.Ralf Rickli • julho-agosto de 2011
EXISTEM MOVIMENTOS E LUTAS QUE SÃO O QUE DIZEM - e existem os que alegam objetivos que parecem inquestionáveis com a finalidade de camuflar intenções para lá de questionáveis. Pra facilitar, vou chamar aqui de MOVISSÃO (MOVimentoS que SÃO o que dizem) e de MOVINÃO (espero que não precise explicar...)
Não é que todo mundo nos MOVINÃO seja mal intencionado! Pelo contrário, a camuflagem visa especialmente a atrair as multidões afetadas pela Síndrome de BOIEQ (BOas Intenções EQuivocadas), multidões que também poderíamos chamar de LIUCAN (Legião dos Inocentes Úteis a CAusas Nocivas), ou seja: a parte passiva no vasto campo das instituições humanas onde quem não está enganando está enganado, e vice-versa.
Também não é que todo mundo nos MOVISSÃO seja o que diz: provavelmente nunca houve ajuntamento humano sem quintas-colunas e caroneiros com intenções privadas - problema que não é simples e tem que ficar pra outro dia: o que é preciso agora é distinguir os MOVSÃO dos MOVNÃO pra ver em seguida como isso se aplica a um campo específico que está na ordem do dia.
Talvez não haja pratos mais cheios para o MOVINÃO usar de isca para a Legião dos Inocente Úteis que as palavras Educação, Liberdade de Expressão e Paz, além de motes como Chega de Corrupção.
Não estou dizendo que todo mundo que usa essas palavras seja mal intencionado! É óbvio que elas apontam para causas boas, objetivos justificadamente desejáveis - e é por isso que servem tão bem como disfarce... e por isso que cada uso seu deve acordar nosso olho vivo, nossa atividade crítica - palavra que no sério não significa 'atacar' e sim 'passar por um crivo' (isto é, 'peneira').
E talvez a primeira pista de se alguém pretende-mesmo-o-que-diz seja a objetividade ao se manifestar, o dar nome aos bois.
Exemplo: gritar "basta de corrupção": é preciso especificar de quê pessoas ou instituições específicas estou reivindicando que executem os atos concretos de investigar, afastar, punir, restabelecer um funcionamento correto.
E isso também envolve dar apoio a essas pessoas ou instituições para a execução das tarefas que reivindiquei, inclusive com o reconhecimento do que já tenham realizado de positivo - pois, se devem executar, precisam ter força para executar, de modo que atacá-las e enfraquecê-las não ajuda, e sim dificulta a obtenção dos objetivos.
E se eu achar que as pessoas encarregadas não são competentes os idôneas? Então me cabe mostrar isso com dados concretos, sem omissões que falseiem a imagem de conjunto, e dizer o que proponho no lugar.
Além disso, é claro que devo nomear especificamente cada caso do qual tenho pistas consistentes, com todos os envolvidos, tanto os vendedores quanto os compradores das vantagens ilícitas. - A propósito, não é esquisito que no caso do mensalão só se costume acusar os supostos corruptores (compradores), e nos casos da compra de favores por agentes privados, só os vendedores? Mas hora dessas volto a isso. No momento a atenção é requerida com mais urgência pelo seguinte:
AS LUTAS PELA EDUCAÇÃO no MOVISSÃO e no MOVINÃO. Não faz muito tempo, causou furor na internet o vídeo em que a professora Amanda Gurgel, do Rio Grande do Norte, aparece "passando um sabão" nas autoridades do seu estado, cara a cara com elas numa audiência pública sobre a educação. (Ainda não viu? Basta buscar no YouTube com o nome dela)
Interessante que a fala da profª Amanda teve um foco único: a questão salarial. Para ela, antes de uma melhoria nesse sentido nem adianta discutir qualquer outro aspecto da questão "qualidade da educação". E, como vamos detalhar mais adiante, sua reivindicação ali não é outra senão a dos professores atualmente em greve em quase metade dos estados brasileiros.
E por falar nessa greve... onde está agora a multidão que compartilhou o vídeo da profª Amanda na net com rasgados elogios? Está dando continuidade à mesma luta com apoio à greve, claro e inequívoco? Eu, pelo menos, não estou vendo; tenho visto uns chamamentos genéricos a manifestações "pela educação" que sequer mencionam a greve e seu motivo específico. Será que quem compartilhou estava mesmo interessado nos objetivos da luta da profª Amanda, ou estava apenas curtindo um prazerzinho de desforra por ver alguém peitando autoridades, "aqueles que têm poder enquanto eu não tenho"?
Neste ponto é preciso advertir depressa: eu mesmo não acho que a luta pela qualidade da educação se restrinja à questão salarial. Neste momento ela é essencial sim (já veremos por quê) e não pode deixar de ser mencionada, mas também existe uma infinidade de problemas decorrentes da insistência em atrelar os processos educativos a formatos ineficientes e superados, e da preparação quase sempre absolutamente inadequada que os professores recebem nos seus cursos de formação.
Com os dois campos acima mais o salarial, já temos três campos específicos aos quais dirigirmos manifestações pela educação - embora ainda seja preciso detalhar a favor do quê e contra o quê estamos nos posicionando em cada um desses campos.
No entanto a maior parte dos convites que vemos na net é para manifestações genéricas, inespecíficas - p.ex. um certo "Protesto a favor da educação". Ué... mas existe alguém que seja contra a educação? De verdade?
Neste ponto podem me responder os protestos não são a favor da mera existência, e sim da qualidade. Ótimo, acima eu também falei de questões de qualidade que me preocupam - e então pergunto: em qual qualidade os organizadores estão pensando? Pois há concepções absolutamente diversas do que sejam os objetivos da educação, e qualidade tem a ver com eficiência no cumprimento de objetivos. Quer dizer: uma escola de altíssima qualidade para quem acredita no objetivo X pode parecer de péssima qualidade para quem acredita no objetivo Y.
No momento não pretendo me estender sobre esta frente que dá pano pra manga, e a deixo amarrada no seguinte poste: quem viu esta notícia? "SOBRAM 76 MIL VAGAS EM CURSO DO MEC PARA FORMAÇÃO CONTINUADA DE PROFESSORES" (ver link 1 no final). Ou seja: o governo federal criou e ofereceu canais gratuitos de aperfeiçoamento de professores, e só houve procura para 11% das vagas. Isso indica falhas no projeto, ou problemas na autoconsciência dos professores? Garanto que incorrerá em maniqueísmo falseador quem marcar apenas uma dessas duas respostas! Mas o que quero mesmo destacar é que essa informação foi divulgada na mesma época do vídeo da profª Amanda Gurgel e do chamamento ao "Protesto a favor da educação". Por que não vi ninguém comentando esse dado na net?
Enfim, a palavra "protesto" não faz sentido se não for contra algo ou contra alguém: se for só "a favor" é manifestação, mas não cabe a palavra protesto - e os organizadores não devem ignorar essa característica da palavra. Por que então lançaram com o nome de protesto esse movimento cujo "a favor" tem tudo para conquistar legiões de bem intencionados, porém deixaram em branco o lugar do "contra quem"?
Verdade que o "contra quem" está em branco no título e nos materiais de apresentações principais, mas em inúmeros comentários e materiais secundários aparecem expressões como "o descaso do governo com a educação". E aí só posso olhar e perguntar: governo? Qual?
RESPONSABILIZAR O GOVERNO. MAS QUAL? A Federação brasileira (ou União) é governada por três poderes independentes, não poucas vezes contraditórios (fora um monte de instâncias que não se encaixam claramente nesse esquema básico). Além desses 3 temos os 27 executivos, 27 legislativos e 27 judiciários dos estados mais DF... sem falar dos 5565 executivos e 5565 legislativos municipais. Do descaso de quais dessas 11.214 instâncias de poder vocês estão falando, meus senhores?
Não, não estou estando cínico: está aí a luta pra lá de séria dos professores em greve, que decorre precisamente das contradições entre essas diferentes instâncias de poder - e também era isso o que estava por trás do discurso da profª Amanda, que tantos reproduziram sem nem conhecer os fatos a que se referia.
Acontece que já faz três anos que o governo federal instituiu um piso mínimo para a remuneração de professores no Brasil, através da lei 11.738 de 16/07/2008. Entre outras coisas, a lei afirma que nenhum professor brasileiro poderá trabalhar mais que 40 horas semanais, e que por um tal trabalho de 40 horas semanais nenhum poderá receber menos que (em valores atualizados para 2011 nos termos da lei) R$ 1.187. (Links 2, 3 e 4).
Pouco por 40 horas de tão tremendo trabalho? Verdade - mas já um começo de melhora... que grande parte dos governos estaduais e municipais vem se recusando a cumprir.
Os senhores estão entendendo isso? Que a normalidade institucional do país está sendo afrontada pela insistência dos estados em não melhorarem as condições dos professores nem nesse mínimo ordenado pelo governo federal?
Não é evidente que num tal momento todos que de fato querem o bem da educação deveriam apoiar a autoridade do governo federal nesse embate? E que quando se dá a entender que "o governo" é omisso e relapso em relação à educação, sem especificar qual ou quais governos, está se tentando subrepticiamente transferir a culpa, na opinião pública, dos verdadeiros culpados justamente para a instância que mais está a favor da educação nessa história, o governo federal?
Ou seja: é evidente que não se trata na verdade de nenhuma luta pela educação e sim de arregimentação de inocentes úteis para enfraquecer um governo cuja grande "falha" é apenas não estar nas mãos dos grupos de poder tradicionais no país - justamente os que mais vêm resistindo a cumprir até mesmo essa "lei do passo insuficiente a frente, mas ainda assim um passo".
O TAMANHO DO "PEQUENO PASSO". Acabo de dizer que a lei federal do piso salarial ainda é um passo insuficiente, e muitos poderiam dizer: então por que esse governo interessado na educação não avança de vez até os R$ 1.597,87 reivindicados como piso pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Educação? (Link 5). Afinal, o que são R$ 410 a mais?
Pois está aí um ótimo exemplo de que para participar da política precisamos também de um "piso de responsabilidade", se de fato queremos que nossa ação seja benéfica - e esse mínimo indispensável de responsabilidade consiste em buscar se informar consistemente da realidade do assunto antes de sair expressando qualquer opinião: alguém aqui tem noção de por quantos professores o número acima teria que ser multiplicado?
Eu mesmo não tenho esse número, mas tenho alguns outros que dão uma noção suficiente da ordem de grandeza em questão: em GATTI & BARRETO (link 6) podemos ler que professores e profissionais de saúde representam a principal carga orçamentária dos estados nacionais. Em 2006 o cargo de professor respondeu por não menos que 8,4% dos empregos existentes no Brasil, somente abaixo dos escriturários (15,2%) e dos trabalhadores dos serviços (14,9%), e muito acima do conjunto da indústria extrativa e da construção civil que, apesar de serem geralmente usadas como principal indicador das variações da oferta de empregos, não respondem por mais de 4% destes - menos que metade dos empregos como professor!
Em números absolutos, nesse mesmo 2006 a RAIS registrou 2.803.761 empregos como professor no Brasil, sendo 77% na educação básica (ensinos infantil+fundamental+médio), ou seja: 2.159.269.
Vamos supor (o que não é real mas dá uma ideia dos números) que esses 2.159.269 professores ganhassem os mesmos 930 reais que a profª Amanda Gurgel contou serem o seu salário: com seus encargos, isso significaria uma folha de pagamentos de mais de R$ 3.230.000.000 (três bilhões e duzentos e trinta milhões de reais) por mês.
O aumento do salário de cada um desses professores até o piso já determinado pelo governo federal e contestado pelos estados significaria (com encargos) um acréscimo mensal da ordem 870 milhões de reais, ou aproximadamente mais 10 bilhões e meio de reais investidos por ano apenas nessa aspecto (dos muitos da educação) que é a remuneração dos professores.
No conjunto de todas as necessidades de um país, quê governo pode modificar com leviandade números dessa ordem em seu orçamento?
Com isso não estou dizendo que acho irresponsáveis os professores que já começam a pedir o piso de R$ 1.597,87! De jeito nenhum: é a parte que lhes cabe jogar no jogo! Mas quanto aos demais cidadãos interessados em lutar pela educação, já não é um grande passo que passem a declarar seu apoio ao governo federal na imposição do piso de R$ 1.187, a que tantos estados e municípios resistem?
E quanto a quem vier falar do "descaso do governo com a educação", vou pedir que explicite de qual governo está falando.
Se não souber dizer, vou sugerir que tenha a responsabilidade de se informar antes de abrir a boca, para não acabar dando tiro no pé.
Mas se me disser que fala do governo federal, vou simplesmente mandar pastar: não tenho tempo a perder com esse segundo e muito grave nível de irresponsabilidade - no caso dos inocentes úteis -, e menos ainda com a nauseante perfídia de seus falsíssimos arregimentadores.
FONTES REFERIDAS
(acesso em 26 jun. 2011)
(1) http://noticias.uol.com.br/educacao/2011/05/27/sobram-76-mil-vagas-em-curso-do-mec-para-formacao-de-professores.jhtm
(2) http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2008/lei/l11738.htm
(3) http://noticias.uol.com.br/educacao/2011/08/16/professores-de-escolas-publicas-fazem-paralisacao-nacional-para-cobrar-cumprimento-da-lei-do-piso.jhtm
(4) http://www.cartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=18290
(5) http://www.mundosindical.com.br/sindicalismo/noticias/noticia.asp?id=6916
(6) GATTI, Bernadete Angelina (coord.) & BARRETO, Elba Siqueira de Sá. Professores do Brasil: impasses e desafios. Brasília: UNESCO, 2009. Disponível em http://unesdoc.unesco.org/images/0018/001846/184682por.pdf . Acesso em 26 jun. 2011.
Ralf Rickli • arte em palavras, ideias e educação
http://ralf.r.tropis.org • (11) 8552-4506 ou (41) 9860-1662
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ótimo texto. em todas as frentes encontramos os MOVISSÃO e no MOVINÃO.Fazer manifestação simplesmente virou um ato de turismo e lazer...enfim...os que dão nomes aos bois continuam sendo achincalhados...tanto pelos bois, como pelos que gritam abaixo esses...é muito dificil ser franco!
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