentimento pessoal -
Neste artigo se optou por dizer as coisas com a linguagem antroposófica - derivada da obra de Rudolf Steiner. Toda linguagem é um sistema de símbolos. As coisas mais relevantes têm uma realidade para lá dos símbolos, e portanto também poderiam ser ditas com outras linguagens, totalmente diversas. Há razões para termos escolhido esta, neste caso. Quais, seria uma discussão à parte, mas de relevância quase nula em comparação com a do que se quer dizer. Que toda atenção fique, portanto, com o que se quer dizer, não com o 'como'.
Não faz muito tempo tive a oportunidade de fazer a revisão e editoração da tradução que o amigo Gerard Bannwart fez do último livro de Bernard Lievegoed, "O Salvamento da Alma" - agora disponível no catálogo das Edições Micael, de Aracaju.
Não faz muito tempo tive a oportunidade de fazer a revisão e editoração da tradução que o amigo Gerard Bannwart fez do último livro de Bernard Lievegoed, "O Salvamento da Alma" - agora disponível no catálogo das Edições Micael, de Aracaju.
Consistindo de memórias e reflexões expressas oralmente quando o autor, literamente, já se encontrava mais próximo do além que do cotidiano terrestre atual, era inevitável que ele abandonasse aí a reserva quanto às dimensões esotéricas do seu pensamento - reserva de que fez uso em trabalhos como "Fases da Vida" ou "Desvendando o Crescimento", em que falava basicamente como um médico ou psicólogo "que sabe um pouco mais".
O tema principal de "O Salvamento da Alma" são as três correntes espirituais cuja atuação o autor vê como como decisivas no mundo de hoje, e ao mesmo tempo como componentes indispensáveis do movimento antroposófico, mutuamente complementares, se for para este chegar a efetivamente cumprir suas missões perante a humanidade. (Nunca é demais a ênfase em que essas correntes pertencem ao mundo, não a um movimento; um movimento pode ser melhor ou pior instrumento das atuações de correntes assim, ou até mesmo deixar de ser deixar, mas nunca contê-las).
Uma dessas correntes teria por missão tratar especialmente das questões do conhecer, da (auto)consciência do espirito - e seria liderada (digamos assim) pela individualidade espiritual que se manifestou em Rudolf Steiner. Outra tem a ver sobretudo com a elaboração da matéria pelo espírito, envolvendo p.ex. - entre outras áreas - a farmacologia e a agricultura, e seria liderada pela individualidade conhecida como Christian Rosenkreuz.
Como se vê, em termos antroposóficos temos aí caminhos ligados prioritária e respectivamente ao Pensar e ao Querer. E o caminho do Sentir? Lievegoed o vincula à individualidade de Manu/Menes/Mani, da qual Rudolf Steiner teria dito possuir um grau espiritual de longe superior ao dele próprio e ao de Christian Rosenkreuz. Isso é bem compreensível pelo fato de esse caminho - o do Coração - ser responsável não só por si mesmo como também pela integração do conjunto dos três. (Parêntesis meu: o que foi expresso em termos de Filosofia, de modo independente, como "a Lógica do Terceiro Incluído", pelo filósofo rumeno Stéphane Lupasco, nas décadas de 30 a 60 do século passado).
A atuação principal da corrente de Manu seria a restauração, manutenção e desenvolvimento da capacidade de vínculo, solidadriedade e cooperação, sem a qual os seres que somos permanecem no nível do animal; sequer se efetivam como humanos. (Idem: outra percepção de Rudolf Steiner que foi amplamente reafirmada por pensadores e pesquisadores do século XX, entre eles o russo Vygotsky e o brasileiro Paulo Freire, e mais recentemente pela neurociência).
O impulso de Manu estaria presente em todas iniciativas das pessoas comuns de se ajudarem mutuamente, sem esperar soluções do Estado e sem interesses comerciais - mas não me cabe desenvolver isso em detalhes aqui: para tanto é melhor ir direto ao livro de Lievegoed.
Daqui para frente saio dos parênteses e assumo a frente do discurso pessoalmente: Neste momento o organismo-humanidade inteiro vem sofrendo direta e indiretamente (no sentido do agravamento de riscos) as conseqüências da defesa inadequada de uma causa inicialmente justa, porém que enveredou pelo pecado de considerar que alguns humanos são mais humanos que os outros.
Há poucos dias entrei em contato pela primeira vez com as reflexões de Gandhi (um óbvio representante da corrente de Manu) sobre a problemática judaica - e é impressionante como já nos anos 30 ele apontava que o encaminhamento dado à questão pelo movimento sionista estava levando a atos "que não podem ser justificados por nenhum código de conduta moral", a "crimes contra a humanidade", a "afundar em brutalidade". (Alguns trechos estão disponíveis em português, em tradução minha, em http://bit.ly/c6aEet ; a coletânea de todos esses textos em inglês se encontra em http://bit.ly/dw9PuG ).
Mas ainda hoje quem se limita ao que vê na grande imprensa, sem se dar o trabalho de pesquisar em fontes suficientemente sérias e isentas, dificilmente imagina que seja tamanha a lista de atrocidades cometidas pelos governos de Israel desde a criação do país - e ainda antes pelos ativistas sionistas -, e que o grau de violência empregado, e o número de vítimas tanto fatais quanto 'meramente' reduzidas à miséria, é da ordem de dezenas de vezes tudo o que os vizinhos árabes já tenham feito contra Israel ou contra judeus, se não de centenas. (E, por favor, não diga que não antes de pesquisar!)
Somente mais algumas linhas de contextualização para o que vou dizer depois: atualmente 1 milhão e meio de pessoas vivem na faixa de Gaza em condições de campo de concentração. Conseguiu-se reconstruir, e precariamente, no máximo 1/4 do que foi destruído pelos bombardeios de 2008 - e que havia sido quase tudo . Israel não deixa entrar cimento - nem lâmpadas, velas, fósforos, livros, instrumentos musicais, giz de cera (!), roupas, sapatos, colchões, lençóis, cobertores, chá, café, chocolate, xampu. Comida e medicamentos básicos são de longe insuficientes. Assistência médica depende de conseguir um lugar na cota fixa dos que se deixa sair para isso, e muitos morrem sem conseguir.
A ONU já emitiu incontáveis ordens de levantar o bloqueio e é sumariamente ignorada. E 'razões de Estado' pareceram impedir até agora que qualquer governo se atreva a tomar medidas enérgicas contra essa e inúmeras outra violações dos acordos internacionais em vigor - se é que isso não se deve ao simples fato de Israel ter construído entre 100 e 200 bombas nucleares enquanto insistia em que ninguém mais pode tê-las.
A ONU já emitiu incontáveis ordens de levantar o bloqueio e é sumariamente ignorada. E 'razões de Estado' pareceram impedir até agora que qualquer governo se atreva a tomar medidas enérgicas contra essa e inúmeras outra violações dos acordos internacionais em vigor - se é que isso não se deve ao simples fato de Israel ter construído entre 100 e 200 bombas nucleares enquanto insistia em que ninguém mais pode tê-las.
No meio disso, 750 civis enchem seis navios com comida, medicamentos, cimento, roupas, e até brinquedos, e partem desarmados para Gaza.
Nem preciso relatar aqui que os barcos foram invadidos na escuridão das 4 e meia da manhã em águas internacionais, e seus tripulantes levados à força para Israel - país a que nem pretendiam chegar, pois Gaza oficialmente não faz parte dele.
Porém o que mais me impressionou em toda a seqüência dos fatos foi a recepção que os integrantes da flotilha tiveram depois, nos locais para onde foram "deportados" do país para onde tinham sido levados à força: na fronteira da Jordânia uma multidão começou a se formar dez horas antes da chegada dos ônibus; quando estes chegaram, seus passageiros foram recebidos entre festas e cantos e aclamados como heróis. Coisas semelhantes - mesmo se com ar menos 'interiorano' - se deram nos aeroportos da Turquia e da Grécia.
Motivado por sentimentos anti-Israel ou anti-judeus?
Não: olhem as fotos, olhem as caras: pelo menos nesses momentos, não existe um só rosto anti nada, só pró: pró uns aos outros, pró humanidade, pró restauração na crença de que podemos agir movidos pela compaixão e solidariedade até o nível do heroísmo, a despeito das razões de Estado e dos interesses econômicos. Um momento de emocionanete reencontro da humanidade com o melhor de si mesma, cujo impulso precisa ser percebido, captado, haurido, amplificado dentro de nós e devolvido ao mundo multiplicado milhares, milhões de vezes. Pois dificilmente se encontrará resposta melhor aos ataques tanto do poder-por-interesse-em-vantagens-concretas (Áriman) quanto do poder-pelo-gosto-do-poder (Lúcifer).
Estarei fantasiando quanto à nobreza de sentimentos de palestinos e jordanianos? Dou a palavra a Hedy Eppstein, 85 anos, judia cuja família toda pereceu em Auschwitz e que escapou da Alemanha nazista por pouco - e militante pela causa palestina desde 1982. Hedy já esteve cinco vezes na Cisordânia desde 2003 "para ver de perto o que estava acontecendo". "Muitos me diziam para ter cuidado, que como judia corria riscos nos territórios palestinos, mas a verdade é que os palestinos abriram suas casas e seus corações para mim, e até me protegeram do perigo, o qual veio do outro lado: o governo israelense."
Hedy está em sua terceira tentativa de chegar a Gaza, inclusive participando de uma caminhada através do deserto. Tentou embarcar na Flotilha da Liberdade em Chipre; como não conseguiu, pretende se juntar ao barco irlandês que, apesar de todo o acontecido, segue neste momento o mesmo trajeto da Flotilha da Liberdade, levando entre outros a Nobel da Paz Mairead Maguire. Consta, aliás, que diversos outros barcos estão se preparando para fazer o mesmo.
As fotos no início do artigo são de Hedy Eppstein, sobre a qual se encontram algumas informações adicionais em http://bit.ly/bS2Rt6 , e de Iara Lee, documentarista brasileira filha de coreanos e radicada em Nova York, que resolveu participar da Flotilha da Liberdade pelas razões que expôs em http://bit.ly/bTjJd4 . Seu relato depois do acontecido se encontra em http://bit.ly/dtONsA .
E agora deixo o assunto com vocês!
São Paulo, dia de Corpus Christi de 2010
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Ralf Rickli • arte em idéias, palavras & educação
http://ralf.r.tropis.org • (11) 8552-4506 • S.Paulo
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