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APRESENTAÇÃO
POR RALF RICKLI: Em 20/11/2017, Dia Nacional de Zumbi e da Consciência Negra, a
escritora e atriz Elisa Lucinda publicou este texto absolutamente
extraordinário na sua página no Facebook - mas é possível que tenha publicado sob
pressão de tempo, pois o texto saiu com inúmeros problemas de digitação, quando
Elisa é sabidamente dona de um texto refinado e preciso em todos os detalhes. Com
receio de que alguém possa pretender usar esses problemas de digitação para
desqualificar indevidamente um texto que, como já disse, é de extraordinário
valor, e como também sou do ofício do texto e, a meu modo, militante da causa, me
atrevi a fazer uma revisão básica disso (da digitação), sem alterar uma única
palavra, e a disponibilizar a partir deste blog, na esperança de que a autora
não leve a mal. Com a palavra: Elisa
Lucinda!
CONVOCAÇÃO À LUZ DOS NOVOS TEMPOS!
Quero reafirmar que à luz dos novos tempos velhas
narrativas não mais passarão. Não sobreviverão provérbios retrógrados e
retóricos e, menos ainda, tradicionais omissões. Quando eu disse que “coisa de
preto” era subtexto de grande parte da mente nacional e muitas vezes das mentes
do mundo, eu não estava fazendo uma hipótese. Estou falando de uma teoria filha
da prática de uma experiência de existir numa sociedade racista, sendo muitas
vezes a única negra não funcionária daquele ambiente, o que me dá um lugar
muito particular que eu faço questão de compartilhar. Inúmeras vezes já ouvi e
vi essa legenda gritando no olhar do meu julgador, depois de uma gargalhada,
depois de uma coisa mais surpreendente, mais espontânea, de alguma coisa mais
“exótica”, mais espalhafatosa, menos “comportada”. Já vi esse olhar muitas
vezes: “Coisa de preto, só podia ser preto”. O olhar sussurra pra si mesmo e eu
escuto. É claro que fui criada num país multicolor, é claro que acreditei na
democracia racial, mas só até entender a bipolarização flagrante entre brancos
e pretos exposta como uma hemorragia atuante e invisível em todos os lugares
que frequentei, sendo a única negra do colégio de freiras, sendo eu e meus
irmãos os únicos negros dos clubes, das colônias de férias dos funcionários da
Vale do Rio Doce e, mais tarde, a única negra de muitos elencos. Uma espécie
estranha de solidão. Então está posto o que é estrutural, o que é endêmico, o
que é constituinte desta educação racista brasileira estendida a todos sob o
manto da famosa “democracia racial.”
Balela.
Não sou eu, é o IBGE que afirma por cálculos
concretos: da multidão de desempregados que perambula pelas ruas da
desesperança no país, 66% são negros. Os salários dos brancos são 55% maiores
que os salários dos pretos, formando assim enormes corredores de exclusão
preenchendo o quesito da subutilização da força de trabalho brasileira. Gerações
e gerações de mulheres negras são multiplamente mais assassinadas que as não
negras. O Brasil desperdiça seus filhos e têm especial predileção em
desperdiçar as filhas e os filhos pretos. Não os reconhece. Disso tudo sabemos
e nos debatemos sem compreender a profundeza da teia racista que, impingida na
cabeça de cada brasileiro, produz este estrago, essa matança.
O brasileiro ignorante histórico, aquele ingênuo que
cresceu sem se estarrecer com o ter existido o cruel tráfico humano nos navios
carniceiros negreiros, cresceu achando bonito o quadro triste e trágico da
primeira missa no Brasil, o retrato da primeira missa jesuíta; o ignorantemente
histórico é aquele que aprendeu a gostar daquela Tragédia: índios nus nos
cantos da igreja, tomando banho de vergonha, vivendo a violenta catequização, o
extermínio de uma cultura, amargando a escrota e danosa fundação da culpa,
sendo por ela contaminados até não reconhecerem mais o que era Liberdade.
Pois é, meus senhores, o pretensioso domínio branco
primou por dizimar, por encher de sangue a história do país a partir de sua
predatória colonização. Agora, neste momento em que a República está em chamas
e os poderes estão de costas para o povo, estamos por nossa conta e precisamos
amadurecer como sociedade, lavar os preconceitos das escadarias da alma, uma
lavagem forte, uma exigência do Axé.
É de tarde. Entro no carro, o taxista que me aguardava
com um bom desconto de 30%, me disse: “Eu esperava que você saísse por esse
portão aqui”. Era o portão da esquerda, que na minha casa é o dos fundos, e é
igualzinho ao da direita, portanto ele não podia supor, obviamente. Mas mesmo
assim brinquei: Não, aquela, meu senhor, é a entrada dos fundos, a entrada dos
brancos. Ele então, deu um sorriso muito sem graça, e eu completei: É estranho,
né, para o senhor que é branco pensar assim? Ele disse: “É verdade, a gente não
tá acostumado a pensar isso não”. E eu: Já pensou na televisão, numa novela, um
elenco de 40 atores, 38 serem pretos e só 2 brancos? E ele: “Já pensou, tudo ao
contrário?”. Incrível, “ao contrário”, ele disse. Normatizamos tanto o
preconceito que achamos normal uma situação de opressão. O certo perde a referência.
É ao contrário. Esse tema tem que vir para as mesas, tem que ser discutido e
estar dentro da educação brasileira como conteúdo. Nem percebe-se que, dos 200
indicados na lava a jato todos os ladrões são brancos. Tem nenhum preto. A
maioria infratores reincidentes. Mas nem se repara, nem comentamos.
É hora de lavarmos os olhos. Por isso a importância da
disciplina de relações étnico-raciais, nas universidades, nas escolas, na
formação de professores. Urge.
Toda essa minha conversa, meus queridos, é a base para
uma convocação, pois chegamos a um limite. O silêncio dos não racistas brancos
tem feito falta nessa luta.
E está pegando mal. Vem constrangendo bons brancos.
José Bonifácio deixou muitos herdeiros, tratava-se de
um homem branco, abolicionista, que não admitia escravos, pagava a quem
contratava os serviços, um revolucionário. Onde estão seus descentes?
Um amigo louro meu me disse que havia na sua infância
um garotinho que morava na rua de trás com quem ele gostava muito de brincar e
que era o filho do dono da borracharia onde o pai consertava os pneus. Ainda
assim seu pai dizia: “Não quero você brincando com esse menino”. “Por que
papai?” Quando você crescer entenderá; a gente trata bem, mas não deve se misturar.
Você vai entender.”
Perguntei então a esse amigo hoje, se ele, agora que é
grande, já cresceu, se ele entendeu. E, se entendeu, que escreva sobre isso,
quero ler tais depoimentos. Os que receberam a educação escravagista da Casa
Grande e não concordam com ela, não podem mais se calar. Foram proibidos de
sonhar com a igualdade, treinados a produzir desigualdades, ensinados à ideia
de uma “natural “ supremacia. Foram adestrados profundamente no seu imaginário
de modo a não lhes ser permitido amar e casar com uma mulher ou um homem negro.
E aí? Vai ficar por isso mesmo? Vão passar a mesma
educação para as crianças de hoje? Continuará sendo perpetuado o racismo assim,
na cara do século 21 e com essa contribuição destes silêncios? Pensará também
assim a geração filha da esquerda brasileira, filha dos sociólogos,
pesquisadores, antropólogos, engenheiros, ecologistas, médicos e artistas?
Filhos da elite branca e dita de esquerda deste país? Como vai ser isso?
Por isso a minha proposta no mês da Consciência Negra
é chamar a todos os não negros a que reflitam publicamente sobre a
educação racista que receberam. Quando foi que perceberam que havia um plano
diabólico e separatista envolvendo suas vidas? E o que vão fazer pra limpar a
própria barra?
É isso mesmo, se não se pronunciam, é natural que
pensemos que todos os brancos são racistas, a não ser que estes mesmos provem
que não. Eis a minha proposta, ponham a mão neste vespeiro, contem aquilo que
foi passado durante sua educação de forma sistemática, mas também como uma
espécie de segredo, como algo do qual não se fala nunca, quase nunca
abertamente. Será libertador.
Pela saúde geral, falem meus brancos, contem, libertem,
descubram se houve algum negro ou negra, ou mesmo um branco revolucionário em
sua árvore genealógica, ao qual trataram de esconder na névoa do tempo. Vamos
abrir a caixa preta do silêncio branco até aqui.
Que se indague. Se investigue. O que terá ficado
oculto nas partes escondidas, historicamente?
Vamos a está reflexão? É urgente. Quem diz é nossa
antiga gente: Se posicione, pois quem cala consente.
Elisa Lucinda / 20 de novembro, 2017.
Publicado originalmente em https://www.facebook.com/elisalucinda/posts/1480255958725497