Ô meu Deus, quando é que a gente vai parar de desperdiçar o que tem? Negligenciar?
Ando aproveitando a net pra descobrir o que se esconde atrás de nomes que já estavam ficando ou tinham ficado pra trás quando comecei a escolher o que ouvir.
Um pouco, fui motivado pela discussão política aberta pelo lançamento do documentário sobre o Simonal. Pra mim está claro que esse papo de que "a esquerda patrulhadora e malvada destruiu a carreira dele" não cola. É mais complexo. Uma hora vou escrever sobre isso, por agora só quero dizer que andei ouvindo os discos que ele gravou em 1965 e em 1970, e o cara era realmente um BAITA cantor, negócio impressionante.
Mas o que quero hoje é registrar alguma coisa sobre um cantor um pouco anterior sem o qual - acreditem ou não - o melhor de Simonal não teria existido (a influência é claríssima, pra quem sabe ouvir): Agostinho dos Santos.
Quando um avião da VARIG caiu na chegada a Paris em 1972, o Brasil inteiro celebrou a morte de um ogro: Felinto Müller, o chefe da repressão no período Vargas. Eu tinha 15 anos mas lembro que até a minha mãe, toda metida a santa, pediu perdão a Deus por estar alegre pela morte de alguém...
Só que na mesma cambulhada foi-se Agostinho dos Santos, aos 40 anos.
Dois anos depois Milton Nascimento dedicava seu show Milagre dos Peixes a seus amigos Agostinho dos Santos e Leila Diniz - esta morta um mês antes de Agostinho em outra queda de avião, na Índia, ao retornar da Austrália onde havia ido receber um prêmio por seu trabalho de atriz.
Leila eu conhecia do Pasquim. Agostinho não: com a carreira construída já antes de eu nascer, nos anos 50, parte de toda uma geração de cantores inevitavelmente relacionados ao estilo de Frank Sinatra, definitivamente não teria interessado a um adolescente. Pra minha geração ainda nem tinha a nobreza do antigo, pareceria só "velho".
A primeira pista de que ali tinha mais que velharia foi ver, há poucos anos, o premiado filme Orfeu Negro, de Marcel Camus, de 1959, baseado na peça pouco anterior de Vinícius de Morais. Ao lado de um Rio de Janeiro aparentemente puro e de uma coreografia que hoje nos parecem estranhíssimos, realmente de alguma era perdida, a estética visual do filme "soa" espantosamente moderna ainda hoje. Dá pra entender que naquele momento tenha sido pura vanguarda. E que Agostinho dos Santos, que gravou as canções da trilha, tenha tido impacto mundial - do mesmo modo como foi ovacionado no famoso show no Carnegie Hall que deu visibilidade mundial à Bossa Nova em 1962.
Em resumo:
> Ponha de lado o preconceito auditivo contra RR de língua e outras coisas de época, e vá ouvir o baita cantor que Agostinho dos Santos foi e nunca vai deixar de ser. O seguinte link dá acesso a quatro discos originais e uma coletânea: http://umquetenha.blogspot.com/search/label/Agostinho%20dos%20Santos
> Visite o blog que seu neto Thiago está construindo, expondo pouco a pouco o acervo que Nancy, filha de Agostinho, conserva e expõe no seu bar Ferradura, em São Bernardo do Campo. (Um dia eu quero ir lá; vamos?) - http://agostinhodosantos.blogspot.com/
> leia abaixo fragmentos do livro de Márcio Borges contando como Agostinho dos Santos foi fundamental no lançamento da carreira de Milton Nascimento - o que finalmente me fez entender a tal dedicatória do Milagre dos Peixes em 1974.
E boas viagens!!
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Do livro "Os sonhos não envelhecem" de Márcio Borges (São Paulo: Geração Editorial, 1996):
Quando Bituca retornou a Belo Horizonte foi para arrumar suas coisas e providenciar a mudança definitiva para São Paulo. As coisas, finalmente, tinham começado a acontecer em sua vida (...). Agora já não era apenas o Bituca, contrabaixista e crooner do Ponto dos Músicos, ex-datilógrafo (digo, escriturário) de escritório no centro de Belo Horizonte. A partir dali, começava a ser definitivamente Milton Nascimento (...), Prêmio de Melhor Intérprete na finalíssima do festival da Excelsior de 1965, defendendo "Cidade Vazia", de Baden Powell, classificada em terceiro lugar.
Sim, a ida a São Paulo fora um sucesso, sua grande vitória assistida por milhares de telespectadores. Mais: Elis Regina estava gravando a "Canção do Sal", a tal work song que motivara tanas batidas de limão no Bigodoaldo's. Além disso, Agostinho dos Santos, o famoso cantor, resolvera apadrinhá-lo.
- Você não vai acreditar. A baixinha é maravilhosa. E o Agostinho está a fim de conhecer você e o Fernando. É a maior peça ...
(P. 126-127)
Após a experiência de "Irmão de Fé", Bituca prometera nunca mais se escrever num festival; era frustrante demais ver uma música boa, uma música boa não, uma linda filha querida ser desclassificada, ser considerada inferior. Evidentemente, ao prometer tais coisas não fazia nem idéia de que Agostinho dos Santos, seu protetor, havia levado três de suas filhas para concorrer, à sua própria revelia, no Festival Internacional da Canção, que aconteceria brevemente no Rio de Janeiro.
Embora Bituca ainda não o soubesse, seus dias de perrengue em São Paulo estavam contados.
(P. 152)
Um dia chegou a notícia. Marilton foi que a trouxe:
- Bituca classificou três músicas no Festival Internacional da Canção.
(P. 156)
Bituca não tomara nenhuma iniciativa, aquilo tinha sido coisa do Agostinho, escolha pessoal, à revelia... (...)
De volta ao hotel, finalmente conheci o cantor Agostinho dos Santos e dei boas gargalhadas. Ele era muito engraçado. Os cuidados e atenções que dispensava ao Bituca, sempre de um jeito muito cômico, revelavam no fundo um grande carinho e vontade de ajudar. Grande alma.
(P. 160)
... lá no palco a garra da interpretação de meu irmão número doze transformava o rugido da multidão num uníssono emocionado, feito de milhares de vozes: ... Solto a voz nas estradas / já não posso parar / meu caminho é de peeeeedra...
Bituca estava consagrado. Não. Milton Nascimento estava consagrado.
(P. 163)
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