Acredite nos que buscam a verdade... Duvide dos que encontraram! (A.Gide)
16 abril 2012
MONSTROS? Eles apenas tomaram as falas das religiões realmente a sério!
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Eles acreditaram que "mal" e "bem" são "coisas" com existência objetiva em si, em lugar de serem qualidades potenciais de cada ato que qualquer pessoa pode executar a qualquer momento.
Acreditaram que certas pessoas são intrinsecamente ligadas ao mal, e outras não são. Também Calvino, cuja teologia embasa a ideologia dominante nos países de fala inglesa, afirmava que Deus cria certas pessoas para a salvação, e outras (a maioria) para a perdição eterna, sem que estas possam fazer nada para modificar o fato - havendo ainda sinais para denunciar se uma pessoa é de um tipo ou de outro.
Eles acharam que eliminar pessoas do mal é uma forma de fazer o bem. Afinal, a Bíblia não está cheia de exemplos de supostas ordens de Deus para "bons" eliminarem "maus" trucidando-os a espada ou de outras formas? (Coisas do Velho Testamento, dizem alguns - mas o livro de Atos, no Novo Testamento, relata que Deus teria feito cair mortos Ananias e Safira por mentirem que haviam entregue a totalidade de certo dinheiro quando haviam retido uma parte).
As pessoas de que estou falando buscavam eliminar o mal e realizavam atos que entendiam como rituais de purificação. Nada mais razoável, digno, correto, não?
E no entanto... estou falando das três pessoas que foram presas há poucos dias em Pernambuco por assassinatos e canibalismo - um homem e uma mulher de 51 anos, mais uma mulher de 25.
O homem escreveu e registrou em cartório um relato detalhado de sua vida e das razões porque realizava esses atos, levando outros a os realizarem voluntariamente com ele, há pelo menos quatro anos.
Antes de mais nada, havia vozes interiores que apontavam onde estava o mal e o que se devia fazer contra ele.
Ora, esse fenômeno está na origem remota da maior parte das religiões, além de continuar ativo no presente de muitas. Foi uma voz interior (identificada como "de Deus" ou "do Senhor") que mandou Abrão sair da sua terra e tratar de ocupar uma outra para deixá-la à sua descendência - sem levar em conta de que a terra apontada já era uma das povoadas há mais tempo na história humana. E também que lhe ordenou que matasse seu único filho a faca, suspendendo a ordem no último instante, satisfeita de ver a fidelidade de seu dominado. Contássemos a história sem mencionar a origem nem o nome dos personagens, psicólogos e psiquiatras apontariam uma perigosa psicose, espíritas não hesitariam em falar de uma entidade obsessora - e no entanto essa mesma história continua sendo relatada a crianças como exemplo positivo de fé.
Alguns, não tendo como negar que a Bíblia endossou muitos massacres e assassinatos como sendo "do bem", podem pretender colocar toda a diferença no elemento "canibalismo", dizendo não existir precedente bíblico para isso. Eu mesmo não me lembro de ter lido nada sobre isso em muitos anos de manuseio da Bíblia - nem no sentido da recomendação, nem no da interdição - mas nem considero necessário pesquisar isso agora, pois não estou falando apenas do judeo-cristianismo e sim de religiões em geral (ressalvando que é um equívoco classificar como "religiões" as escolas de filosofia aplicada do Extremo Oriente: taoismo, confucionismo e zen).
Mas mesmo se nos restringíssemos ao cristianismo, como ficaríamos depois de lembrar que de acordo com a doutrina católica oficial toda missa é um ato de canibalismo? Pois essa doutrina afirma que a hóstia e o vinho não são símbolos mas se convertem literalmente em carne e sangue de Jesus. Gerações e gerações têm sido "educadas" ouvindo histórias de alguém que cravou a faca ou meteu o calcanhar da bota na hóstia, e "até hoje está guardada em tal lugar para quem quiser ver" uma tábua com a marca de sangue resultante. (Tive uma infância protestante, mas ouvi essas histórias mencionadas muitas vezes por colegas de escola que as teriam ouvido de suas professoras de catecismo, nos anos 60).
Além disso, os canibais de Pernambuco têm recorrido a palavras da Bíblia para justificar que a carne sacrificada não devesse ser desperdiçada, e sim ingerida (como se lê nesta matéria, entre outras). É verdade que esses trechos não se referiam originalmente a carne humana - mas por que não poderia ser, se Deus teria pedido um sacrifício humano de Abraão, e se Jefté ofereceu outro em troca da vitória numa peleja, sem chocar ninguém com isso? (Juízes 11:30-40)
Mas o que me parece mais interessante no caso de Garanhuns é que os autores sequer visavam poder: entendiam sua ação como altruísta, visando a livrar o mundo de males; matavam e comiam com o objetivo da purificação!
Purificação! Confesso que estremeço quando ouço alguém usar essa palavra para qualquer coisa além de ar e água, sobretudo para a vida humana - sentimento que também Gilberto Gil mostrou ter na instigante letra de Lar Hospitalar. Pois na vida as coisas frescas e úteis ("puras") e as coisas já usadas, desagradáveis e nocivas (merda, suor) estão sempre em convívio próximo; vão sendo separadas e descartadas mas ao mesmo tempo recriadas, sem parar. Toda limpeza é parcial e provisória, e certa medida de "sujo" é parte intrínseca da vida. Hoje sabemos que pessoas criadas em ambiente excessivamente limpos são mais suscetíveis a doenças, e geralmente alérgicas, ou seja: seu corpo não sabe como lidar com a "impureza", reage de modo inadequado e ineficiente; são biologicamente pouco competentes para o mundo real que gerou e mantém a vida há milhões de anos.
E aqui cabe lembrar que também o autor do Massacre de Realengo, o jovem de 24 anos que matou doze adolescentes a tiros dentro de uma escola em 2011, era obcecado por pureza, e impregnado de falas características do discurso religioso - como se pode ler em sua carta de despedida. Ao que parece, um indivíduo da mesma estirpe do personagem do conto Gladius Dei ("Espada de Deus"), escrito por Thomas Mann em 1902. E, como esses, poderíamos passar dias e dias coletando exemplos, tanto individuais quanto grupais.
A esta altura sei que muitos podem me acusar de estar atribuindo à própria religião o que não passaria de leituras equivocadas da religião, feitas por mentes doentias.
E o que tenho a responder é o seguinte: sem dúvida as mentes são doentias - mas as leituras que fazem não são equivocadas: pelo contrário, só mentes doentias têm coragem de levar às últimas consequências o que os textos e inspirações religiosas de fato dizem.
Há correntes teológicas, ditas "liberais", que encaram os textos sagrados como totalmente simbólicos, úteis como base para reflexões porém sem nenhum compromisso de crença em seu sentido literal, e muito menos em sua integralidade como sistema coerente. Em outras palavras: posso usar uma história bíblica como ilustração ou inspiração do mesmo modo como posso usar uma da mitologia grega, ou da iorubá, celta, tupi, o que for - sem nenhuma obrigação de tomar Zeus senão como representação simbólica de certo conjunto de qualidades humanas e/ou naturais.
Mas a teologia liberal é minoritária na cristandade, e em geral francamente atacada como falsa e "desviada" pelos que se pretendem guardiães da "verdadeira" religião ('ortodoxos' em sentido amplo, fundamentalistas, "avivados" etc).
Digo então que a maioria das pessoas que se entregam a religiões só é salva de cometer atos bárbaros por sua razão - mas essa mesma razão é apontada pelo sistema a que servem como fraqueza, covardia, insuficiência de fé. Torna-se uma razão sitiada pela desrazão, dentro da própria pessoa. A razão ainda predomina, na maior parte dos casos, mas às custas de consideráveis conflitos interiores - pois justamente onde esse ser humano está sendo razoável e bom, com frequência ele se sente culpado ou é abertamente acusado pelos pares de ser "morno" ou "frio".
E aí muitas vezes cede ao assédio no sentido de se deixar "avivar" - e uma vez "avivado" passa a ser um agente tóxico para a saúde mental individual e coletiva. Passa a atuar no mesmo sentido que os "monstros" apontados acima, mesmo que em grau menos intenso e explícito - como uma pequena dose de arsênico a cada dia, que leva anos para matar a vítima por "causas desconhecidas", mas não deixou de atuar no mesmo sentido da dose grande que mata em poucas horas.
Assim são os religiosos que não matam pessoas diretamente, mas vêm destruindo o que havia de cordial, alegre e tolerante na cultura brasileira, semeando dissenso e mentiras para impedir a aprovação de leis que visam a reduzir a violência e outra formas de sofrimento, etc. etc.
Diante disso é preciso ter claro que o país vem sendo intoxicado pelas mesmas forças que, em estado puro, assumem formas como a do atirador de Realengo e a dos canibais de Pernambuco.
Ressalvo, para terminar, que acredito que os conceitos "bem" e "mal" não são vazios, nem sou propriamente ateu (deixando claro que vejo aí dois fatos paralelos, e não decorrentes um do outro). Acho notável que o escritor que foi identificado com o evangelista João tenha afirmado, mostrando que havia aprendido lições da filosofia grega, que no princípio de tudo estava "o lógos" - e que, portanto, o mundo é de natureza lógica. Percebe-se que via em seu mestre Jesus uma manifestação da razão libertadora contra as malhas opressoras da superstição religiosa. Infelizmente o ramo do cristianismo que se desenvolveu a partir dessa compreensão foi suplantando por outros ramos que se fizeram, ao contrário, apenas uma renovação das malhas de superstição. Os que apostavam no caminho do conhecimento (os gnósticos originais - não os que dizem sê-lo hoje) foram declarados heréticos e perseguidos. Restaram na Bíblia e no cristianismo apenas fragmentos atestando que houve princípios de uma compreensão mais luminosa disso tudo.
Não tenho a pretensão de explicar agora como poderia ser uma (digamos assim) religiosidade, ou capacidade de devoção, orientada pela razão (ou, significando a mesma coisa: pelo dom do lógos). Talvez Goethe estivesse na pista ao escrever "Quem tem ciência e tem arte, esse já tem religião. Quem essas duas não tem, que tenha religião" - o que eu me atrevi a tentar ampliar para "Quem tem ciência, tem arte e tem fraternidade, esse já tem religião. A quem não tem essas três, só lhe resta a alienação".
Sei é que, por amor das gerações que nos continuarão, temos que almejar com todas as forças que nunca mais venha a prevalecer a religiosidade supersticiosa que diz combater "as trevas" enquanto consiste ela mesma de escuridão!
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Ótimo texto, como sempre Half, parabens!!!
ResponderExcluirCaramba Ralf... Que paulada!! Pra ficar em silêncio. Me permita dizer: Muito bom. Nem tirar, nem por. Trouxeste para linguagem o âmago da situação, com lucidez, consciência, ímpeto. No que me pareceu assentado num ponto arquimediano entre a religiosidade extrema/alienada e o ateísmo... Show mesmo. Apesar do assunto amplo, com outras perspectivas relevantes. Como o caso da crise de sentido, de valor. A questão do niilismo passivo e ativo. Pois uma religião, por mais enfraquecedora que possa ser, é muitas das vezes melhor para a saúde da sociedade e do indivíduo do que o suicídio, o assassinato, ou a adicção, etc, por mais que a religião desemboque por vezes em guerras. Retirar a religião sem um ambiente de condições que o proporcione um sistema fortalecedor, já mostrou ser um mal negócio na história, com a questão do niilismo, com um deus morto por nossas próprias mãos. As religiões, por piores que sejam, as vezes, fazem duas coisas que venho considerando: 01 - Trabalha a fé da pessoas, ao meu ver, maior responsável por dar certo muito do que os auto intitulados sacerdotes falam. 02 - Por vezes ela acaba por prover valor, porém não sem suas sérias e nefastas consequências (p.ex. o conformismo e a aceitação do sofrimento e do status quo como caminho para a salvação, sem no entanto transvalorar). Não sei se que pensas sobre isso, parece-me que concordas... É verdade que muitas passagens ao pé da Bíblia, principalmente no antigo testamento, passam a idéia de um Deus tirano, obsessor. Porém nas passagens com Jesus é que parece advir um resgate da divindade "vim para jogar filho contra pai" a lei antiga (judaica), pela lei do amor, da fraternindade. Um Mestre que não fica acima, mas ao lado, "somos iguais e irmãos", "filhos do mesmo Deus", "poderosos por isso", capazes de milagres. A fé é a questão, ao menos isto vem me parecendo.
ResponderExcluirObrigado e Parabéns pelo belo texto!!
Tarles Souza