Talvez muitos de nós não estejamos acompanhando o auê em torno da visita do presidente do Irã (que no fim nem irá acontecer) - auê maior na imprensa que na realidade.
na "Durban Review Conference" (20-24/4/2009), Genebra, Suíça*
20/4/2009, PressTV, Teeran - http://www.presstv.ir/detail.aspx?id=92046
Ilustre presidente da Conferência, ilustre secretário-geral da ONU, ilustre Alto Comissário da ONU para Direitos Humanos. Senhoras e senhores.
Estamos reunidos para dar prosseguimento à Conferência de Durban contra o racismo e a discriminaçao racial, para definir mecanismos que permitam pôr em ação nossas campanhas humanitárias e religiosas.
Ao longo dos últimos séculos, a humanidade tem passado por grandes sofrimentos e dores terríveis. Na Idade Média, condenavam-se à morte pensadores e cientistas. Depois se seguiu um período em que se praticaram a escravidão e o comércio de seres humanos. Inocentes eram capturados aos milhões, separados de suas famílias e entes queridos, para serem levados à Europa e à América, sob as piores condições. Período de trevas, em que a humanidade também conheceu a ocupação, a pilhagem e os massacres de inocentes.
Muitos anos passaram-se antes de que as nações erguessem-se e lutassem pela liberdade, pela qual sempre pagaram preço muito alto. Perderam-se milhões de vida na luta para expulsar os ocupantes e estabelecer governos nacionais independentes. Mas não demorou para que saqueadores do poder político impusessem duas guerras à Europa, que também varreram como praga parte da Ásia e África. Essas guerras terríveis custaram a vida de 100 milhões de pessoas e provocaram devastação massiva em todo o mundo. Se a humanidade tivesse aprendido o que havia a aprender daquelas ocupações, dos horrores e crimes daquelas guerras, já haveria um raio de esperança para o futuro.
Os poderes então vitoriosos autodesignaram-se conquistadores do mundo, ignorando ou subvalorizando direitos de outras nações e impondo leis de opressão e de arranjos internacionais.
Senhoras e senhores, consideremos por um momento o Conselho de Segurança da ONU, que é uma das heranças deixadas pelas duas guerras mundiais.
Que lógica há em o Conselho de Segurança assegurar apenas a alguns o direito de veto? Como essa lógica se harmonizaria com valores humanitários ou espirituais? Não seria lógica sempre discrepante dos princípios de justiça, de igualdade de todos ante a lei, do amor e da dignidade humana? O direito de veto não lhes parece sempre discriminatório e injusto, não implica sempre violação de direitos humanos e humilhação da maioria das nações e países?
O Conselho é o mais alto corpo político de decisores do planeta, para salvaguardar a paz e a segurança mundiais. Mas como se pode esperar que realize a justiça e a paz, se a discriminação está ali convertida em lei e a própria a lei é constituída mediante coerção e arbítrio, não pela justiça e respeito aos direitos de todos?
A coerção e a arrogância estão na origem da opressão e das guerras. Embora hoje muitos racistas condenem em seus discursos e slogans a discriminação racial, alguns países muito poderosos tem sido autorizados a decidir sobre suas políticas, baseados apenas em seus interesses e no próprio juízo. Assim têm podido facilmente violar todas as leis e todos os valores humanitários.
Logo depois da II Guerra Mundial, alguns daqueles países recorreram à agressão militar para arrancar de suas casas toda a população de uma nação inteira, sob o pretexto de que os judeus sofriam horrivelmente; aquelas nações enviaram migrantes refugiados para toda a Europa, para os EUA e para outras partes do mundo, e estabeleceram um governo totalmente racista na Palestina ocupada [2]. De fato, em compensação pelas terríveis consequências do racismo na Europa, ajudaram a implantar no poder, na Palestina, o mais cruel e repressivo regime racista.
O Conselho de Segurança ajudou a estabilizar o regime ocupante e apoiou-o durante os últimos 60 anos, dando-lhe pleno direito de cometer todos os tipos de atrocidades. É lamentável sob todos os aspectos, que alguns governos ocidentais e o governo dos EUA tenham-se comprometido na defesa desses racistas genocidas, enquanto a consciência dos homens e mulheres livres em todo o mundo condenavam a agressão, as brutalidades e o bombardeio contra civis em Gaza, Palestina. Os apoiadores de Israel têm defendido esses crimes e têm silenciado contra esses crimes.
Amigos, ilustres delegados, senhoras e senhores. Onde estão as causas radicais dos ataques dos EUA contra o Iraque ou da invasão do Afeganistão?
Não é outro o motivo que levou à invasão do Iraque, se não a arrogância do então governo dos EUA e a pressão crescente dos mais ricos e poderosos que visam sempre a expandir sua esfera de influência. Aí estão os interesses da poderosa indústria de armamento, destruindo uma cultura de mil anos, nobre em todos os sentidos, de longuíssima história. Tentam eliminar a potência e a ameaça direta que os países muçulmanos impõem hoje ao regime sionista, ao mesmo tempo em que defendem o regime sionista e querem assenhorear-se das fontes de energia do povo iraquiano?
Por quê, afinal, quase um milhão de seres humanos foram mortos ou feridos e mais outros milhões foram convertidos em exilados e refugiados? Por que, agora, o povo iraquiano sofre perdas que já alcançam as centenas de bilhões de dólares? E por que o povo dos EUA teve de ver consumirem-se bilhões de seus dólares, como custo dessas ações militares? A ação militar contra o Iraque não terá sido planejada pelos sionistas e seus aliados no governo dos EUA, cúmplices todos dos países fabricantes de armas e dos senhores da riqueza do mundo? A invasão do Afeganistão terá, por acaso, restaurado a paz, a segurança e o bem-estar econômico naquele país?
Os EUA e seus aliados fracassaram na missão de conter a produção de drogas no Afeganistão. O cultivo de narcóticos multiplicou-se, depois da invasão. A pergunta necessária é "quem responderá pelo que fizeram o então governo nos EUA e seus aliados, naquela parte do mundo?"
Representavam ali os países do mundo? Receberam de alguém algum mandato? Foram autorizados pelos povos do mundo a interferir em todos os lugares do globo – e sempre mais frequentemente na nossa região? Não são a invasão e a ocupação exemplos claros de autocentrismo, racismo, discriminação e violência contra a dignidade e a independência de tantas nações?
Senhoras e senhores, quem é responsável pela crise econômica pela qual passa o mundo? Onde começou a crise? Na África? Na Ásia? Ou começou nos EUA, contaminando em seguida toda a Europa e os aliados dos EUA?
Por longo tempo, usaram seu poder político para impor regulações econômicas desiguais na economia internacional. Impuseram um sistema financeiro e monetário sem adequado mecanismo de supervisão internacional sobre nações e governos que nada podiam, no sentido de conter tendências ou políticas. Sequer permitiram que outros povos supervisionassem ou monitorassem suas próprias políticas financeiras. Introduziram leis e regulações que agrediam todos os valores morais, exclusivamente para proteger interesses dos senhores da riqueza e do poder.
Mais ainda, apresentaram uma definição de economia de mercado e competição que nega muitas das oportunidades econômicas que poderiam ser acessíveis para outros países do mundo. Também transferiram seus problemas a outros, enquanto ondas de crises repercutiam sobre a própria economia, gerando milhares de bilhões de déficit no orçamento. E hoje, estão injetando centenas de bilhões de dólares tirados de seu próprio povo e de outras nações, para ajudar bancos, companhias e instituições financeiras falidas, o que torna a situação cada vez mais complicada para sua própria economia e para seu próprio povo. Estão pensando simplesmente em manter o poder e a riqueza. Não dão nenhuma atenção aos povos do mundo, sequer ao próprio povo.
Senhor presidente, senhoras e senhores.
O racismo nasce da falta de conhecimento sobre as raízes da existência do homem como criaturas escolhidas por Deus. Também é produto de desvio do verdadeiro caminho da vida humana e das obrigações da humanidade na criação do mundo, que leva a falhar nos deveres de conscientemente servir a Deus; nasce tambem de não saber pensar sobre a filosofia da vida ou o caminho da perfeição que são os principais ingredientes dos valores divinos e humanitários. Assim, essas ignorâncias restringiram o horizonte do olhar humano, tornando-o superficial, e tomando, como instrumento de sua ação, só os interesses mais limitados. É por isso que o poder do mal ganhou forma e expandiu seu domínio, ao mesmo tempo em que privou outros de todas as oportunidades justas e igualitárias de desenvolvimento.
O resultado foi o surgimento de um racismo sem limites que é hoje a mais grave ameaça que pesa sobre a paz internacional e tem comprometido todos os esforços para construir a coexistência pacífica em todo o mundo. Sem dúvida, o racismo é o principal símbolo da ignorância; tem raízes históricas e, de fato, é signo de que o desenvolvimento de uma sociedade humana foi frustrado.
É, portanto, crucialmente importante denunciar as manifestações de racismo em todas as ocasiões e em todas as sociedades nas quais prevaleçam a ignorância e pouca sabedoria. A consciência e a compreensão geral da filosofia da existência humana é o principal objetivo e princípio da luta contra manifestações de racismo. E revela a verdade: os seres humanos são o centro da criação do universo. A chave para resolver o problema do racismo é o retorno aos valores espirituais e morais e, afinal, implica voltar a servir a Deus Todo-Poderoso.
A comunidade internacional têm de iniciar movimentos que visem a ampliar a consciência coletiva, sobretudo nas sociedades em que o racismo e a ignorância prevaleçam; só assim pôr-se-á fim ao avanço dos danos causados pelo racismo, que é perverso.
Caros amigos. Hoje, a comunidade humana enfrenta um tipo de racismo que macula a imagem de toda a humanidade, no início do terceiro milênio.
O sionismo mundial personifica o racismo que é falsamente atribuído a religiões mas, de fato, abusa dos sentimentos religiosos para esconder sua horrenda face de ódio. Contudo, é importante que não percamos de vista os objetivos políticos de alguns dos poderes mundiais, dos que controlam os imensos recursos econômicos e os lucros, no mundo. Mobilizam todos os recursos, inclusive a influência econômica e política – e a mídia em todo o mundo –, para tentar ganhar apoio para o regime sionista e para ocultar a indignidade e a desgraça daquele regime.
Não se trata aqui de simples questão de ignorância. Ninguém pode pôr termo a esses horrores mediante campanhas consulares e diplomáticas. É preciso trabalhar com muito empenho para deter os abusos praticados pelos sionistas e seus apoiadores políticos e internacionais, e para fazer respeitar o desejo e as aspirações dos povos. Os governos antissionistas devem ser encorajados e apoiados com vistas a erradicar esse racismo bárbaro e para que se reformem os mecanismos internacionais hoje existentes.
Não há qualquer dúvida de que todos os senhores aqui presentes têm perfeito conhecimento da conspiração movida por alguns governos e pelos círculos sionistas contra as metas e os objetivos dessa conferência.
Infelizmente, houve declarações e declarações de apoio aos sionistas e seus crimes. É dever e responsabilidade dos respeitáveis representantes de todas as nações desmascarar essa campanha que corre na direção oposta a todos os valores e princípios humanitários.
Deve-se reconhecer e declarar que boicotar uma reunião como essa, e tentar degradar a excepcional capacidade política internacional que aqui se acumula, é perfeita manifestação de apoio aos racistas e é escandaloso exemplo de racismo. Para defender direitos humanos, é fundamentalmente importante, em primeiro lugar, defender os direitos de todas as nações do mundo, de participar em condições de igualdade no processos de tomar toda e qualquer decisão, sem qualquer tipo de pressão que venha de apenas alguns poderes mundiais.
Em segundo lugar, é necessário reestruturar as organizações internacionais existentes e suas respectivas constituições e acordos. Essa conferência, portanto, é como um campo de testes. A opinião pública, hoje e no futuro, julgará nossas ações e nossas decisões.
Senhor presidente, senhoras e senhores. O mundo está passando por mudanças profundas e muito rápidas. Relações de poder consideradas estáveis já se mostram frágeis, muito fracas. Ouve-se o "crack" dos pilares dos sistemas mundiais. As principais estruturas políticas e econômicas estão em ponto de colapso. No horizonte, já aparecem crises políticas e de segurança. O agravamento da crise da economia mundial, para a qual não se vê futuro melhor, demonstra que estamos sob a força de uma maré de mudanças globais. Tenho repetido e enfatizado que é necessário que o mundo abandone a rota errada em que caminhou por tanto tempo, e na qual ainda insiste.
Também tenho alertado repetidas vezes contra as terríveis consequências de qualquer desatenção a essa responsabilidade crucial.
Aqui, nessa importante conferência, entendo que já possa declarar a todos os líderes do mundo, aos pensadores e a todos os povos de todas as nações do planeta aqui representados, e que anseiam por paz e bem-estar econômico, que aquela ordem injusta que comandou o mundo já chega, hoje, ao fim de sua caminhada. É fatal que aconteça, porque a lógica desse poder imposto sempre foi a lógica da opressão.
A lógica do governo compartilhado e dos negócios planetários deve-se basear nos mais nobres anseios que há em todos os seres humanos e na supremacia de Deus Todo-Poderoso. Portanto, operará tão mais eficientemente quanto mais se façam ouvir todas as vozes de todas as nações. A vitória do bem sobre o mal e a construção de um sistema mundial justo é promessa que Deus e seus mensageiros fizeram à humanidade. Esse sistema mundial justo tem sido objetivo partilhado de todos os seres humanos e de todas as sociedades ao longo da história. Realizar esse futuro depende de conhecer o espírito da criação e a força da fé dos crentes.
Construir uma sociedade global é, afinal, alcançar o alto objetivo de estabelecer um sistema global comum do qual participem todas as nações do mundo, ouvidos todos em todos os processos de decisão, com vistas a esse mesmo objetivo.
Capacidades científicas e técnicas e tecnologias de comunicações criaram novas vias de entendimento para a sociedade mundial, entendimento partilhado e disseminado; essa é a base essencial para um sistema comum. Cabe, doravante, aos intelectuais, pensadores e construtores de políticas, em todo o mundo, assumir a responsabilidade de cumprir esse seu papel histórico, com firme crença de que esse é o caminho a seguir.
Quero também destacar o fato de que o liberalismo e o capitalismo ocidentais não se mostraram suficientemente potentes para perceber a verdade do mundo e dos homens como são. Sempre tentaram impor objetivos e rumos que eram só deles, a todos. Sem qualquer atenção a valores humanos e divinos de justiça, liberdade, amor e fraternidade; sempre viveram em intensa competição, pensando mais, sempre, em interesses materiais, individuais e corporativos.
É tempo de aprender com a experiência e iniciar esforços coletivos para enfrentar os desafios que aí estão. Nessa mesma linha de argumento, quero chamar-lhes a atenção ainda para duas questões importantes.
Primeiro, que é absolutamente possível melhorar a situação em que o mundo vive hoje. Mas deve-se observar que, para tanto, é indispensável que todos os povos e países cooperem, com vistas a construir mundo melhor para todos, fazendo render o máximo possível, para todos, todas as capacidades e os recursos com que o mundo conta hoje.
Participo hoje, presente nessa conferência, porque tenho a firme convicção de que as questões que aqui se discutem são importantes. E porque é dever de todos, e é responsabilidade comum de todos, defender os direitos de todas as nações contra o racismo sinistro, aqui, e solidários aos melhores pensadores do mundo.
Em segundo lugar, considerada a ineficácia do sistema político, econômico e de segurança hoje vigentes, é indispensável voltar a considerar os valores humanos e divinos, a verdadeira definição do homem e da humanidade, baseada na justiça e no respeito aos valores de todos os povos, em todo o mundo. Para isso, é necessário denunciar os erros e vícios dos sistemas que até hoje governaram o mundo; e é necessário que tomemos medidas coletivas para reformar as estruturas existentes.
Para tanto, é crucialmente importante reformar imediatamente a estrutura do Conselho de Segurança, com imediata eliminação do discriminatório direito de veto; e é preciso mudar os sistemas financeiro e monetário mundiais. Claro que, quanto menos se compreenda a urgente necessidade de mudar, mais nos custarão os adiamentos e atrasos.
Caros amigos. Andar na direção da justiça e da dignidade humana é como seguir o fluxo rápido das águas de um rio. Tenhamos sempre em mente a potência do amor e do afeto. O futuro prometido para todos os seres humanos é patrimônio valiosíssimo. Temos de nos manter unidos para construir outro mundo possível.
Para que o mundo seja melhor lugar, cheio de amor e bênçãos, mundo onde não haja nem ódio nem pobreza, mundo abençoado por Deus Todo-Poderoso, que levará à realização de todas as perfeições dos seres humanos, temos de nos dar as mãos em amizade e solidariedade, e trabalhar para realizar esse mundo melhor.
Agradeço ao presidente da Conferência, ao secretário-geral e a todos os ilustres participantes, a paciência com que me ouviram. Muito obrigado.
NOTAS DE TRADUÇÃO
Caia Fittipaldi
* 21-24/4/2009. É "conferência de revisão", prosseguimento da "World Conference against Racism, Racial Discrimination, Xenophobia and Related Intolerance" que foi iniciada em Durban, África do Sul, em 2001, chamadas respectivamente "Durban I" e, agora, "Durban II". A conferência de revisão foi organizada para estimular a ativação do que ficou definido como objetivos, na "Durban Declaration and Programme of Action"; visa a estimular o prosseguimento de ações, iniciativas e soluções práticas. Sobre a Conferência de Revisão, ver http://www.un.org/durbanreview2009/. Em http://www.un.org/durbanreview2009/pdf/Draft_outcome_document_Rev.2.pdf pode-se ler a versão de documento a ser discutido nessa conferência de revisão.
Interessante observar que, entre 2001 e 2009, o mundo mudou muito dramaticamente. Em 2001, ainda não havia no mundo a clara consciência de que Israel opera como Estado racista, no coração do Oriente Médio. Hoje, o assunto já está em discussão, de fato, em todo o planeta – sobretudo depois do massacre de Gaza pelos israelenses e da ascensão ao governo de Israel, em eleições recentes, de partidos e políticos que manifestam clara ideologia racista. Nesse contexto é que se deve entender o 'boicote' à conferência de revisão. Os EUA de Obama e vários aliados europeus dos EUA 'boicotaram' a reunião. O presidente do Irã atacou diretamente o racismo sionista. Todas essas circunstâncias fazem desse discurso documento histórico importante.
[2] Hoje, a FSP publica versão diferente desse trecho: "Após a Segunda Guerra, eles recorreram à agressão militar para deixar uma nação inteira sem lar, sob o pretexto dos sofrimentos judeus e da ambígua e dúbia questão do Holocausto". Essa versão está publicada em FSP, 21/4/2009, "Ahmadinejad tumultua conferência da ONU", matéria assinada por Marcelo Ninio, de Genebra, em http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mundo/ft2104200901.htm [só para assinantes]).
Também na nota publicada hoje em O Globo (em http://oglobo.globo.com/mundo/mat/2009/04/21/governo-brasileiro-externara-reprovacao-ao-discurso-de-ahmadinejad-contra-israel-755364490.asp), e que, segundo o jornal, teria sido divulgada pelo Itamaraty, há referência a comentário sobre o Holocausto, que haveria nesse discurso. Na versão publicada pela PressTV (BBC no Irã), em inglês, aqui traduzida, não há qualquer referência ao Holocausto.
A histeria da direita com a visita de Ahmadinejad
Idelber Avelar
http://www.cartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=15973
A julgar pelos gritinhos da República Morumbi-Leblon, pareceria que o Brasil nunca recebeu a visita do chefe de um estado autoritário. A julgar pelos videozinhos, você imaginaria que somente líderes de democracias tolerantes e liberais têm permissão de visitar o Brasil. É curioso que pessoas que não deram um pio acerca do inominável massacre israelense em Gaza venham agora posar de defensores dos direitos das mulheres iranianas. Não me consta, aliás, que alguém nessa turma tenha dito nada quando o Brasil recebeu a visita de Bush, responsável por uma guerra baseada em mentiras, pela adoção da tortura como política de estado, pelo campo de concentração de Guantánamo, pela morte de centenas de milhares de iraquianos.
Quando você vir alguém dessa turminha dizendo que Ahmadinejad propõe a exterminação dos judeus, faça algo muito simples: peça o link. Pergunte qual é a fonte. Pergunte quem traduziu o texto do persa. Porque o líder iraniano jamais disse isso. O que ele disse foi: "o regime que ocupa Jerusalém (een rezhim-e ishghalgar-e qods) deve ser apagado da página do tempo (bayad az safheh-ye ruzgar mahv shavad)." A tradução é de um dos maiores especialistas em Oriente Médio da contemporaneidade, Juan Cole, confirmada por dois outros tradutores do persa. Leia a entrevista de Ahmadinejad e confira você mesmo. Sobrando um tempinho, assista ao vídeo da palestra de Ahmadinejad em Columbia University, cujo presidente o recebeu com uma grosseria que até hoje envergonha a nós, acadêmicos americanos.
Suponho não ser necessário esclarecer que eu acho muita coisa no discurso de Ahmadinejad absolutamente repugnante, especialmente as declarações sobre o homossexualismo. Não defendo o que ele diz. Mas há que se corrigir as mentiras. A calúnia de que Ahmadinejad ameaçou "varrer Israel do mapa" -- e, a partir daí, a afirmativa mais delirante ainda de que ele propõe a exterminação de judeus – tem uma longa história, que se remonta a uma tradução manipulada do New York Times. É, meu chapa, quando se trata de Oriente Médio e do lobby pró-ocupação israelense, até as traduções devem ser minuciosamente revisadas.
Não custa lembrar, claro, que o Irã não invadiu país nenhum. O Irã não tem uma história de agressão contra seus vizinhos. Na guerra Irã-Iraque, o agredido foi ele, na época em que o depois demonizado Saddam Hussein era amiguinho de Donald Rumsfeld. Sim, é evidente que a situação dos direitos humanos no Irã é grave. Ela é quase tão grave como a situação na Arábia Saudita, país onde sequer existem eleições nacionais, mas cuja monarquia visita e faz polpudos negócios no Ocidente sem que se ouça um pio dos nossos preocupadíssimos democratas da República Morumbi-Leblon.
Qual é o país do Oriente Médio que ocupa ilegalmente terras de outrem há mais de quarenta anos, com uma história de sistemática agressão contra seus vizinhos e de desrespeito às resoluções das Nações Unidas? Qual é o país do Oriente Médio que infiltra espiões até mesmo no território de seu maior aliado? Não é o Irã.
Aceito debater o Irã com qualquer membro da República Morumbi-Leblon que me ofereça um ou dois parágrafos articulados acerca de como era mesmo maravilhosa a situação no país persa entre 1954 e 1979. Afinal de contas, a julgar pelos horrorizados chiliques, você imaginaria que antes da Revolução Islâmica as coisas andavam muito bem por lá. Na verdade, a única vez em que o Irã esteve perto de chegar a um regime aberto e tolerante foi um pouco antes de 1954, quando a Frente Nacional de Mohammed Mossadeq nacionalizou a indústria do petróleo. Mossadeq logo depois removido por um golpe de estado preparado pela CIA, naquilo que Robert Fisk, em sua obra monumental, chamou de primeira operação americana desse tipo durante a Guerra Fria (pag. 99). Com sua implacável verve britânica, Fisk acrescenta: pelo menos nós nunca afirmamos que Mossadeq tinha armas de destruição em massa.
O golpe de 1954 inaugura um período caracterizado por Fisk como de "monarquia absoluta" do Xá, controlada pela sua temida polícia política que, ao custo de assassinatos, tortura e supressão da oposição, garantiu a estabilidade necessária para que se exportassem 24 bilhões de barris de petróleo nos 25 anos que se seguiriam. A Revolução Islâmica canalizou a revolta da população iraniana, num momento em que muita gente ainda sonhava com a possibilidade de uma esquerda nacionalista e secular no mundo árabe. Essa foi uma opção que existiu durante algum tempo, com Nasser e cia., mas que sucumbiu ante os golpes de estado e as invasões americanas, assim como as sistemáticas agressões israelenses – com o apoio dos mesmos direitecas que agora acusam os críticos do sionismo e do imperialismo de serem cúmplices do bicho-papão islâmico.
Eu me pergunto se esses direitecas que histericamente gritam que Ahmadinejad quer "aniquilar" Israel sabem que o presidente do Irã sequer é o comandante-em-chefe das Forças Armadas do país. Quem tiver curiosidade arqueológica, que consulte a grande imprensa americana entre, digamos, 1998 e 2002. Naquele período, em que o reformista moderado Mohammad Khatami dava declarações de aproximação aos EUA e ao Ocidente, esses gestos eram descartados com o argumento de que o presidente do Irã não tem poder real – o mesmo fato do qual agora eles convenientemente se esquecem, para que possam apresentar Ahmadinejad como comedor de criancinhas.
Etiquetar Ahmadinejad como "ditador do Irã" é ridículo. Ele foi eleito. É verdade que sua vitória foi conquistada com os mesmos métodos de George Bush. Mas se quiserem entender o clima que possibilitou sua eleição, há que se estudar um pouco a enorme frustração dos setores jovens iranianos com Khatami, que tentou e tentou se aproximar do Ocidente, sendo sistematicamente rechaçado.
A tarefa da esquerda é dupla. Desmascarar a mentirada e a hipocrisia da República Morumbi-Leblon e do lobby pró-Israel ao mesmo tempo em que oferece solidariedade aos setores da sociedade civil que estão lutando no Irã – e também na Arábia Saudita! – contra regimes que são, sim, bastante opressivos. Há que se fazer um coisa sem perder de vista a outra. Mas a iniciativa de querer expulsar Ahmadinejad do Brasil, vinda de gente que recebeu Bush sem dar um pio, tem um só nome: hipocrisia.
Portanto, sem prejuízo nenhum ao meu apoio aos que, no Irã, lutam por uma democracia real, não posso deixar de retrucar: Bem vindo, Ahmadinejad. Tome sua cachacinha com Lula (sim, sim, sei que é proibido...), visite algumas das maravilhas desse que é um dos mais belos países do globo e não ligue para a meia dúzia que protesta. Estão em vergonhosa minoria. Já não sabem em que se agarrar. Na última eleição, o candidato deles não conseguiu sequer repetir no segundo turno a votação que havia tido no primeiro. É compreensível que estejam tão histéricos.
(*) Artigo publicado originalmente no blog O Biscoito Fino e a Massa.
texto selecionado e compartilhado por
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Ralf Rickli • arte em idéias, palavras & educação
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