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Fernando Gallo, de O Estado de S. Paulo - 12 de fevereiro de 2012
Fernando Gallo, de O Estado de S. Paulo - 12 de fevereiro de 2012
"O
tempo livre, a alma e, quem diria, uma prótese de primeira natureza, tudo
é insumo precioso na busca do lucro. Sob o pretexto de satisfazer as
necessidades humanas, a parafernália capitalista não faz mais do que zelar
pela sua perpetuação, rebaixando os homens a meios de sua própria
conservação". Talvez pudesse ser Marx, mas é um autêntico Fernando
Haddad, atirando contra o sistema.
FIlipe Araújo/AE - 09.02.2012
Haddad critica erros da 'esquerda
autoritária'
Era
1998, último ano do primeiro mandato de Fernando Henrique Cardoso, quando o
ex-ministro lançava pela editora Vozes um pequeno livro intitulado "Em
defesa do socialismo - Por ocasião dos 150 anos do Manifesto", referência
à obra comunista de Marx e Engels. É a obra mais política da bibliografia
de Haddad, que ainda conta outros quatro títulos : "Sindicatos,
cooperativas e socialismo" (2003), "Trabalho e linguagem - Para a
renovação do socialismo" (2004), "O sistema soviético"
(1992) e "Desorganizando o consenso - Nove entrevistas com intelectuais
à esquerda" (1998).
Nas
obras, Haddad critica "o mal infinito da acumulação capitalista",
defende a socialização da propriedade privada - "mantendo-se o
mercado" - e dos meios de comunicação. Vê um mundo em que a cooperação
entre cooperativas seria a superação da ordem capitalista.
O
petista censura o modelo da União Soviética, autoritário e de economia
centralmente planificada - "deveria ser chamado pelo nome próprio de
despotismo" - e diz que ele "ruiu em boa hora, tirando dos ombros
socialistas um fardo político descomunal".
Em
2001, em um debate após uma exposição sua que originou o livro sobre
cooperativas, argumentou: "O PT deveria empunhar com mais brio a
bandeira do socialismo". Hoje diz: "podemos nos valer dessa
bandeira com tranquilidade".
O
ex-ministro recebeu o Estado na sede do PT Nacional em São Paulo,
onde despachava provisoriamente até sexta-feira, para falar sobre os livros
e temas contemporâneos que dialogam com sua obra. Sustentou que algumas
"ideias-força" das obras permanecessem atuais e lembrou: "Quando
escrevi esses textos, não estava pensando em me candidatar a nada, mas em
fazer o debate aflorar".
O
que quer dizer ser socialista no século XXI?
Em
primeiro lugar, afastar toda a tradição autoritária que permeou a ação
política, sobretudo do stalinismo e variantes, sem abdicar de dois valores
importantes: o combate às desigualdades socioeconômicas e uma celebração
da diferença, da diversidade, da tolerância. Essa é uma plataforma que
dialoga com o pensamento socialista moderno.
Aquilo
que o sr. escreveu em 1998 continua valendo?
Meus
livros ficaram sempre na primeira edição, nunca me vi obrigado a fazer uma
revisão. Não saberia te dizer se publicaria tal qual foi lançado. Mas
algumas ideias-força permanecem atuais. Minha tese de mestrado foi sobre o
colapso do sistema soviético e a interpretação daquele fenômeno, de 1917 a
1989. Aproveitei para promover um acerto de contas com a esquerda autoritária,
particularmente o stalinismo e o trotskismo, que viam naquela experiência
soviética, nos dois países mais importantes, Rússia e China, perspectivas
emancipatórias. Eu recusei desde sempre essa interpretação. Via naquelas
experiências um modo sui generis de transição de velhas sociedades asiáticas,
em geral organizadas sob o manto do despotismo, na longa transição para o
modo capitalista de produção. Enquanto as pessoas pensavam que pudesse
desembocar numa sociedade sem classes, eu via o contrário.
Crítica
igual ou semelhante pode ser estendida a Cuba?
A
qualquer modelo autoritário e de economia centralmente planejada.
O
sr. não acha que a presidente Dilma deveria condenar a situação dos presos
políticos em Cuba?
O
que a presidenta disse é que todos têm o dever de casa a fazer quando se
trata de direitos humanos. A questão dos direitos humanos não pode se
restringir a direitos civis e políticos. A humanidade estendeu esse conceito
e trabalha também com direitos sociais. Os países têm que ser analisados à
luz desse conjunto de direitos historicamente consagrados. Os direitos civis e
políticos, que são essenciais pra vida democrática, mas não diminuir a
importância do atendimento a direitos sociais. Tudo isso somado, todos os países
têm um direito de casa a fazer.
Mas
há uma questão histórica da esquerda com Cuba. O sr. não acha que a
esquerda deveria condenar mais fortemente os problemas da ilha?
O
excepcional trabalho que Cuba faz em relação aos direitos sociais, sobretudo
no que diz respeito a saúde e educação, não pode servir de pretexto para
diminuir a agenda dos direitos civis e políticos. Você tem uma agenda
complexa, e mesmo se valendo da explicação clássica das consequências do
embargo econômico que os Estados Unidos impõem sobre a ilha, ainda assim
essa questão deveria ser endereçada, porque ela é parte da problemática da
expansão da liberdade e da igualdade entre os indivíduos.
A
influência de Marx em sua obra é muito evidente. O sr. o chega a chamá-lo
de “teórico genial”. Marx continua atual?
Do
ponto de vista do pensamento brasileiro, havia uma tradição que dialogava
muito com a perspectiva marxista, que tem o Caio Prado, Fernando Novaes,
Fernando Henrique Cardoso. Depois pensadores que não eram marxistas, mas que
dialogavam com a tradição da esquerda radical, como por exemplo Antonio Cândido,
Luis Felipe de Alencastro, Chico de Oliveira, Paulo Arantes.
O
sr. se encaixa onde?
Estou
falando de pessoas que influenciaram a minha formação. Todos esses,
marxistas ou não, esquerdistas radicais, por assim dizer, moldaram a minha
formação. Não escreveria essa interpretação do que foi o modelo soviético
sem a inspiração desses autores. Evidente que o Marx é a inspiração longínqua,
mais moderna. E não é mais possível falar em marxismo, são marxismos. Eu
me filio à tradição de Frankfurt, que tem no Adorno e no Marcuse as expressões
mais vistosas.
O
economista Nouriel Roubini disse no ano passado que Marx estava certo quando
previu o fim do capitalismo. O sr. concorda com essa tese?
O
Marx nunca negou o que o capitalismo produziria de riqueza material. Aliás,
foi quem descreveu a dinâmica de produção de riqueza e de mercadoria, e do
domínio da natureza pelo homem. Se nós retomarmos as obras de juventude do
Marx, ele tinha muita consciência do potencial do capitalismo em termos de
produção de riqueza e de ciência e tecnologia. Talvez antes do que qualquer
outro economista liberal. Isso é um paradoxo. O maior crítico do capitalismo
foi aquele que antecipou seu potencial de desenvolvimento. Mas ele dizia que
isso seria feito às custas de uma desigualdade cada vez maior, de injustiças
sociais cada vez maiores, de um fosso social que dividiria a sociedade em
classes, com perspectivas muito distintas umas das outras. Esse diagnóstico
permanece. Não podemos negar a evolução material que essa sociedade teve,
mas esse desenvolvimento material não se desdobrou em melhoria da qualidade
de vida para todo mundo, em mais igualdade. E, de certa maneira, do ponto de
vista espiritual não houve um enriquecimento do ponto de vista de
solidariedade, do humanismo, do pacifismo, do respeito aos direitos humanos.
Pelo menos não se deu na mesma proporção. Há muito que ser reformado e
explorado. Tem uma agenda econômica inexplorada que diz respeito a formas
alternativas de organização da propriedade.
Aliás,
o sr. dedicou se dedicou, em um de seus trabalhos, a refletir sobre sindicatos
e cooperativas. O sr. ainda avalia o modelo de "cooperação entre
cooperativas" como a superação do capitalismo? Acredita que isso seja
desejável?
Ali
eu estava dizendo como o Marx entendia a superação do capitalismo. É um
texto de exegese. As pessoas entendem que o Marx opunha planejamento e mercado.
O Marx nunca trabalhou nessas categorias. As categorias que ele trabalhava
eram da esfera da política. Ele entendia o capitalismo como sendo regido por
uma dupla determinação: despotismo dentro da fábrica e anarquia fora dela.
É assim que ele via a dinâmica da economia capitalista. E ele dizia que o
despotismo dentro da fábrica pode ser superado por formas alternativas de
organização da propriedade. E apontava a cooperativa como forma de superação
do despotismo manufatureiro. Mas ele via um problema de difícil solução da
anarquia, porque as cooperativas podem se organizar e competir entre si
mantendo de certa maneira a lógica do capital sem patrão. E ele dizia que a
superação da anarquia se daria pela cooperação entre as cooperativas.
O
sr. argumenta também que, para subverter a lógica do capital, seria preciso
democratizar a política tributária, e que, para isso, seria necessário
criar um "imposto sobre a superfluidade dos bens". Por que isso é
necessário e como isso se daria?
Outra
medida de se fazer essa discussão é quando você discute a taxação das
grandes fortunas. Ou quando você aumenta impostos sobre bens supérfluos,
como bebida e cigarro. A ideia é que você deve usar o sistema tributário
para orientar a produção. O sistema tributário pode ser usado para emitir
sinais do que a sociedade democrática deseja que seja produzido. Quando você
isenta bens de primeira necessidade, desonera de impostos a cesta básica ou o
material de construção pra edificar moradias populares, você está pensando
a partir dessa lógica.
O
sr. citou a bebida e o cigarro...
Te
dou um exemplo de uma das coisas mais regressivas do ponto de vista tributário.
Você tem 7 milhões de veículos em São Paulo que pagam IPVA, e você tem
iates, jatos executivos e helicópteros, uma das maiores frotas do mundo, que
não paga imposto sobre propriedade de veículos automotores.
O
sr. acha que helicópteros tinham que pagar IPVA?
A
Constituição autoriza a cobrança de imposto de todos os veículos
automotores. Se você tem um carro popular, 4% sobre o patrimônio de quem tem
um carro popular, não vejo nennhuma razão pra não cobrar os mesmos 4% de
quem circula pela cidade de helicóptero.
O
sr. vai comprar uma briga com os donos de helicóptero. São Paulo tem uma das
maiores frotas do mundo.
Daí
compra um carro popular! (risos)
Mais
à frente, o sr. diz que esse imposto tenderia a ter efeitos muito limitados e
que, para haver uma melhor distribuição da renda, seria necessária a
“socialização da propriedade privada”, mas “mantendo-se o mercado”.
O sr. pode explicar melhor?
Veja
que hoje até o BNDES financia a organização de cooperativas no país. Essa
vertente da economia solidária pode ser explorada de maneira muito profunda.
A ideia de que trabalhadores possam assumir a gestão de empresas que estejam
em estado falimentar tem sido recorrente a toda a literatura que pensa o
assunto.
Mas
isso é um objetivo a ser alcançado?
É
uma possibilidade a ser explorada. Uma das coisas erradas da esquerda é
transformar o livre pensar em dogmas. Quando escrevi esses textos, não estava
pensando em me candidatar a nada. Estava pensando em fazer o debate aflorar. Há
aquilo em que há plausibilidade, que é fruto de um desejo de um sonhador, um
intelectual que estava disposto a permanecer no campo da imaginação e não
abdicar disso que vários intelectuais abdicaram. Me compadeço de ver pessoas
que eram adeptas de uma visão autoritária da esquerda, stalisnistas ou
trotskistas, defendendo o extremo oposto daquelas ideias, migrando do Estado
absoluto sem prestar contas dessa mudança de posição. Me sinto à vontade
pra falar do tema porque desde a minha militância estudantil eu sempre
guardei distanciamento desse pensamento.
Na
avaliação do sr., a transição de um capitalismo de empresas para um
capitalismo de cooperativas exigiria, além de um imposto progressivo sobre a
propriedade, a "centralização progressiva nas mãos do Estado democrático
do processo de intermediação financeira", de modo a garantir recursos
para "a cooperativização dos não-proprietários". Como se daria
essa centralização?
O
que já estava aparecendo no horizonte, é que o sistema financeiro, da forma
como ele foi desregulamentado, ele ia produzir uma crise de proporções
gigantescas, como produziu. Já nos anos 90, todos os economistas
progressistas diziam o seguinte: a desregulamentação do sistema financeiro
como vem sendo feita vai gerar um caos financeiro no mundo, que é o que se
verificou pouco tempo depois. O que eu dizia naquela época era que eu não
via como as políticas keynesianas tradicionais serviriam de guia para a
superação da crise que se avizinha. Essa é uma crise de proporções
grandes e as políticas keynesianas clássicas, monetária e fiscal, não vão
dar conta. O Estado vai ter que participar cada vez mais do sistema de crédito.
Que, aliás, é o que está acontecendo na Europa nesse momento de um jeito, e
nos Estados Unidos de outro. Mas mesmo nos Estados Unidos, onde não há
perspectiva de estatização de bancos, como na Europa. Hoje o Estado
americano tem muito mais atuação no sistema financeiro do que tinha em 2008.
O
sr. sugere no livro que "a socialização dos meios de comunicação, a
partir da criação de cooperativas de jornalistas e artistas" seria uma
forma de alterar um quadro em que, segundo o sr., "a lógica privada
define a pauta política em discussão numa esfera pública". Como se
daria essa socialização?
Não
é polêmico. Até os liberais reconhecem. Escrevi em uma época em que o
mundo virtual estava iniciando. De certa forma o mundo virtual realizou uma
parte dessa utopia. Quando você tem uma lógica estritamente privada não há
como negar que a visão de mundo do proprietário incida sobre a maneira pela
qual o sistema de promoção das pessoas vai ocorrer. Quando se fala em
socialização da propriedade privada, as pessoas imediatamente associam com
privatização. Esse foi um dos grandes equívocos que a esquerda cometeu no
passado. Evidentemente que alguns serviços essenciais têm que ser tratados
pelo Estado. Em todo o mundo se observa isso, a começar pela educação pública.
Mas quando você democratiza acesso ao conhecimento, ao crédito, à terra, a
renda, quando você organiza cooperativas, e há várias maneiras de organizar
cooperativas... em geral pensamos em cooperativas com aquela visão romântica
do começo do século XIX. Mas o que é o Linux, se não uma produção
cooperativa de um sistema operacional? O que é a Wikipedia, se não a produção
cooperativa de uma enciclopédia eletrônica?
O
Estado deve fomentar esse tipo de organização?
Cuidando
muito pra que isso não implique o erro correlato. Se a propriedade impõe um
viés ou outro, não pode o Estado impor um viés. A ideia é tornar as
pessoas mais livres. O ideal de um socialista é tornar as pessoas mais livres.
E sempre que você puder fomentar formas alternativas de organização da
produção material e cultural, sem que esse fomento signifique se imiscuir
num assunto próprio dessa esfera, ele é bem vindo. Sempre que o Estado pode
fomentar a cultura sem incidir sobre a orientação dessa produção, por meio
do sistema de crédito, por exemplo, ou do sistema tributário de incentivos,
permitir que as pessoas se organizem de formas alternativas, seja na produção
material, seja na espiritual, de informação, de cultura, penso que vai na
direção de ampliar a esfera de autonomia e liberdade do individuo. Como
isso pra mim é um pressuposto de toda ação, a esfera da liberdade, porque
acredito que só vamos produzir uma sociedade mais justa ampliando a liberdade
dos indivíduos e isso significa muitas vezes acesso a crédito, a propriedade
intelectual, a bens materiais, você promove uma sociedade mais livre.
O
sr. é contrário à regulamentação da mídia?
No
que diz respeito a conteúdo, sim.
E
no que diz respeito à forma?
No
que diz respeito a propriedade cruzada, a impedir monopólio, como nos Estados
Unidos, por exemplo, eu penso que é agenda até liberal. A questão da
propriedade cruzada dos meios de comunicação já foi discutida e solucionada
há muito tempo no mundo desenvolvido. Impedir a oligopolização pra que haja
mais pluralidade de opiniões, isso não é atividade que incide sobre a
reprodução simbólica, mas tem boas repercussões sobre a reprodução simbólica
em proveito do pluralismo.
O
que deveria ser feito? Uma lei de meios, como na Argentina?
Quando
você fala em lei de meios aqui, as pessoas, com razão, até pelo nosso
passado autoritário, pensam imediatamente numa lei que vai inibir a circulação
de opiniões. O que uma lei de meios poderia fazer era fomentar a circulação
de opiniões, impedindo a oligopolização do setor. Quanto mais plural for a
sociedade, quanto mais arejados forem os canais de comunicação, quanto mais
as pessoas puderem tomar conhecimento do que pensam as outras, e formar
livremente seu juízo sobre os temas de interesse público, mais democrática
será a sociedade.
O
sr., então, é contrário a que uma empresa tenha uma televisão com penetração
em 100% do território nacional, um jornal, uma cadeia de radio...
Nos
termos da sociedade liberal, penso que deve haver limites pra propriedade
cruzada. Mas nos termos de uma sociedade liberal. A lei americana é um bom
termômetro.
Mas
isso deveria ser feito no Brasil e de que forma?
Aí
é papel do Congresso discutir os modelos. Mas eu entendo que qualquer lei que
vise democratizar o acesso à informação ela tem que ser pensada sobre a ótica
econômica, e não sobre a ótica da reprodução simbólica. A reprodução
simbólica tem que ser cada vez mais livre. E pra que ela seja cada vez mais
livre você tem que oferecer condições pra que o pluralismo viceje no país
e não a oligopolização, concentração da informação nas mãos de meia dúzia
de famílias.
Falávamos
sobre a propriedade privada e um dos temas da semana foi a concessão dos
aeroportos. O PSDB falou em estelionato eleitoral, disse que o PT agora entrou
nas privatizações. O sr. acha que esse tema vai voltar à campanha? Como o
sr. vê essa discussão?
Eu
quando era assessor do ministro do Planejamento, eu redigi a lei das PPPs.
A
gosto ou a contragosto?
Eu
fui pra isso. Fui convidado pelo Guido (Mantega). Participei da elaboração
da lei de concessão do lixo, do transporte público (refere-se à sua
atuação como chefe de gabinete da secretaria de finanças na gestão Marta
Suplicy).
Como
é que o sr. defende a socialização da propriedade privada e as concessões?
Não
vejo contradição entre o Estado desenvolver políticas que permitam aos
indivíduos acesso a formas emancipadas de organização da produção e
tarefas que tem que ser executadas pra garantir o bem estar. Você não pode
esperar os trabalhadores se organizarem em cooperativas ou organizar formas de
trabalho livre, intelectual, artístico, cientifico, enquanto há tarefas que
tem de ser feitas no curtíssimo prazo pra garantir o bem estar da sociedade.
O ProUni é uma parceria público-privada que elaborei na época em que redigi
as PPPs.
Mas
aí é um modelo bem diferente da concessão de aeroportos.
A
parceria público-privada nas suas várias possibilidades, e na minha opinião
o que se fez nos aeroportos foi exatamente isso, uma parceria público-privada
pra garantir os investimentos necessários para garantir a ampliação do
serviço, é diferente do modelo dos anos 90. Primeiro porque nos anos 90 a tônica
foi a transferência de propriedade. E aqui não se trate disso. A Vale do Rio
Doce deixou de ser patrimônio público.
O
sr. está fazendo uma diferenciação entre privatização e concessão.
Você
estabeleceu uma parceria público-privada em que o setor público entra com o
equipamento, o investidor entra com a ampliação dos serviços e compartilham
do resultado econômico. Isso é completamente diferente de vender a Vale.
Mas
o sr. disse em entrevista à TV Estadão, sobre as OSs, que era contrário à
gestão de equipamentos públicos por empresas privadas.
Na
saúde?
É.
Na
saúde, sim.
No
caso dos transportes é deferente?
Saúde
e educação são, do ponto de vista constitucional, deveres do Estado. Você
tem uma lógica constitucional. É dever do Estado. Por que a gestão de uma
universidade pública precisa ser transferida pra iniciativa privada? Não
vejo razão pra isso.
Mas
essa lógica não vale para os transportes?
Não
vale mesmo. Porque ali você está falando de investimento, de uma área de
atuação do poder público que não é dever exclusivo do Estado. Você não
está falando de um direito básico como saúde e educação. O governo Lula
fez concessão de rodovias. Qual a diferença pra concessão de aeroportos? Só
que compara os preços dos pedágios nas rodovias estaduais e nas federais.
Vai ver que a diferença muito grande. O princípio da modicidade tarifária
foi o eixo que norteou o processo. Aliás, a presidenta Dilma remodelou
inteiro o modelo do setor elétrico invertendo a lógica dos anos 90. Colocou
a modicidade tarifária na centralidade do processo. A parceria público-privada
é um instrumento moderno de gestão pública.
No
livro o sr. afirma ainda que o marketing político é guiado por "concepções
rasteiras" que tratam o eleitor como consumidor. Diz ainda que ele só
oferece as condições para que o eleitor confirme suas convicções e
preconceitos. Ainda pensa dessa forma?
O
marketing político, eu digo em outra passagem, ele é incontornável. Você
vai lidar com a questão da forma. Ela é importante, mas tem que estar
subordinada à tua plataforma de atuação. Quando quer que o candidato
subordine a plataforma à forma, na minha opinião presta um desserviço à
democracia e concorrendo pra produzir efeitos deletérios sobre ela. Trabalhar
forma, apresentação, faz parte do processo moderno de abordagem do eleitor.
Mas você tem que ter claro que a orientação política tem que prevalecer.
A
revista "The Economist" postulou recentemente que o Brasil é o
"mais ambíguo dos países que praticam o capitalismo de Estado". O
modelo brasileiro é efetivamente de capitalismo de Estado?
Ainda
há uma confusão muito grande entre o publico e o privado no Brasil. Essa
separação ainda não foi realizada de maneira cristalina. O mais curioso é
que o capitalismo é que vem assumindo essa feição mais recentemente. Em vez
de nos tornarmos mais capitalistas, é o capitalismo que está se tornando
mais patrimonialista. Veja essa estatização das dividas privadas. É a forma
que o capitalismo desenvolveu de socializar os prejuízos e tocar a vida. Mas
os custos sociais disso são extraordinários e as pessoas não conseguem nem
identificar os culpados porque tudo é feito de maneira anônima.
Mas
é um modelo de capitalismo de Estado?
Eu
não classificaria dessa forma até porque a maioria das empresas foram
privatizadas. Mas apesar da privatização das empresas estatais na década
neoliberal, você ainda tem uma cultura patrimonialista na gestão da coisa
publica.
O
sr. disse em 2001, na exposição que originou o livro das cooperativas, que
"o PT deveria empunhar com mais brio a bandeira do socialismo". Isso
continua valendo? Mais: o governo tem agido nessa direção?
Eu
já descrevi o que entendo por socialismo. Um repudio à tradição autoritária
da esquerda e um congraçamento no combate à desigualdade e à intolerância.
À luz disso, sim, podemos nos valer dessa bandeira com a maior tranquilidade
até porque o PT nasceu do rompimento com essa tradição autoritária, que
prevalecia nos antigos partidos comunistas. E sim à segunda pergunta: o
governo do presidente Lula inaugurou uma era de combate às desigualdades, foi
o período da historia brasileira em que a desigualdade mais caiu. Do ponto de
vista da diversidade também estamos dando uma demonstração muito efetiva da
integração do negro, do convívio pacifico com as comunidades originárias,
com a demarcação de terras, a questão de gênero, por tudo, mais também
com a eleição da presidenta da República. E no que diz respeito às
oportunidades econômicas, os números estão aí. Nunca se gerou tanto
emprego, nunca se apoiou tanta cooperativa, nunca se socializou tanto o crédito.
O acesso ao conhecimento também, você dobrar as matriculas nas universidades
federais, promover o maior programa de concessão de bolsas de estudo pra
jovens de baixa renda, isso tudo faz parte de uma agenda que é aderente ao
que eu enunciei.
Permita-me
fazer uma contraposição, que é inclusive do sociólogo Chico de Oliveira,
que o sr. citou há pouco. Como fica a divida pública? O Brasil gasta 20
vezes mais com juros da dívida do que gasta com o Bolsa Família.
A
dívida pública caiu à metade no governo Lula. A dívida externa foi paga.
Mas
o Brasil continua gastando muito mais com os juros da dívida do que com a
Educação, por exemplo, ou qualquer outra área.
Mas
os gastos, com a rolagem da dívida publica, são decrescentes. Uma coisa é
você gastar pouco com a dívida pública e manter no mesmo patamar elevado,
como nós herdamos. Nós pagamos a divida externa e estamos liquidando a dívida
interna. A dívida interna era superior a 60% do PIB, e hoje é inferior a
40%. Estamos nos livrando desse passado de irresponsabilidade fiscal.
Como
defender o socialismo depois de uma eventual aliança com o prefeito Kassab?
Servi
o governo Lula com gosto, como professor universitário. Ele representou, do
ponto de vista das oportunidades, um momento da história do Brasil que eu
nunca tinha vivido. Tenho 49 anos de idade e vivi a melhor década da minha
historia. O governo Lula abriu um leque de oportunidades de desenvolvimento do
país que não estavam dadas. Estamos discutindo hoje aquilo que era impensável
nos anos 80 e 90. Perspectivas de desenvolvimento humano que não estavam
dadas. O governo Lula teve que fazer alianças. Não vou falar de um partido
ou outro. No plano federal, os partidos aliados foram parceiros de um projeto,
até porque perceberam que era um projeto que elevava as nossas pretensões.
Muitos se renderam Às evidencias tardiamente. Na política você não pode
abdicar dos seus princípios, em primeiro lugar, sobretudo éticos, você não
pode abdicar das suas pretensões de transformação da sociedade. O PT vai
ser sempre um partido que vai buscar a transformação da sociedade pra melhor.
E sabe que o jogo democrático... o grande erro da esquerda autoritária com a
qual o PT rompeu foi imaginar que não precisava de ninguém pra mudar o mundo.
Nós compreendemos os dilemas da democracia, os constrangimentos nacionais de
uma vida política onde as pessoas têm opiniões diversas, onde não há
amadurecimento pra algumas propostas. Temos também que compreender que muitas
ideias de esquerda se mostraram infrutíferas, outras estão mostrando um
potencial importante de transformação.
Não
incomoda ao sr., como intelectual, a frase "nem direita, nem esquerda,
nem de centro" do Kassab? Não há que haver ideologia pra fazer aliança?
Em
primeiro lugar ele não é filiado ao meu partido, mas a um outro, que tem
outra visão de mundo. Em segundo lugar, se você decide participar do jogo da
política democrática, você não pode abdicar... deixa eu achar a palavra
correta (pensa alguns segundos). Quando se faz esse compromisso com a
democracia, você está, de certa maneira, se comprometendo em respeitar as
regras desse jogo que você aceitou jogar. E a democracia é um governo de
maioria. É um governo de coalizão. Não estamos num sistema bipartidário,
mas pluripartidário. Todo partido que ganhar uma eleição sabe que vai ter
que promover uma aliança pra governar. Como sair dessa aparente contradição?
Você tem uma visão de mundo e terá que se aliar com quem pensa diferente de
você. A partir do resultado. O governo Lula, apesar de ter feito uma coalizão
com partidos que não professam a ideologia do PT, que não comungam a mesma
visão de mundo, essa coalizão resultou em mais igualdade e mais liberdade
pra população brasileira. O resultado do governo Lula é aderente àquilo
que ele defendeu nas campanhas eleitorais das quais participou. Se uma coalizão
colocar em risco os princípios que você defende, aí ela vai estar
comprometendo o ideário, e esse é o limite de qualquer aliança.
Mas
aí não estamos falando de ética de resultados, e não de princípios? Não
é o pragmatismo em detrimento da ideologia?
Mas
a ética da responsabilidade weberiana é a regra da modernidade.
Isso
quer dizer o quê?
Você
tem duas éticas pro Weber. E a ética da responsabilidade é a ética que tem
ganhado o ocidente cada vez mais. A ética da responsabilidade prepondera
sobretudo num mundo não binário, que é o que estamos vivendo hoje. Não é
a polarização no Brasil em torno de duas visões do mundo. Você tem
pluripartidarismo, você sabe que tem que estabelecer um governo de maioria, e
as alianças tem que ser pautadas de tal maneira a não comprometer o objetivo
do processo.
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Excelente entrevista! Fez aumentar ainda mais minha admiração por Fernando Haddad...
ResponderExcluirNão esperava que Fernando Haddad já tivesse toda uma bagagem intelectual e política, como demonstrou nesta extraordinária entrevista. Percebe-se que é um rapaz preparado, capaz, e tem tudo para construir um futuro brilhante.
ResponderExcluirA minha admiração por ele já era grande. Agora, é maior ainda.
Torço para que os paulistanos percebam a importância dele para a cidade de São Paulo.