Acredite nos que buscam a verdade... Duvide dos que encontraram! (A.Gide)

19 abril 2010

21 lições indígenas do Norte e do Sul: um pequeno tributo

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Estes textos foram selecionados para o meu trabalho Três Raízes, Dez Mil Flores, de 1992, esgotado. Hesito em republicá-lo pois tenho a impressão de que a maior parte das idéias que expressei lá está superada ou no mínimo datada. Os textos indígenas não. Deixo portanto que falem por si...

Ralf Rickli - Piratininga, 19.04.2010

I. Chefe Luther Standing Bear, EUA, 1933
O homem branco não entende o ín­dio porque não entende a América. Está longe demais dos seus processos forma­tivos. As raízes da árvore de sua vida ainda não agarraram a rocha e o solo. O homem branco ainda está perturbado por temores primitivos; ainda tem na cons­ciência os perigos deste continente-fronteira, que ainda não entregou um tanto de sua vastidão a seus passos que buscam e a seus olhos inquiridores. Ele ainda estremece com a memória da perda dos seus antepassados sobre os desertos escaldantes e picos proibitivos. O ho­mem da Europa ainda é um estrangeiro e um estranho ‑ e ainda odeia o homem que questionou seu caminho através do con­tinente. Mas no índio ainda está ves­tido o Espírito da Terra, e estará até que outros homens sejam capazes de adi­vinhar e encontrar o ritmo desse espí­rito. Os homens precisam nascer e re­nascer para pertencer. Seus corpos pre­cisam ser formados do pó dos ossos de seus antepassados. (McLUHAN 1973, 107)
 II. Chefe Luther Standing Bear, EUA
O homem que sentava ao chão de seu "típi" [ou oca] meditando na vida e seu sig­nificado, aceitando a afinidade ou pa­rentesco de todas as criaturas e reco­nhecendo sua unidade com todo o universo das coisas, estava infundindo em seu ser a verdadeira natureza da civiliza­ção. Quando o homem nativo deixou de lado essa forma de desenvolvimento, o progresso de sua humanização foi re­tardado. (McLUHAN 1973, 99)
III. Tatanka Yotanka, EUA, no Conselho de Powder River, 1877
Vede, meus irmãos, a primavera chegou: a Terra recebeu os abraços do Sol e nós logo veremos os resultados desse amor! Cada semente despertou, e a vida animal também. É por esse miste­rioso poder que também nós temos nosso ser, e portanto entregamos a nossos próximos, inclusive aos animais nossos próximos, o mesmo direito que a nós, de habitar esta terra.
No entanto ‑ ouvi-me, meu povo! ‑ agora nós temos que lidar com outra raça ‑ pequena e fraca quando nossos pais a encontraram, agora grande e es­magadora. Estranhamente, eles têm a idéia de cortar o solo, e o amor da posse é uma doença que carregam. Esse povo fez muitas regras que os ricos po­dem quebrar, mas os pobres não. Eles cobram taxas dos pobres e fracos para sustentar os ricos que mandam. Reclamam para si a posse de nossa mãe, a Terra, e cercam seus vizinhos para fora, e a desfiguram com suas construções e seu lixo. Essa nação é como a enxurrada de primavera, que ultrapassa as barrancas e destrói todos os que estão no seu ca­minho. (McLUHAN 1973, 90)
IV. Smohalla, EUA, organizado da Religião dos Sonhadores em torno de 1850
Nossos jovens jamais trabalha­rão. Os que trabalham não podem sonhar; e a sabedoria vem a nós em sonhos.
Pedis-me para arar o chão. Devo tomar uma faca e abrir o seio de minha mãe? Quando eu morrer ela não me tomará para descansar em seu colo.
Pedis-me que cave em busca de pedras. Devo cavar sob sua pele em busca de seus ossos? Quando morrer não poderei entrar em seu corpo afim de renascer.
Pedis-me para cortar grama e fazer feno e vendê-lo e ser rico como os ho­mens brancos. Mas como ousarei privar minha mãe de seus cabelos?  (McLUHAN 1973, 56)
V. Aíl­ton Krenak, Brasil, 1992
Em vez de se quebrar a cabeça, deve-se ficar quieto, esvaziar toda a ansiedade e esperar o sonho. (...) A instituição do sonho é um traço cultural, da mesma maneira que algumas tradições religiosas possuem rituais como romarias ou orações. Não é um truque para ficar esperto ou sair de enrascadas. (KRENAK 1992b)
VI. Aíl­ton Krenak, Brasil, 1992
 Há um amigo meu que desde pequeno foi preparado para fazer o ca­minho do espírito, recebendo sonhos, etc. Durante uma época esteve intratá­vel e, para mim, encontrar com ele era decepcionante. Um dia ele me deu o to­que: era como se estivesse me dizendo que, naquele momento, tinha que fazer todas as coisas confusas para que as outras continuassem acontecendo. Muito provavelmente, você só pode crescer como ser humano porque alguém ficou suspenso enquanto isso. Se você recebeu este presente, deve ter sabedoria para zelar por ele e fazer seu caminho. No meio de qualquer povo sempre houve essa turminha avessa. (KRENAK 1992a).
VII. Aíl­ton Krenak, Brasil, 1992
Quando comecei a confrontar os problemas das relações das sociedades indígenas com o Estado, de populações arcaicas perante os segmentos modernos que acumulam muitos dados de uma vez só, percebi que aquelas sociedades me­nores precisam se fortalecer para não serem devoradas. (...) A civilização é uma fábrica permanente de fazer doido. Quem se mar­ginalizar de tal organização agressiva­mente estruturada não tem chance al­guma. (KRENAK 1992b)
VIII. Aíl­ton Krenak, Brasil, 1992
 Quiseram me atrair para cor­rentes ideológicas. Eu não tinha pre­conceitos sobre essa questão, mas já sabia que o caminho da causa indígena seria inconfundível. Nós não somos sin­dicato, não somos partido ou crença re­ligiosa. Quem me mostrou isso foi o sonho. (KRENAK 1992b)
IX. Aíl­ton Krenak, Brasil, 1992
Estes choques empobrecem os dois lados: os índios, pela imitação paté­tica dos brancos. Os bran­cos, pela perda de dignidade cultural. Ao tentar "aculturar" o indígena, o branco apenas cria raias de periferia cultural, com gente que não consegue ser a sua repe­tição, que não tem sua fé, que não acredita em seus valores. Tudo vira um arremedo. (KRENAK 1992b)
X. Aíl­ton Krenak, Brasil, 1992
Eu fico admirado quando escolas municipais trazem crianças para visitar esta casa (a chamada "Casa Sertanista", no Bu­tantã, em São Paulo). Dizem que é do século XVIII e o pessoal vem aqui reveren­ciá-la. Historiadores e ar­quitetos dan­çam em volta dela e voltam felizes para os seus escritórios porque viram uma casa que tem muita antigüidade. Eu fico olhando para eles e penso como esse pessoal é novinho. Acreditam que essa cons­trução, feita outro dia, tem anti­güidade suficiente para inspirar sua arquitetura e orientar sua cultura. Será que eles sabem que uma castanheira vive 600 anos? Que o mogno, o jacarandá ou o jequitibá alcan­çam 1200 anos? E que eles podem ouvir as histórias desse tempo, sentados embaixo da árvore? Será que es­sas pessoas conseguem pensar que aquela figueira já tem em torno de 200 anos? Essa cultura que a gente chama de ocidental, expressada no prefeito, no verea­dor, no guarda, no Presidente da República, na avó dele enfim, toda essa aparente antigüidade é de jar­dim de in­fância. E eles aplicam essa "antigüi­dade" no resto do país, desrespeitando ilustres figuras como este ancião de 135 anos que foi escravizado, desres­peitam gente como nossos avós, que es­tão na floresta, nas aldeias, há muitos séculos ensinando para seus filhos como andar com cuidado na terra. (KRENAK 1992a)
XI. Aíl­ton Krenak, Brasil, 1992
- Nosso monumento mais antigo não é nenhum edifício ou pirâmide. É a nossa memória.[1]
Pergunta: - E as ruínas na Amazô­nia?
- Sei que em várias regiões do Brasil há si­nais que impressionam os arqueólo­gos. Por exemplo, eles ficam impressio­nados com algumas de nossas urnas fune­rárias. Para o arqueólogo, o tempo co­meça quando ele acha nossas urnas. Para nós, o tempo acaba quando fazemos as urnas. É como se você estivesse an­dando à noite com uma tocha na mão e alguém viesse no outro sentido. Ele não se comunica com você e acha que en­tendeu tudo. Volta e avisa aos outros: "olha, ali vive um sujeito com uma to­cha." Engraçado é que você já tinha an­dado milhares de quilômetros, passou por ali e foi embora. Mas quem viu você estava indo em outra direção, e tem uma visão linear. (KRENAK 1992a)
 XII. Aíl­ton Krenak, Brasil, 1992
Se você atravessa a fronteira do tempo e transpõe a aparência das coisas, pode ver tudo o que quiser, basta se dar o direito. Alguém pode vir aqui e ver apenas esta casa; outra pes­soa pode ver uma cachoeira ou sentir, no meio desta cidade o hálito das flo­restas, montanhas e rios. Se esta per­cepção estiver aberta, o ponto deste nosso encontro está em qualquer lugar ou tempo. (KRENAK 1992a)
XIII. Aíl­ton Krenak, Brasil, 1992
Na verdade, o mundo não é uma coisa nem outra, nem índio nem branco. Aliás, essa história de índio e branco é uma invenção dos homens e não do mundo. Quando formos suficientemente simples e existirem vários núcleos de gente resgatando a huma­nidade do mundo, perceberemos que somos muito mais que esse jogo ingênuo. Os homens construí­ram um monte de núcleos de ilusão para si mesmo e pulam de um para outro, como se andassem pulando em cima de pedri­nhas num grande lago, ao invés de entrar logo na água. Não vêem que estão dentro do grande lago o tempo inteiro e que podem nadar em meio à ecologia, no sen­tido espiritual do termo. Estas pedri­nhas são os becos fi­losóficos e ideoló­gicos, os chiqueirinhos culturais. Os homens ficam pulando feito pererecas com sonhos de grandeza e não percebem que o universo que podemos partilhar é muito maior. Temos mais possibilidades do que deixar os não-índios nas cidades e os índios no mato, trocando algumas fi­gurinhas com os brancos. Isso é muito pouco. Além de continuar vivendo, deve­mos saber por que estamos vivendo. Uma das grandes tragédias que nos atingem, gente azul, vermelha ou branca, é que muitos de nós não sabemos porque esta­mos aqui. Quando se sabe isto, todas as outras questões estão resolvidas. (KRENAK 1992a)
XIV. Aíl­ton Krenak, Brasil, 1992
Pergunta: - Aparentemente os brancos não estão ligando muito para esses por­quês. Será que o poder estabelecido vai compreender isso que você está falando?
- Acredito que esse negócio de poder constituído é uma brincadeira de mau gosto. E que passa. (KRENAK 1992a)
XV. Aíl­ton Krenak, Brasil, 1992
 Há dificuldade em aprender o princípio de um povo que ensina seus filhos a andar suavemente so bre a Ter­ra por um outro que chega devastando, cons­truindo estradas e monumentos. Tal­vez para os brancos seja uma honra muito grande morrer fazendo um barulho desgraçado. Você vê como os brancos vi­vem construindo monumentos para seus ídolos? É uma maneira de home­nagear pessoas que fizeram coisas importantes. Mas o nosso povo ensina aos seus filhos que, quando passa rem, passem suave­mente sobre a Terra, como um pássaro que faz um vôo no céu e não deixa ras­tro. Quem passa pela Terra fazendo mo­numentos não está seguro de si e pre­cisa deixar sinais para ver se lembram dele. (KRENAK 1992a)
XVI. Aíl­ton Krenak, Brasil, 1992
Se o que um povo ou uma pessoa faz é verda­deiro, esse gesto se instala no mundo. Da mesma ma­neira que o Sol nasce de manhã, lançando toda sua luz sobre a Terra. Ele é um dos seres mais lindos que nos visitam e ninguém o anuncia. Com os homens acontece o con­trário: qualquer medíocre solta na sua frente uma caravana de trombeteiros para dizer "lá vem o gi­gante." Quanto maior o som das trombetas, menor é o sujeito. No entanto o caminho dos ho­mens está entre esse tropel de cavalos e o silêncio dos pássaros. E nós deve­mos trilhá-lo com a seguinte sabedoria: tudo o que você tem a fazer, só você pode fazer. Infeliz­mente a maior parte das pessoas vive a integridade proje­tada para os outros. Elas precisam de um diploma ou de um título, seja de de­putado ou monge. Essa ima­gem exterior não tem sentido algum. Se o seu tra­balho fica, embora ninguém nunca tenha percebido a sua pas­sagem no mundo, você recebeu um presente muito grande. (KRENAK 1992a)
XVII. Aíl­ton Krenak, Brasil, 1992
Os brancos constroem pa­redes de cimento porque é o caminho de­les, querem eternizar suas coisas. Nós temos esteiras e casas de palha porque o vento leva e não deixa nenhum rastro. (Grifo nosso). (KRENAK 1992a)
XVIII. Aíl­ton Krenak, Brasil, 1992
Pergunta: - Em geral as pessoas acre­ditam que os índios estão desapare­cendo. Qual é a reação quando percebem que não é bem assim?
- Muitos de nossos amigos, nos­sos padrinhos brancos, ficaram meio de focinho virado. Acho que eles pensavam que nossa passagem no mundo estava li­gada à questão numérica. (...) Um dia chegou aqui uma inglesa que escreveu uma obra importante na dé­cada de 60 chamada "Vanishing África" (África que desaparece). Ela queria fazer um "Va­nishing Amazon" e desejava nos fotogra­far antes que acabássemos. Eu fa­lei: "Que coisa curiosa e ao mesmo tempo desrespei­tosa você está falando, porque você vai desaparecer antes da gente."  (KRENAK 1992a)
XIX. Aíl­ton Krenak, Brasil, 1992
Quando uma pessoa diz para mim que quer fotografar os índios antes que desapareçam, não está partilhando do sentimento de antigüidade. Signi fica que ela já me colocou dentro da reserva fotográfica dela. Se acha que meu povo vai acabar é porque ela não partilha do nosso sonho. Caso contrário, chegaria aqui para se pintar conosco ou nos chamar para dançar em sua casa. (KRENAK 1992a)
XX. Aíl­ton Krenak, Brasil, 1992
Pergunta: - Assim como você descobriu que todos os índios pertencem à mesma família, não seria o momento de pensar a humani­dade como uma mesma família?
- Creio que somos todos rios correndo para o mesmo oceano. Só que alguns perderam a memória de que são rios. Não digo que os brancos não par­tilhem dessa memória permanente. Estou falando que grande parte dos outros po­vos [não-índios], principalmente este que ficou sendo chamado de branco, es­colheu separar-se do leito do rio. Eles ficaram à margem, organi­zando o mundo, dividindo o tempo em segundos, meses, anos. Dividiram a geografia em frontei­ras, marcando, dentro destes países, onde podem morar os ricos e os pobres. Depois disso tudo determinaram onde a natu­reza pode se expressar, dentro de uma reserva ecoló­gica ou no zoológico. Este pensamento escolheu fazer isso porque não quer estar no fluxo da memó­ria do mundo. Ninguém dá ou tira esse direito de alcançar a memória. (KRENAK 1992a)
XXI. Aíl­ton Krenak, Brasil, 1992
 E' o diálogo que nos torna irmãos. Mas é preciso encontrar abertas as portas da percepção do ou­tro. O meu coração sente quando vocês falam comigo: "Mas Aílton, você está nos excluindo de alguma maneira dessa memória da criação do mundo e desse rio que corre parado." Ora, quem disse que sou o dono do rio? Sou apenas a água. Por que as pessoas acham que nós fecha­mos ou abrimos a torneira? A água não manda no rio. (KRENAK 1992a)
FONTES
KRENAK, Aílton. Entrevista a Pedro Camargo e Alexandre Mansur. Revista Ano Zero, Rio de Janeiro, fev. 1992.
______. Entrevista a Eduardo Logullo. Revista da Folha, São Paulo, 11 ago. 1992.
McLUHAN, T.C. Touch the Earth, a self-portrait of indian existence. Londres: Abacus, 1973.


[1] Note-se que as palavras memória e mo­numento têm a mesma raiz.

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