Caros colegas: haverá professores felizes com o que vivem na escola hoje? Deve haver mas... sejamos sinceros: creio que ninguém de nós pensa que sejam muitos! E se considerarmos que a maioria dos alunos também preferia estar em outro lugar, será que não é hora de nos perguntarmos: ainda existe sentido no que estamos fazendo?
Alguns podem argumentar que alguém tem que fazer o sacrifício para não deixar os jovens sem educação, mas... será que os efeitos educacionais que temos conseguido correspondem de fato ao tamanho dos custos - não só em verbas mas principalmente em alegria de vida, deles e nossa? Ou alguém dirá que essa dimensão não tem importância?
Permitam relatar algumas coisas da minha trajetória de aprendizado - que, antes de mais nada, não espero ver encerrada enquanto eu tiver alguma consciência - pois me parece ter prefigurado um tanto, desde há meio século, o que cada vez mais crianças e jovens vivem hoje.
Eu tinha uns cinco anos quando meus pais se surpreenderam ao me ver alfabetizado. Eles apenas haviam deixado um pequeno quadro-negro e giz à disposição, havia impressos abundantes pelo ambiente, e haviam respondido minhas perguntas.
Me disseram que logo eu iria pra escola, e que lá sim eu ia aprender bastante - mas não foi verdade: em meio a imobilidade e incomunicabilidade forçadas, alguém com evidente cara de má-vontade tentava impor aos gritos alguma atenção a atividades que não interessavam nem ensinavam. Socialização? As relações entre os alunos eram praticamente um bullying generalizado e constante, ignorado pelos professores como ‘coisa de criança’ até que surgisse algum ferimento físico.
Continuei aprendendo mais em casa, onde dois pais ex-professores respondiam perguntas, chamavam atenção para fatos interessantes e deixavam livros e discos à disposição.
Capital cultural, privilégio de poucos - diria Pierre Bourdieu.
Perfeito. Só que nos últimos anos a sociedade toda se vê cada dia mais imersa numa espécie de ‘caldo de informação’ propiciado pelas tecnologias de comunicação - primeiro em massa mas agora, muito melhor, em rede de mão dupla. Para mais e mais crianças e jovens, permanecer ignorante começa a ser mais custoso que aprender algo. Ao se comunicarem no MSN, por exemplo, adolescentes das periferias estão atingindo uma velocidade de expressão escrita que jamais teríamos sonhado solicitar deles!
E a escola, estará sabendo se relacionar com isso? Vejo colegas se manifestarem sarcasticamente sobre o quanto es-ses adolescentes ‘escrevem errado’ - quando se deixados só aos nossos cuidados sequer estariam escrevendo!
Comecei a lecionar um ano depois de entrar numa primeira faculdade - e logo percebi que, tanto quanto aos conteúdos quanto às formas do trabalho docente, eu continuava encontrando mais ajuda fora do que dentro da instituição. E nesse momento um jovem europeu de postura entre hippie tardio e punk precoce, porém muito lido, me desafiou: ‘Professores são seres insuportáveis, e o são porque não têm idéia de como é a vida fora da escola: cresceram nela, nela se formaram, nela passaram a trabalhar de imediato. Como vão ser úteis a um mundo que nem conhecem?’
Ainda estávamos no embalo de 1968 e parecia garantido que as instituições vigentes pudessem ser substituídas relativamente rápido por alternativas de um ou de outro tipo - e no nosso mundo novo valeria o saber demonstrado na prática, não os títulos de papel. Foi com essa confiança que abandonei a busca do diploma e saí catando conhecimentos que julgava relevantes para a construção desse novo mundo, onde quer que os encontrasse.
Assim, entre trabalhos e aprendizados os mais diversos, aos 40 eu havia cursado seis anos em nível superior em três países - porém sem grau, pois haviam sido semestres avulsos e ‘cursos livres’. Tinha investido ainda milhares de horas em cursos de extensão e em leituras em cinco idiomas, escrito centenas de páginas, dado palestras e cursos em nove estados...
... quando de repente ficou claro que, em lugar de desabar, as velhas instituições haviam se tornado mais fortes que nunca, e imposto uma ‘nova ordem’ sua: uma na qual eu - que já havia palestrado, assumidamente sem título, em faculdades do prestígio de uma ESALQ e um IP-USP - estava restituído ao meu valor dos 17 anos: ‘Ensino Médio’.
Foi aí que decidi que, se tinha que me graduar e especializar, seria justamente em Estudos da Educação – entre outras coisas porque vinha ensinando a jovens em espaço não-formal, e a honestidade vinha me forçando a dizer-lhes: ‘NÃO tomem minha história como modelo: por mais que lhes doa, cumpram a carreira escolar até o fim - mesmo se em pleno século 21 a maior parte das escolas sequer realizou as conquistas pedagógicas de 1920, e é fato que lá vocês perdem tempo e ainda vão ter que conquistar por fora talvez o mais importante dos seus aprendizados.’
Mas... não é melancólico ter que dizer isso a jovens - para não dizer trágico? Quanto desperdício de vida humana - sem nem falar no de recursos públicos! Por que nós - professores, orientadores, administradores - não encaramos o DESAFIO MORAL de fazer da escola um espaço de educação realmente significativo - entendida a realidade do século 21?
É óbvio que isso não pode ser meramente mais um remendo no modelo escolar histórico! Precisamos entender de vez que estamos atravessando a revolução cultural mais radical da história da humanidade e, de modo condizente, ousarmos repensar tudo.
Pois nosso esgotamento vem justamente de passarmos os dias tentando empurrar um ancião moribundo - se não já um cadáver - na velocidade dos jovens!
É nesse sentido que tenho convidado colegas educadores de todos os tipos a sentar, trocar experiências e perplexidades e sonhar juntos - na qualidade de um educador que, quando jovem, se viu compelido a fugir da escola de tanta vontade de aprender - inclusive de aprender a conseguir compartilhar eficazmente o que aprendia.
São Paulo, agosto de 2010
Ralf Rickli
Ralf Rickli
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