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Este texto, de 2006, é parte do terceiro artigo da minha coletânea Pedagogia do Convívio: na invenção de um viver humano (p.36-40). A ideia postar no blog agora me veio quando vi no Facebook o banner abaixo, do movimento Ocupa Lisboa, que vinha ainda acompanhado do comentário "e que tal trabalharmos numa cura?".
Este texto, de 2006, é parte do terceiro artigo da minha coletânea Pedagogia do Convívio: na invenção de um viver humano (p.36-40). A ideia postar no blog agora me veio quando vi no Facebook o banner abaixo, do movimento Ocupa Lisboa, que vinha ainda acompanhado do comentário "e que tal trabalharmos numa cura?".
Qual a relação? Sugiro que vejam por vocês mesmos se encontram! Uma observação: existem no texto várias referência do tipo "ver 11.3"; elas se referem a outros trechos da mesma coletânea, disponível na íntegra em http://www.tropis.org/biblioteca/pedocon2007.pdf .
ALDEIAS - A LUZ E A SOMBRA
O que mais me chama atenção na vida de aldeia é o modo como as crianças circulam pelos diferentes espaços, com freqüência juntas com as da mesma idade e com as mais velhas, que assumem nisso certo grau de responsabilidade de modo mais ou menos espontâneo – e como nisso vão ganhando um panorama da vida da sua comunidade em suas diversas variantes. Lá onde estiverem, os adultos presentes se sentirão responsáveis por todas, não apenas por seus próprios filhos ou parentes próximos.
O que mais me chama atenção na vida de aldeia é o modo como as crianças circulam pelos diferentes espaços, com freqüência juntas com as da mesma idade e com as mais velhas, que assumem nisso certo grau de responsabilidade de modo mais ou menos espontâneo – e como nisso vão ganhando um panorama da vida da sua comunidade em suas diversas variantes. Lá onde estiverem, os adultos presentes se sentirão responsáveis por todas, não apenas por seus próprios filhos ou parentes próximos.
Naturalmente nem sempre é confortável ter crianças brincando por perto, porém o fato de tê-las a maior parte do tempo tem também uma dimensão pedagógica para os adultos: não os deixa esquecer em nenhum instante da realidade do corpo social em que vivem, e pode servir de freio à sua própria infantilidade (sim: a dos adultos).
É provável que os poderosos da humanidade tivessem cometido bem menos irresponsabilidades se tivessem tido que tomar suas decisões na presença participante de seus filhos, e não desassistidos em suas brincadeiras de poder pretensamente solenes, tão freqüentemente com farta irrigação alcoólica.
Por outro lado, as crianças permanecem incômodas por muito menos tempo – ou seja: conquistam mais cedo certo traquejo e maturidade – quando têm a oportunidade de viver na presença da vida adulta real (isto é: não meramente de uma simulação de vida com pretensões pedagógicas). Entender que há pessoas receptivas, ranzinzas, sérias, alegres, tristes... que há coisas que se fazem ou se dizem em um lugar mas não em outro... todos esses dados elementares de socialização acontecem aí de modo muito mais eficiente que mediante qualquer instituição imaginável da vida moderna.
Também é extremamente rico o fato de que as crianças se vejam logo frente ao mundo adulto, ou à comunidade como um todo, sem a intermediação constante dos pais – intermediação que em nossa sociedade com freqüência atrapalha o amadurecimento dos filhos até mesmo idade adulta adentro.
Mais uma coisa propiciada por essa situação é a descoberta gradual da afinidade com esta ou aquela das atividades ou ofícios cultivados na comunidade, freqüentemente iniciando já na infância os vínculos que levarão a uma relação mestre-aprendiz e a uma entrada na vida adulta muito menos despreparada que a dos jovens na sociedade moderna.
São fatos como esse que se expressam no ditado africano “é preciso toda uma aldeia para educar uma criança”, não à toa escolhido como epígrafe do primeiro artigo que escrevi sobre a Pedagogia do Convívio (incluído como 1 neste volume).
Mesmo nos grandes aglomerados populacionais atuais, uma tal educação pode ser conseguida, pelo menos em alguma medida, por grupos que tenham um efetivo senso de comunidade. Infelizmente isso ainda acontece com menos freqüência por escolha (o que os norte-americanos chamam de “comunidades intencionais”) do que como conseqüência de um ou de outro tipo de discriminação e/ou rejeição entre diferentes grupos sociais.
Esta última declaração traz à baila o outro lado da moeda: os problemas da dimensão-comunidade, quer como aldeia ou em outras formas tradicionais, quer como círculo ou rede entremeados na sociedade mais ampla. Alguns exemplos:
- conter um repertório muito restrito de possibilidades humanas;
- reprimir de um modo ou de outro os impulsos de experimentar outras formas-de-ser que não as já conhecidas na comunidade, especialmente em crianças e jovens;
- acobertar atos indefensáveis por irmandade ou compadrio;
- concentrar forças de resistência a mudanças necessárias ou desejáveis...
Por todas essas razões falo de “reinventar” a aldeia, não apenas “reencontrá-la” ou “restaurá-la”. E onde há vontade, não temos dúvida de que a inteligência e a sensibilidade são capazes de, juntas, realizar aperfeiçoamentos e viabilizações.
Mas por que insistir no modelo se, como acabo de dizer, ele não deixa de ter seus perigos?
De modo nenhum se trata de “romantismo”, “utopismo” ou de coisas semelhantes: todos os outros modelos também têm seus perigos – às vezes os mesmos da aldeia, às vezes outros, mais freqüentemente uma mistura – e por outro lado raras vezes têm mais que uma fração das virtudes ou poderes positivos da aldeia ou comunidade, sobretudo na educação.
Suspeito que decorra disso, pelo menos em boa parte, o sempre mencionado estado de crise que já parece ter se tornado parte integrante dos sistemas educação: é preciso “aldeia” (comunidade) para que haja educação, e não haverá educação sem que se reinvente a comunidade. Pelo menos não uma educação que capacite o ser humano a não ser anti-social, ou seja: um ser em guerra permanente com a própria natureza humana, que é a de ser vivo associativo.[1]
NOVAS TRIBOS? (UM POUCO DE SOCIÓLOGO-LOGIA)
Aqui quase escuto alguém me perguntar se não
concordo com as idéias do sociólogo francês Michel Maffesoli (entre outros), de
que já entramos num novo “tempo das tribos”, onde predominam os valores do
local, da proximidade, das escolhas por afeto – valores comunitários, enfim –,
e que isso representa ainda um declínio do individualismo.[2]
A pergunta é útil, pois respondê-la exige a explicitação de uma fundamental tomada de posição quanto a um conceito sociológico fundamental – para o que peço licença especial, pois o meu conhecimento do corpus teórico dessa disciplina é bastante limitado!
Esse conceito é a distinção entre “comunidade” e “sociedade”. Ouço dizer que foi fixada por Ferdinand Tönnies numa obra de 1887 (Gemeinschaft und Gesellschaft). Uns 30 anos depois, em Economia e Sociedade, Max Weber diz que “comunidade” se refere a relacionamentos sociais baseados no sentimento subjetivo (afetivo ou tradicional) de participar da constituição de um todo – enquanto que “sociedade” seria uma estruturação baseada em relações de interesses de natureza racional. (Textos dos dois se encontram em Florestan Fernandes, 1973).
Passados outros 90 anos, no entanto, parece difícil sustentar uma divisão nítida entre afetivo e racional, como se evidencia inclusive de estudos neuro-cognitivos como os de Damásio, Izquierdo e tantos outros. E olhada com honestidade, a suposta racionalidade das relações de sociedade se mostra geralmente uma imposição com motivos bem pouco racionais!
Minha percepção pessoal parece identificar “por aí” hoje um vago consenso, pouco consciente, que reconheceria as seguintes distinções entre sociedade e comunidade:
Antes de mais nada, dizer que “sociedade” no sentido macro (p.ex. “a sociedade brasileira”) tenha algo a ver com o sentido contratual de “sociedade” (p.ex. uma sociedade comercial) é ou um grande engano ou, de uma vez, um embuste. No mínimo porque a grande maioria das pessoas que participam de uma sociedade, no sentido macro, o faz involuntariamente. E é exclusivamente do sentido macro que falaremos a seguir.
Nesse consenso intuitivo e difuso, a diferença entre sociedade e comunidade seria antes de mais nada de escala, tendo como referência o alcance da percepção direta do indivíduo humano. Estudos recentes apontam que o limite máximo dos círculos de contatos pessoais se situa entre 120 e 150 pessoas – coisa que provavelmente a maior parte de nós pressente intuitivamente (ver Dunbar 2005, Manhart 2006).
Mais importante ainda, porém, seria a direção do movimento que constitui essas diferentes formações: “sociedade” evoca um todo que se impõe às partes como que de cima para baixo – ou melhor: de fora para dentro, ainda que os que vêm de fora cercando sejam poucos em comparação com o cercados, talvez como uns poucos boiadeiros que conseguem cercar um grande rebanho.
Essa mesma comparação aponta ainda para mais um aspecto: a um olhar histórico, nenhuma “sociedade” (no sentido macro) parece ter se constituído sem o uso de força (ou violência) pelo menos em algum momento. Em resumo: temos aí um todo que só se mantém pela compressão das partes.
Em contrapartida, a idéia de formação de comunidades sugere um movimento das partes para o todo. Provavelmente podemos dizer: um movimento de expansão das possibilidades de cada indivíduo através de conexões – o que, partindo de muitos indivíduos, vai gerar naturalmente uma complexa trama de redes que se justapõem e que se interseccionam aqui e ali.[3] (É preciso advertir que, de modo geral, bairros e vilas dentro de uma cidade grande não são um exemplo real de comunidade, em que pese o esforço de tantos em afirmá-lo pelos mais variadas interesses doutrinários e/ou políticos).
Enfim: com “comunidade” estamos falando então de uma formação inteiramente estruturada, uma rede molecular cristalina, ainda que viva e flexível, onde nenhuma pessoa deixa de ter conexões. Com “sociedade”, falamos no limite de um amontoado de partículas sem vínculos próprios entre si, mantido em determinada forma por uma minoria estruturada que a cerca.
Pois bem: passando os olhos pelos textos de Maffesoli encontro de fato uma porção de temas que são caros a nós da Trópis: o ressurgimento do sentimento comunitário a partir de relações pessoais; a ausência de atrelamento exclusivo do sujeito a uma só tribo ou comunidade; o reencantamento da nossa percepção do mundo (ver 2.5 e seção D); a ênfase em uma razão sensível, que tem a ver com o que chamo de integração entre cognição analítica e cognição estética (ver 8).
Mas o modo como essas idéias aparecem em Maffesoli me parece francamente confuso.
Na Pedagogia do Convívio falamos dessas coisas de modo assumidamente programático, propositivo, político.
Maffesoli diz estar sendo descritivo, como sociólogo... mas não se sabe de onde terá tirado essas descrições como características do momento contemporâneo. Fala sobretudo de segunda mão, referindo-se a estudos de outros autores... que na maior parte das vezes estão tratando dos fenômenos da dimensão “comunidade” de modo geral, e não no momento contemporâneo; aliás, até os exemplos dados pelo próprio Maffesoli procedem de momentos espalhados pela história.
Sem maiores análises, eu diria que as críticas que me saltam aos olhos são três:
- Não há nada de novo nos processos descritos como novidade por Maffesoli, a não ser sua visibilidade – conquistada em parte pela existência da internet, mas já de antes pela generalização das pesquisas de opinião informando a publicidade, os roteiros das novelas etc. Talvez tenha havido mais mudança no foco do olhar dos cientistas sociais do que na própria sociedade.
- Creio que Maffesoli generaliza excessivamente para a sociedade inteira as características típicas de movimentos de adolescentes e jovens, sem dar a devida atenção aos possíveis sentidos da variável “idade”. Também ainda não o vimos falar da manipulação intencional de tais movimentos através da mídia, com interesses de mercado.[4]
- Não me parece menos que fantasioso falar de um “declínio do individualismo” em nossa época. O próprio Maffesoli demole essa idéia ao enfatizar a vinculação de cada um hoje com múltiplas comunidades, no lugar da fidelidade a uma só. Supreende que não pareça perceber que a escolha desse mix único é precisamente uma expressão de... individualidade!
Mais ainda, falar de declínio equivale a dizer que existiu um momento anterior em que algum tipo de individualismo foi dominante e generalizado em todo o tecido social. E, honestamente, não vejo nenhuma evidência disso.
Pois a palavra “individualismo” sugere opção, e não o que temos tido na modernidade: isolamento e incomunicabilidade causados de fora para dentro, pela imposição da participação na estrutura gigântica e internamente amorfa chamada “sociedade”.[5]
Na sociedade moderna nos vemos sim desassociados, mas tão “indivíduos” quanto as bolinhas de isopor no enchimento de uma almofada, ou as “diferentes” bolhas numa garrafa de refrigerante.
Onde chegou a haver algo que mereça o nome “individualismo”, isso parece ter sido um privilégio restrito a elites econômicas ou intelectuais – das quais talvez se possa dizer que nunca deixaram de ser “tribos”, tendo as econômicas com certeza se empenhado em manter a maioria da população na forma de massa, “destribalizada”, em benefício da sua própria tribalidade... cultivada talvez justamente por ser condição para sua simultânea individualidade.
Pois, em lugar de se oporem, vejo que comunidade e individualidade se pertencem; é uma quem permite e quem gera a outra, de modo simultâneo e contínuo.[6]
Donde a construção ou reconstrução intencional de comunidades dentro do corpo mesmo da sociedade, sendo autêntica, longe de significar uma desindividualização do ser humano, deve representar, isso sim, um passo na direção da universalização do direito de ser indivíduo – o que talvez seja uma real novidade na história humana.[7]
[1]
O que penso ser a tradução de zôon politikón.mais adequada à percepção
do mundo que temos hoje. Essa expressão usada por Aristóteles em sua Política é comentada em diversos
artigos deste volume, especialmente em 8 e 12 – do que não se deve depreender
que tenhamos afinidade com o pensamento desse filósofo como um todo, como deixa
claro o segundo desses artigos.
[2]
O tempo das tribos: o declínio do individualismo na sociedade de massas. Maffesoli 1998.
[3] Para uma exploração dessa mesma imagem estrutural
no campo do ensino-e-aprendizado, ver 11.3.6.
[4]
Do que falo no pequeno artigo Os rebeldes programados da Dona Burguesia (1999),
em Rickli 2006f,
www.tropis.org/biblioteca/torpedos.html
[5]
“Imposição da participação” no mínimo pela eliminação de tudo o que pudesse ser
opção alternativa ou, mais ainda, pela sua cooptação – que é o anzol que
vejo na isca que é a palavra “inclusão”, cf. o recente artigo Contra o mito
da inclusão, em www.tropis.org/biblioteca (Rickli 2006g; também o artigo Os rebeldes programados,
mencionado acima, fala da cooptação).
[6]
Apesar de algumas diferenças de linguagem e perspectiva, é na verdade do mesmo
fenômeno que Íris B. Goulart
(1987) fala no belíssimo fechamento de seu estudo Psicologia da Educação no
Brasil: “A construção da subjetividade não pode ser ignorada no processo da
educação (...) uma vez que o homem produz uma síntese do seu Eu na medida em
que transforma, conscientemente, os objetivos sociais em objetivos particulares
e, segundo Heller, desse modo socializa a sua particularidade. Em
contrapartida, [é] à medida que constrói a sua singularidade [que] o homem pode
atuar sobre as condições objetivas da sociedade. Nisto consiste a visão
dialética da educação (...)”
[7]
Esta conclusão é concorde com o que vejo de melhor nas idéias do autor
justificadamente controverso que é Rudolf Steiner
– com as quais não concordo “por atacado” mas tenho que reconhecer como um
gigantesco repositório de insights instigantes e consistentes que seria
estúpido desperdiçar!
De primeira lida, rapidamente, me veio na lembrança "momentos comunidade", justamente aqueles que se estabeleceram - e se estabelecem - ao redor da necessidade da educação das crianças. Na minha vivência pessoal, são momentos plenos de confiança.E de auto-educação, porque é a isso que as crianças nos levam; assim como os adolescentes nos propõem, cotidianamente, o autoconhecimento (ai de mim!).
ResponderExcluirPor outro lado, ao pensar no sufocamento que essa mesma comunidade pode provocar - penso a família como essa primeira instância comunitária, para além das demais, ampliadas e que já são escolhas pessoais - , me vem em mente que o pulsar é fundamental. São os indivíduos e seus caminhos únicos - muitas vezes apontados como descaminhos, a depender da força e característica dos valores constituídos na comunidade - que oxigenam, transformam e atualizam os grupos e a tendência natural à estagnação ou à radicalização. Pessoalmente, pertencer a uma única comunidade, e ainda que nesse pertencimento haja dedicação, afeto, troca de experiências e valores etc, é algo impensável. Acredito que quanto mais exercemos nossas individualidades, quanto mais verdadeiros são nossos valores para nós mesmos, mais aptos nos tornamos à vida comunitária e mais necessidade temos de múltiplas comunidades. E, interessante, vejo também algo como "membros ponte", pessoas que vinculadas mais fortemente às comunidades, não deixam de prestar atenção naqueles que se vão, os "descaminhados", justamente porque, atentos, sabem que de lá, de fora, vem o respiro necessário.
Adorei seu texto. Sempre grata, um beijo.