Acredite nos que buscam a verdade... Duvide dos que encontraram! (A.Gide)

06 janeiro 2010

O achado de Clóvis Rossi: um princípio definitivo sobre a diferença esquerda/direita frente à anistia

Provavelmente ninguém ainda tinha conseguido apontar de forma tão enxuta, contundente e definitiva a inconsistência da argumentação da direita na polêmica da anistia aos crimes da época militar -- e, de modo não pouco surpreendente, quem acaba de fazê-lo foi o jornalista Clóvis Rossi, totalmente insuspeito de ser algum militante de esquerda.
 
Destaco em azul o trecho, logo no início, que me parece destinado a permanecer como um "princípio de doutrina" a não ser desconsiderado nunca mais em nenhuma reflexão séria sobre a História do Brasil pós 1960. Mas também o restante do texto, que trata da famigerada Operação Condor, precisa ser conhecido - e como saiu em área de acesso restrito compartilho aqui na íntegra.  (Ralf)
 

 
 
Sobre verdades e venenos
Clóvis Rossi - Folha de S.Paulo, 02.01.2010

A COMISSÃO da Verdade, proposta pela Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, bem que poderia começar procurando a verdade nos argumentos contra ela esgrimidos pelos comandantes militares. Não vai encontrar.

O argumento mais popular, a julgar pelo Painel do Leitor de ontem desta Folha, é o de que a proposta quer investigar os abusos de um lado (o dos militares) e ignorar os do outro (os militantes da esquerda armada). Ou é desinformação ou má-fé.

Todos os abusos da esquerda armada foram punidos. Alguns, na forma da lei. Outros, muitos, à margem da lei, por meio de assassinatos, torturas, exílio, banimento, desaparecimentos.

Já os abusos praticados pelo aparato repressivo não foram nem investigados, com pouquíssimas exceções.

Para ficar apenas no âmbito mais próprio para este espaço, o internacional, está mais do que na hora de buscar a verdade sobre a Operação Condor, o mecanismo repressivo multinacional armado pelas ditaduras militares do Cone Sul, nos anos 70/80.

Deve haver, escondido em algum arquivo bem protegido, um documento assinado por chefes militares da época anulando a soberania de cada país para que militantes da oposição às ditaduras pudessem ser caçados livremente.

Eu mesmo andei atrás desse papel, quando estava para cair a ditadura boliviana da época (começo dos 80), a primeira brecha que se abriria para ter acesso a arquivos oficiais. Um coronel, que fazia a ligação entre o candidato presidencial Hernán Siles Zuazo e as Forças Armadas, me disse que teria, sim, que haver um documento oficializando, digamos assim, a Operação Condor.

Pena que um novo golpe adiou a vitória de Siles, e perdi a pista.

Ainda nesse terreno de repressão internacional, a nova comissão poderia procurar a verdade sobre o envenenamento de opositores à ditadura de Augusto Pinochet. No domingo, o jornal espanhol "El País" fez um belo levantamento sobre a morte, por aparente envenenamento, do ex-presidente Eduardo Frei Montalva, pai de Eduardo Frei Ruiz-Tagle, também ex-presidente e hoje candidato de novo.

A investigação indica que Frei foi assassinado com três doses de mostarda sulfúrica, tálio e um fármaco não identificado.

No percurso para chegar a essa suspeita surgiu o caso de quatro militantes políticos presos em uma cadeia de segurança máxima em Santiago. Todos foram também envenenados, juntamente com quatro presos comuns, mas Ricardo Aguilera, então com 28 anos, sobreviveu.

Para encurtar a história, descobriu-se que o agente venenoso era a bactéria "clorstridium botulinum", que provoca botulismo, e chegara ao Chile "em um pacote letal enviado do Brasil por valise diplomática", segundo "El País".

Em vez de incomodar-se com uma "Comissão da Verdade" não seria mais lógico que os comandantes militares brasileiros se preocupassem com o uso do território nacional, pelo qual têm a obrigação de zelar, para um crime político?

9 comentários:

  1. Ralf,

    acho que o Clóvis Rossi pode sim ser considerado militante de esquerda. Até o FHC foi perseguido pelo regime!

    Acho também que precisa revirar esse passado - escrevi sobre isso no meu blog essa semana.

    Mas não acho que os revolucionários de esquerda já tenham sido devidamente punidos não. Pelo contrário, logram posar de heróis do bem na luta contra o mal em muitos casos, o que é falso.

    Muitos antigos guerrilheiros são hoje políticos importantes, bem como os torturadores e criminosos do exércitos estão impunes em seus cargos.

    Passado que teimamos em ignorar e deixar sobreviver - o que é ruim para nossa democracia.

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  2. Obrigado pelo comentário, André! Ainda antes de postar o artigo do Rossi eu havia lido o seu, e apreciei.

    Se não cheguei a deixar comentário é porque vejo várias complexidades nessa questão, e quero comentá-las num novo artigo correspondentemente mais complexo, que está em preparação.

    Nele ouso expressar dúvidas (e a palavra é precisamente essa: dúvidas) quanto a se é realmente preciso e conveniente revirar esse passado. Mas definitivamente não dá para adiantar mais agora...

    Quanto à militância de esquerda, de modo nenhum me iludo de que foram santos, puros mártires inocentes, etc. etc. Mesmo assim concordo com o Clóvis. E não vejo nenhuma razão pela qual guerrilheiros de ontem não pudessem ser políticos importantes hoje. Por acaso deveriam pagar seus erros do passado com uma perda perpétua de direitos civis?

    Vejo uma diferença a mais nisso: a moçada da esquerda podia estar equivocada no "como", mas em sua grande maioria tinha de fato uma crença de que aquele era o caminho para o maior bem social. Na direita, os únicos objetivos eram o da manutenção e/ou aumento do poder de dominação do seu próprio grupo como um fim em si.

    Uma pequena burguesia como a dos nossos pais (no seu caso talvez os avós) pode tê-los apoiado de boa fé, crendo que o objetivo era realmente o bem comum, mas os insiders e agentes do sistema sabiam muito bem que não.

    Talvez eu possa resumir: num dos casos praticavam um certo banditismo crentes de que ele era o caminho para a extinção dos banditismos; no outro, com o objetivo da perpetuação do próprio banditismo.

    Pelo menos é essa a minha visão - e embora não descarte que um dia possa aparecer, até agora não tenho conhecimento de nenhum fato suficiente para modificá-la.

    Mas sobretudo, é sempre uma satisfação a oportunidade de dialogar com alguém que se interessa pelo mundo. Abraços!

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  3. Pois.

    Eu andei estudando o Realismo Socialista no Brasil e o PCB, e não acho os caras bonzinhos não.

    Se os revolucionários ganhassem a parada teríamos uma ditadura de tipo soviético ou chinês por aqui.

    Muita gente à direita achava que lutar pela justiça era evitar esse perigo.

    Acho que tem gente sincera dos dois lados, e patifes igualmente distribuídos.

    O risco do totalitarismo de esquerda me parece hoje mais real que a volta a uma ditadura de direita.

    Ademais, a esquerda no poder tem demonstrado que chegar ao poder às vezes tem motivações nobres e humanísticas, que facilmente se perdem no caminho. O poder se torna um fim em si.

    Estou curioso em saber porque você acha que não vale a pena mexer nesse passado.

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  4. RALF, É LENITA. SEU SEM VERGONHA, QUANDO VAI VOLTAR PRÁ LÁ. VOCÊ FAZ FALTA. MESMO QUE SEJA PARA BRIGAR COMIGO PORQUE NÃO SOU LULA. VOLTE. LOGO. JÁ ESTÁ FICANDO CHATA ESSA FALTA DE SUA PARTICIPAÇÃO.....

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  5. Na verdade creio que a dita democracia em nosso país, não é tão democrática assim. Existe sim uma grande oligarquia formada por parlamentares e agentes políticos aos quais é dada uma grande soma de privilégios, entre eles de terem seus crimes de corrupção apreciados por um tribunal constitucional e não pela justiça penal.

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  6. Respondendo mais uma vez ao André, enquanto o artigo prometido não sai (a afinação das suas palavras é tão delicada que realmente não dá pra se apressar):

    Ainda no seu 1.º comentário você diz que Clóvis Rossi poderia, sim, ser chamado de "militante de esquerda", pois "até o FHC foi perseguido pelo regime". Acontece que eu falava unicamente dos seus posicionamentos atuais. Não conheço o passado do Clóvis Rossi; sei que de modo geral suas posições na Folha HOJE não justificam chamá-lo "militante de esquerda". Quanto ao FHC, sei bem disso: eu era um dos que lia avidamente seus artigos no jornal Opinião, enviados do exílio em Paris. Com 17, 18 anos, tinha dificuldade em entender, mas achava importante que tinha obrigação de aprender com esse esforço... Daí, o tamanho da decepção com ele por parte da minha geração (e dos imediatamente anteriores): sensação de esperança traída. (O que pra mim chegou no limite no dia das patéticas celebrações dos 500 anos, dia no qual distribuí na net o texto que convido você a conghecer em http://www.tropis.org/biblioteca/torpedos.html#cartapres ).

    Quanto à existência de MAL também nas esquerdas, não tenho a menor dúvida - e não estou usando essa palavra ironicamente; tenho razões para crer na absoluta realidade dessa palavra.

    No entanto, NÃO é a mesma questão abordada pelo PNDH-3.

    Antes de mais nada, não se pode processar e/ou punir alguém por intenções que não chegaram a ser realizadas. Podemos denunciar que tais e tais grupos tinham intenção de instalar uma ditadura de tipo soviético aqui (o que, diga-se de passagem, NOS TERMOS DA CRENÇA DELES era uma forma de atingir o bem; não difere muito da crença dos fundamentalistas evangélicos, de que o Cristo "que veio uma vez como cordeiro virá agora como leão, para reger as nações com mão de ferro. EU NÃO COMPARTILHO DE NENHUMA DESSAS DUAS CRENÇAS, julgo que as 2 são em última análise "engodos do mal", mas entendo que a maior parte dos que embarcam nelas realmente acredita que estão embarcando no bem; como também os que embarcavam no nazismo). O importante aqui: essa instalação da ditadura de tipo soviético não aconteceu; as torturas e outras violências praticadas pelo regime militar ACONTECERAM CONCRETAMENTE. Não se pode abordar intenções e atos concretos com o mesmo critério.

    Quanto aos ex-guerrilheiros ou militantes de esquerda que cometeram atos concretos que podemos julgar dignos de punição, não conheço nenhum caso que já não tenha sido punido. Francamente, você conhece? Não que você avalie que não foi punido "suficientemente", mas não foi punido com NADA?

    (CONTINUA - vou postar esta 1.ª parte por segurança , pq o micro está ruim)

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  7. (CONTINUAÇÃO DO COMENTÁRIO ANTERIOR) Seja como for, continuam não sendo casos comparáveis. O Estado está necessariamente sob um estatuto totalmente diferente de qualquer outro agente, em qualquer sociedade. Que o Estado, por definição guardião e implementador da lei, viole a lei que deve guardar e implementar, tem um sentido diferente da quebra da lei por qualquer outro agente, pois está contradizendo sua própria razão de ser.

    Então mesmo que se admita que os dois assuntos precisem ser tratados, são DOIS assuntos de natureza diferente, a serem abordados de modos diferentes, por procedimentos legais diferentes, etc etc.

    Da minha parte, tenho que a ação da esquerda só poderia mesmo ter entortado uma vez foi tornada ilegal pelo Dutra em 1946. Ou já antes, quando a vertente K.Liebknecht-Rosa Luxemburgo foi ilegalizada na Alemanha. Jamais se extingue nada por colocar na ilegalidade, com isso apenas se "encomenda" um "retorno do reprimido" com caráter problemático, enquanto que se essa mesma tendência tivesse sido mantida dentro do diálogo legalizado e visível, provavelmente depois de algum tempo estaria contribuindo para o processo de um modo viável, convivível.

    Finalmente, creio que se no seu estudo você encontrou fatos realmente cabeludos para o lado da esquerda, e quer conscientizar pessoas de que há perigo na esquerda, então me parece necessário que você relate fatos concretos. Isso pode ter efeito real de conscientização. Ao apenas mencionar por atacado, "eles não eram bonzinhos não", fica parecendo mero discurso (contra)propagandístico sem fundamentação real, do tipo a que se faz bem em não dar crédito. O efeito é nulo, ou o contrário do desejado. Já se forem mencionados fatos concretos, com fontes e tudo, aí o efeito pode de fato ser libertador/conscientizador.

    (Ficou tarde e o sono bateu, nestes últimos parágrafos: espero que tenha dado pra entender!!)

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  8. Claro, estou de acordo.

    Os crimes cometidos pelos militares tem de ser mesmo punidos. O Estado não podia fazer o que se fez, e os militares não podiam ter assaltado e tomado o controle de Estado do modo que fizeram. Se não pudermos lidar com esse passado corretamente não podemos ser uma democracia que funciona.

    Por si só isso já embaralha toda a discussão, ao colocar o fato de que a esquerda tinha negados os seus direitos de exercício político.

    Os comunistas, por exemplo, só puderam funcionar como partido nas eleições de 1945 e 1947. Depois o partido foi cassado e atuou sempre clandestinamente, lançando candidatos pelo PTB e depois pelo MDB, PMDB ou até PT. Só em fins da década de 1980 o PCdoB foi legalizado, um arremedo do que eram os comunistas nas décadas de 1930-1970, quando tiveram papel político e cultural de extrema relevância no país.

    Acontece que eu, que sou comunista para a linha social-democrata, discordo da luta armada como método de ação política, mesmo no caso de combater um regime militar como o brasileiro. Acho que está bem demonstrado que foi um erro grave, que a melhor opção era mesmo a ação civil e a resistência pacífica.

    Também não dá tempo, nem é o caso, de expor fatos documentados sobre terrores da esquerda, nem da direita. Para isso precisa de uma enciclopédia, não uma caixa de comentários de blog.

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  9. Um esclarecimento relativo a nossas duas últimas falas: de modo nenhum sugeri que você elencasse EM CAIXAS DE DIÁLOGO DE BLOGS erros & atrocidades documentadas da esquerda, ou direita, ou o que for. Pensei que é uma coisa que precisamos fazer EM ARTIGOS e outras formas de produção - porque para nós pode parecer óbvio, mas tem novas gerações vindo aí o tempo todo. Esses dias em São Paulo passei mais de ver dos graciosos jovenzinhos de 20 e pouco, um garoto e uma garota, com pura inocência estampada na cara, defenderem que o comunismo só não deu certo porque foi traído pelos revisionistas pós-Stálin, que o regime de Stálin ERA a realização da chamada ditadura do proletariado, e que o caminho era por aí mesmo, que os milhões de mortos eram necessários, pq afinal eram da burguesia, não é mesmo?

    Eu imaginava que ninguém mais fosse capaz de pensar uma coisa dessas, e aí fiquei pensando: QUEM É QUE ESTÁ "APLICANDO A CABEÇA" DE JOVENZINHOS COMO ESSES HOJE?

    De modo que eu apenas acho necessário SEPARAR essas duas questões: crimes do Estado no combate à esquerda no Brasil, e crimes da(s) esquerda(s) em toda e qualquer situação - mas os dois precisam ser abordados. E com exemplos concretos: não uma relação exaustiva, mas exemplos. Porque o efeito psicológico de uma argumentação que contém exemplos concretos é infinitamente superior. E a questão é séria demais, e por isso cabe uma certa busca de eficiência da parte de quem, como nós, busca ter uma atuação quanto a isso (no mínimo na esperança de que os mais jovens juntem forças para conceber novos barcos, em lugar de reembarcar em barcos velhos furados).

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