E obrigado aos espanhóis pela invenção do magnífico sinal ¿, que marca onde uma pergunta começa!
No dia 4 passado, ao postar neste blog o tocante "depoema" da professora Diane Padial, escrito numa escola no meio da favela de Paraisópolis (São Paulo) em estado de conflagração, acabei acrescentando um comentário meu no final. Escrevi: "Gaza também é aqui".
Isso carregava um conjunto de sentidos que, percebi depois, não ficou claro para muitos amigos. Pode ter parecido que eu quissesse chamar as duas de "zonas de guerra" no sentido de aí acontecer agressão recíproca entre duas partes comparáveis - e pior: que eu acreditasse que, não havendo explosões tiros pedradas ou barricadas, esses dois lugares estariam "em paz".
Nada mais longe disso!!
Se os palestinos com origem ou refugiados na faixa de Gaza estivessem quietinhos, sem incomodar Israel com nenhum dos seus foguetinhos (que são pouco mais que pedras de maior alcance jogados por cima do muro), isso já não seria paz.
Pois violência existe em forma de ação no momento, mas também em forma de estruturas opressivas construídas por ações passadas. Se eu amarrar em uma pessoa um cinturão com pontas de aço que limitam o movimento e ferem, e que ela não tem como retirar, e depois for embora deixando-a "livre", ¿será que a violência só existiu no momento em que eu estava amarrando o cinturão? ¿Não é óbvio que essa pessoa vive sob a minha violência todos os instantes, mesmo se eu já estiver em outro lugar? (Quem sabe até mesmo fazendo um carinho em uma criança...)
PARAISÓPOLIS!
Paraisópolis é um lugar engraçado: a única favela que conheço com malha ortogonal - ou seja: ruas retas em ângulo reto, quarteirões quadrados ou retangulares. Quis saber como é possível. Num site da Prefeitura descubro que ela deriva do loteamento de uma parte da antiga Fazenda Morumbi, feito já na década de 1920!!
Acontece que os proprietários lotearam um lugar sem infra-estrutura em torno e o deixaram abandonado, também sem infra-estrutura dentro. E aos poucos esses vazio-com-ruas-retas foi sendo ocupado ("invadido") por quem tinha bom uso para ele: proletários. Isto é: pessoas cuja única posse é a própria prole (como se dizia em Roma), ou cujo único "capital" para entrar numa sociedade é a própria força de trabalho (na definição marxista).
A ocupação se acelerou nas décadas de 60 e 70... e só depois que aquilo já tinha virado cidade devido ao pioneirismo dos paraisopolitanos é que chegou, da década de 80 para cá, a ocupação com os prédios de luxo - cujos moradores jamais saem àquelas ruas senão de automóvel, queixando-se que essas ruas são insuficientes e vez por outra atropelando alguma criança dos moradores mais antigos.
Os novos moradores têm títulos de posse do chão, à maneira européia herdada de Roma. Os que ocuparam a área nos 60 anos anteriores, esses não tinham. Quem tinha era naturalmente o proprietário da fazenda, ou seus sucessores legais.
Mas, e como começou que essa fazenda fosse uma "propriedade", um dia?
Começou evidentemente com a ocupação-de-fato daquele chão por alguém de cultura "branca" (européia), pessoa que depois de ocupar sabia como registrar o fato junto às autoridades constituídas por seu próprio povo (o povo que começou a invadir a região em meados do século 16, ocupando e tomando posse na força, sempre na força).
E quem são os moradores da favela? Olhemos para o conjunto dos genes que vivem na favela: em terceiro lugar, numericamente, há uma certa parcela de genes "brancos", de europeus que já vieram como subalternos ou que "decaíram" aqui ao estado de proletários. Em segundo lugar, uma parcela bem mais significativa de genes "negros", trazidos e largados aqui à força, não por sua própria escolha. E a massa genética principal, em que de certa forma as outras duas se dissolvem, é indubitavelmente indígena: dos povos que faziam uso das terras deste continente não há 500, mas há mais de 10.000 anos (dez mil).
Apenas que sem a precaução de registrar essa posse em cartórios.
Acuados pela gradual imposição a todo o país de um modo-de-produção-e-de-vida que não tem nada a ver com sua herança cultural... sem lugar numa sociedade que se impõe mais e mais como única forma de ser lícita em todo o país... este povo mesclado mas de base fundamentalmente índia encontra vez por outra um espaço onde se assentar e se dar tempo e fôlego pra poder continuar na sua interminável e geralmente infrutífera tentativa de inventar um jeito de viver dentro da vasta realidade "moderna" que lhes foi imposta por força (ou no mínimo por atos de astuciosa má-fé).
Uma de tais comunidades se chama Paraisópolis. O nome não é tão irônico: ocupa um vale suave que foi realmente muito bonito, nas proximidades do Rio Jyrybatyba (Pinheiros) - parte da região que um dia o índio Caiubi tentou organizar como frente de resistência ao avanço dos brancos do outro lado do rio.
Como já disse, faz só vinte anos, ou pouco mais, que gente de classe média alta e até mais que isso começou a se instalar por ali com seus prédios e seus carros, e a exigir das autoridades que, para seu bem-estar, mantenham os antigos moradores acuados.
GAZA.
Palestinos são parcialmente descendentes dos filisteus, povo que veio por mar e ocupou parte dessa região mais ou menos ao mesmo tempo em que os hebreus vinham por terra, do Egito, seguindo a palavra-de-ordem de que Deus havia prometido essas terras a seu ancestral Abraão, uns 400 anos antes.
A massa genética principal do povo palestino é porém bem anterior aos filisteus: é a mesma que já ocupava essa região muitos milênios antes de Abraão.
Mas pelo que li na Wikipedia, dizer isso é considerado exploração indevida de dados científicos para fins políticos... Quer dizer: não se deve pesquisar nessa direção porque se poderia descobrir o óbvio, e o óbvio não é favorável a quem está no poder, e o que não é favorável a quem está no poder é "manipulação tendenciosa", claro...
Tenho lido e ouvido coisas como: "Ora, Israel tem o direito de defender sua terra dos ataques dos palestinos, esses encrenqueiros nem um pouco razoáveis" - ou coisas assim. Mas como "sua" terra, senhoras??
Sim, um Estado constituído por hebreus chegou a ser a autoridade dominante sobre parte daquelas terras por consideráveis séculos, admito. Mas esses séculos todos nem chegam a somar mil anos, no correr de toda a História. E esses nem-mil-anos se dividem assim: 60 anos de 1949 para cá, o resto todo entre 2 e 3 mil anos atrás.
Estamos falando da segunda região do planeta a ser ocupada pelo Homo Sapiens, logo de saída da África - mas obviamente os descendentes dos povos que viviam naquela região muitos milênios antes de Abraão não tinham o direito de ter feito suas vidas lá, criado suas famílias com uso daquelas terras, durante os 1879 anos em que não houve poder judaico na região... Obviamente deveriam ter ficado em volta, deixando tudo com uma plaquinha "reservado para o povo de Israel quando ele voltar". Ou então deviam ter atuado como caseiros decentes, que desocupam o espaço rapidinho quando os donos voltam...
Mas quê donos, senhores? Certo, hebreus estão ligados àquela terra há bem mais que os 20-30 anos em que os novos-morumbienses vêm sitiando Paraisópolis... Ainda assim, quando o rei-sacerdote canaanita Melquisedec recebeu Abraão com pão e vinho e bênção na já antiga cidade de Paz (Salem, mais tarde Jerusalém), estava semeando o projeto de um estado cananeu multiétnico e multirreligioso, há uns bons 3500 anos - e lamentavelmente foram sempre os descendentes judeus de Abraão que furaram esse projeto, com atos de avidez por domínio unilateral e excludente.
A IDEOLOGIA QUE IMPEDE A PAZ.
Há considerável mescla genética entre os povos judeu e cananeu-palestino: biologicamente não seria possível dizer com segurança onde termina um e começa outro. Do mesmo modo entre os brasileiros das classes dominantes e os das favelas. A diferença está mais é na programação mental.
Seria falso, é verdade, dizer que cada par desses é uma coisa só: é mais como um oval com dois polos diferenciados, embora sem limite nítidos entre os dois lados.
Nos dois casos o polo dominante é demograficamente menor, tanto no caso da Terra de Canaã quanto no Brasil - sendo o caso do Brasil muito pior: a população dominante aqui é ridiculamente pequena em comparação com "as massas". E ainda assim consegue dominar, com a força que sua ideologia lhe dá.
Ideologias são programas mentais que costumam vir expressos em termos religiosos ou então pseudo-científicos - por exemplo, "explicações" históricas, antropológicas, econômicas, sociológicas etc. que enfatizam alguns pontos e escondem outros, conforme o que se queira justificar. Dificilmente são questionadas por seus portadores, pois são aprendidas já desde o berço geração após geração. Fazem seus portadores se reconhecerem como um grupo, acreditando em conjunto que são por definição os melhores: os bons, os justos ou no mínimo os capazes - e que portanto têm o direito de decidir unilateralmente como as coisas ficarão para todos.
Não existe "conflito" em Gaza: existe uma antiga e insistente tentativa de dominação unilateral por parte de alguns, frente à qual a parte prejudicada tenta se defender como pode há muitos anos: com paus, pedras, com os pífios foguetinhos que conseguem. Com paus, pedras e pneus em chamas em Paraisópolis.
Não nego que existam oportunistas ávidos de poder pessoal dentro dos grupos oprimidos, muitas vezes tomando iniciativas inoportunas que terminam aumentando o prejuízo ao grupo - mas essa é na verdade uma questão menor dentro do quadro maior de opressão continuada, sem esperança de remissão à vista.
Por exemplo: a tradicional comunidade de Paraisópolis sabe que há planos de retalhá-la com novas avenidas para servir aos carros dos novos moradores da região (ligação Panamby-Morumbi). Houve anúncio de início de obras já em 2005 - e o fato de que ainda não aconteceu não anula a ameaça. Sites ainda no ar revelam que já houve desapropriações para esse fim, e que antigos moradores saíram de lá com 5 mil reais na mão por terem entregue moradias pelas quais esperavam receber... 20 mil.
5 mil, ou mesmo 20 mil reais, como patrimônio acumulado de uma vida! Em quantos dias, às vezes minutos, o senhor gasta 5 mil reais, meu caro morador da Avenida Giovanni Gronchi ou do Panamby?
Paus, pedras e pneus queimados são sim uma explosão irracional. Mas qual das violências foi a inicial, meus caros: essa momentânea, ou aquela tão antiga que já se transformou em estrutura, que já vem de longe e não dá mostras de um dia querer largar?
Amo a paz, mas sei que só merece esse nome aquela que é fruto espontâneo da justiça.
Detesto violência, mas se não restar mais nada no mundo senão a violência com que os fortes impõem o sufoco que entendem por "ordem", e a violência com que os fracos tentam defender espaços ainda que mínimos de autonomia sobre suas próprias vidas - nisso eu não tenho dúvidas de com quem eu fico.
SALVE RAPAZIADA DE PARAISÓPOLIS, SALVE POVO PALESTINO! Desejo ansiosamente ver vocês podendo fazer as coisas bonitas que sabem fazer, em vez de terem que tentar botar fogo no campo dos opressores. Se há algum poder cósmico capaz de influir, o que eu lhe peço ardentemente é que faça os opressores tropeçarem nos próprios pés e despencarem por si, antes de terem conseguido transformar todo o coração de vocês numa máquina de odiar.
Ou seja: repito, sim, a antiga oração de conclusão do principal rito cristão: dona nobis pacem, "dá-nos paz". Dá-nos paz, sim! - mas como?
Existe uma possibilidade e não mais que uma: extinguindo toda forma de opressão. Aí paz verdadeira se fará por si.
Muito interesante sua postagem. Gostei muito! Além que é un dos asuntos que mais me inquietan: a opresao que sufren povos por culpa de outros povos que en nome de deus queren tudo para eles (Israel). Apesar de que no caso dos paraisópolitanos (e também dos índígenas de agora e de antes, e africanos), os motivos para oprimirlos nao é religioso. Mas é injusto demais!
ResponderExcluirRealmente a história conta!
ResponderExcluirLembro da Praia do Tombo no Guaruja que em 1970 era lugar de residencia de muitos pescadores caiçaras. Era muito bom ve~los a puxar a rede. Aos poucos foram ¨convidados¨a sair. Agora na praia só há predios, e barracas barulhentas. Horrível. Acabou a natureza.
Difícil a situação.