Duas semanas atrás eu falei aqui da intenção de começar a publicar na net o meu "estoque" de poesia com sistema...
... e de lá pra cá trabalhei um tanto sobre quê sistema seria mais adequado.
E aí me dei conta de que, na verdade, a poesia que eu tenho estocada parece ser de no mínimo três autores diferentes, e não de um só.
Ora, direis :-) ... Fernando Pessoa já fez isso... mas não!, não se trata de um "projeto de produção literária" ou algo assim - e tenho certeza de que também em Fernando Pessoa não se tratava: ele foi é um sujeito com percepção da complexidade do ser humano, e usou a si mesmo como exemplo de como essa complexidade é. Todo mundo, caso se conhecesse a fundo, acabaria sendo tentado a dar nomes diferentes (= heterônimos) aos diferentes aspectos de si...
Sem muita teoria mais, passo a contar então que identifiquei basicamente "três autores" por trás dessas páginas arquivadas:
(1) Um sujeito que gosta de brincar - com palavras & com os fatos da vida: trocadilhos, tiradas, poemas curtos, uma dose considerável de rima e outra de auto-ironia... Esse sujeito se sentiu estimulado e à vontade na espécie de trans-concretismo que predominou nos anos 80, como o do conterrâneo Paulo Leminski.
E desconfio que pra esse sujeito cabe bem o nome Ralf, com que eu fui registrado... - mas não porque esse seja "o eu verdadeiro", e os outros sejam personagens - pelo contrário! Eu me identifico bem mais com o Zé... Afinal, Ralf é o nome que me deram, não que eu escolhi - e portanto tão ou mais heterônimo quanto os outros!
Quem disse, aliás, que Fernando Pessoa foi "mais ele mesmo" nos poemas que registrou sob esse nome mesmo? (E além disso: quem diz que o nome oficial é "o certo"? A tal designação "ortônimo", quem vem sendo usada para contrastar com "heterônimo", NUM TÁ CUM NADA NÃO!!)
E afinal - honestamente, gente - pra um sujeito nascido no Brasil em 1957, e cujo último ancestral nascido na Europa viveu de 1835 a 1921... darem o nome Ralf só pode ser algum tipo de piada, né?
Um exemplo típico desta poesia? O "Bom dia, Coisa" publicado aqui em 19/01. Mas quem sabe também o...
DRAMA ADOLESCENTE
eu queria tanto ser tudo mas mamãe não deixa
1987
(2) O Zé, ao contrário, não é um sujeito exatamente divertido.
Afinal, não é moleza nenhuma ser um Zé.
No Zé coincidem uma atitude de enlevo perante a grandeza & beleza do universo e a crítica à forma amesquinhante de convívio humano a que se deu o nome de "sociedade" - não uma crítica meramente cerebral, mas asco mesmo. Visceral.
É para essa coincidência do místico com o político (e não para o suposto dom de adivinhar o futuro) que os teólogos usam a palavra "profético". O Zé se sente compelido a falar nesse tom profético -- aliás, se não me engano seu verdadeiro nome é Isaías José Lobo, algo assim... -- e aí soa muitas vezes ranzinza, queixoso, acusador...
... o que no fundo é um puro debater-se em um amor desesperado com sua própria impotência diante do sofrimento que vê afligindo a maioria dos seres em seu mero existir.
Um exemplo de fala típica do Zé:
você já olhou a luz que brilha
nos olhos daquelas mãos
que limpam a tua privada?
nos olhos daquelas mãos
que limpam a tua privada?
já?
e não morreu de paixão?
e não morreu de paixão?
1982
(3) E aí tem o autor de poemas que puxam para o erótico - ou talvez melhor: que falam, de modo mais explícito ou menos, do mundo do desejo e do sexo - às vezes de modo seguro de si e atrevido, às vezes lamentoso pela ausência, pelo não correspondido, etc. Para esse foi adotado já faz algum tempo - por razões que eu conto outro dia - o nome Valdo Valente.
Sobre os poemas do Valdo cabem duas observações: uma, que embora muitos deles possam ser lidos em referência a qualquer variante de Eros, o Valdo pensou a maior parte em relação à variante que lhe ressoa mais fundo, a homoerótica - e muitos dos poemas deixam isso explícito.
Algum problema? Ué, se 129 dos 154 sonetos de Shakespeare falam explicitamente de amor entre dois homens, por que é que eu e o Valdo também não podemos falar? - E se há alguma dúvida entre a propriedade de me comparar a Shakespeare, olha aí se eu não posso...
(A foto é de 1981. A da esquerda... - Mas, brincadeiras à parte, quem não quiser respeitar o Valdo por causa disso, jogue fora junto, além de Shakespeare, todo García Lorca, Mário de Andrade, o próprio Pessoa, Verlaine, Rimbaud, Michelangelo, a filosofia e literatura dos gregos inteira etc etc etc...)
A segunda observação é que só em parte desses poemas é que o Valdo merece seu sobrenome Valente - aquele que vai à luta e até mesmo celebra conquistas. Alguns outros expressam uma espera tão desesperançada e lamentosa que eu desconfio que são do irmão gêmeo do Valdo: o Covaldo.
Tá, mas chega de prosa. Coloco a seguir mais algumas amostras dos três, inclusive do Valdo e do Covaldo de quem ainda não mostrei... coisa nenhuma. Ah, TODOS OS POEMAS PODEM SER REPRODUZIDOS, DESDE QUE COM O NOME CORRETO DO AUTOR E LINK DA FONTE!
E por hoje é isso aí!
Algumas amostras do RALF
* * *
você não conhece a Rose Feijão?
não?!
a mulher do Povo Brasileiro?!
1986
(batendo palmas)
a língua portuguesa
já entrou na menopausa:
não tem mais regras!
não tem mais regras!
1986
* * *
é perigoso, meu pai,
tudo é perigoso!
tudo neste mundo é perigoso.
a curva e a reta
o arco e a seta
e principalmente
o gozo.
é perigoso, meu pai,
tudo é perigoso!
tudo neste mundo é perigoso!
o pão, o leite
o leito, a alta
mas principalmente
a falta.
1993
"em parceria com o Valdo"
"em parceria com o Valdo"
A FORÇA QUE DOMINOU O MUNDO
EUROPEIDOS
1997 rev.2008
ERROS QUE SÃO ACERTOS
restou a esperança
ou a espernaça?
ou a espernaça?
1997 rev.2008
* * *
problemas da juventude?
não acho que a solução seja escó-la
1997 rev.2008
* * *
in
te
lec
tu
alma
1997
VENTOS DA LIBERDADE
cabelos do oriente
fustigaram meu rosto
ao passar do trem
fustigaram meu rosto
ao passar do trem
2006
Da serie Paulistanas,
iniciada em 1982
Da serie Paulistanas,
iniciada em 1982
* * *
qual das realidades é a real? qual
dentre as imagens
a original?
e sobretudo:
entre todos
- qual de mins sou eu?
1985
Algumas amostras do ZÉ
(O primeiro texto é o que deu nascimento ao personagem em 1982. Pretendia ser a introdução a um poema maior, comentando o desaparecimento das Sete Quedas sob as águas da represa de Itaipu, mas foi deixado de lado no ponto em que o próprio Zé ia começar a falar...)
assim falava zé, filho de mané - embora pouco lhe importando isso, pois todos os humanos de alguém são filhos, e não lhe interessava distinguir-se das mulheres e homens todos desse mundo -
assim falava zé, cheio de tristeza pelo pouco sol que agora lhe atingia e de ânsias de uma vez mais voar, acima dos obstáculos do corpo da terra, pra melhor vê-la e melhor apaixonar-se,
cheio de vontade de voar para oeste, sobrevoar cidades onde ‑ sabia ‑ em cada uma haveria um punhado ou pitada ou um só como ele, sempre sonhando vencer o peso do mundo que nos agrilhoa o corpo, sonhando-se tão leves que pudessem entregar de si até a última fibra
ao amor da terra e de sua pele belíssima, à potência dos raios do irmão-mais-velho, à dança dos sóis e planetas, ao abraço noturno e interior do céu-matriz ou pai que nos unifica,
e ao amor assim de cada humano, cada um e todos dos humanos, que trazem cada um dentro de si a terra, os astros e o céu também dançando, cada-um pequeno-mundo,
pois só assim ao se entregar até o seu último terão alguma chance de ganhar-se ou descobrir-se, e de afinar sua dança interna com a dança dos mundos de fora,
o que permitiria um vento morno atravessar suas almas trazendo aromas macios e coloridos, algo assim que sugerisse mesmo até o que fosse ou que pudesse talvez ser o ser feliz.
(ser feliz... ser feliiiiz...)
- dizia o gato -
- dizia o gato -
a senhora já pensou em ser feliz? )
1982
* * *
ser vencedor, pra quê?
se já contemplei até
a sombra dos grãos de pó!
1986
um "haikóide"
um "haikóide"
XPT1
e de Ti, que falarei? e com que nome
que não haja
que não haja
de sangue sido manchado?
roubaram teu nome, meu mestre,
e como escrever-te um poema
de pura luz?
1986
* * *
Grão Cavaleiro da Sagrada Ordem
dos Desordenados
em cidades muradas meu coração não se encaixa
e chácaras cercadas não dão campo a seu galope
ébrio de se escancarar
dos Desordenados
em cidades muradas meu coração não se encaixa
e chácaras cercadas não dão campo a seu galope
ébrio de se escancarar
pra ver as coisas como são.
Rebelde? Bobagem!
Rebelde só se é frente a um padrão
– e quem diz
que é padrão ser prisioneiro?
– e quem diz
que é padrão ser prisioneiro?
Rebelde é na verdade quem tem medo
de seguir o Grande Mandamento
que é ser si mesmo
o seu padrão.
de seguir o Grande Mandamento
que é ser si mesmo
o seu padrão.
Bárbaro,
a esses castigarei brutalmente:
lançarei seus arreios na fogueira
condenando-os a chocante liberdade
sem rótulos nas rotas nem roteiros nas mãos.
a esses castigarei brutalmente:
lançarei seus arreios na fogueira
condenando-os a chocante liberdade
sem rótulos nas rotas nem roteiros nas mãos.
Vinde,
vinde tentar me tosquiar,
e saireis aturdidos
com vossas próprias lãs!
vinde tentar me tosquiar,
e saireis aturdidos
com vossas próprias lãs!
2006
Assinado: ZÉ. Profissão:
robinhoodismo filosófico-pedagógico
selvageria intelectual
Assinado: ZÉ. Profissão:
robinhoodismo filosófico-pedagógico
selvageria intelectual
Amostras do VALDO
* * *
no meu travesseiro
depois de uma viagem
procuro estalagem
encontro teu cheiro.
meu coração salta
de encontro a teu peito
- ó encontro perfeito
do pleno co'a falta!
pressinto tuas partes,
tua pele, teus pelos,
parece-me vê-los,
senti-los, tocar-te...
mas vai-se ligeiro
o estúpido engano:
num corpo de pano,
da alma - nem cheiro!
1987
* * *
queria agora alguma coisa apaixonada
como um beijo em tua boca desdentada
1985
* * *
Quanto mais me calo, mais
te amo
estou dizendo –
e mais desejo
tua ilusória entrega:
sem entrega
e no entanto assim entregue,
intensa,
e, sem paixão embora,
apaixonada mais
que a de apaixonados tantos.
não, não te chamarei,
pois, se importuno,
não seria amor condigno.
então me calarei.
e assim calando
é que te chamo –
pois quanto mais me calo
mais te amo.
1997 -
esse é possivelmente
do CoVALDO
esse é possivelmente
do CoVALDO
* * *
e se tuas mãos me deslizassem peito abaixo
enquanto eu me elevo
e me ancorassem
a ti
– gêmeas colunas,
mistérios gêmeos –
então
de mim se estenderiam asas
de infinito
de mim se estenderiam asas
de infinito
e ao, das alturas,
contemplar teu peito aberto
contemplar teu peito aberto
em mergulho de águia
eu
te romperia o invólucro
eu
te romperia o invólucro
e dentro em teu coração explodiria
repousado
enfim
em ti
em mim
.
sustenta-me, ah!
sustenta meu vôo
e eu te farei
voar
.
1995
POEMA DA FIDELIDADE MAIS ALTA
te quero companheiro de aventuras!
mas
mas
se te pretendes
resposta final e suficiente
a todos os anseios meus -
que aventura restaria no universo, a perseguir?
a todos os anseios meus -
que aventura restaria no universo, a perseguir?
ver novos lugares, novas tardes, novos grãos de areia?
mas que podem eles, quando cada humano,
cada um,
é em si um universo inteiro?
cada um com seus pássaros, seus grãos de areia,
seus pores de sol?
é em si um universo inteiro?
cada um com seus pássaros, seus grãos de areia,
seus pores de sol?
te quero um companheiro investigador de universos! e depois -
depois, cansados e ricos do que vimos e provamos,
cada um na sua expedição,
cairmos rindo nos braços um do outro
e em puro gozo
compartilhar o mais que nos tornamos
depois, cansados e ricos do que vimos e provamos,
cada um na sua expedição,
cairmos rindo nos braços um do outro
e em puro gozo
compartilhar o mais que nos tornamos
(... tanto enquanto dois
como enquanto o um que também somos)
como enquanto o um que também somos)
vai, vai para o mundo, meu amor, e vive mais!
mas volta! pra que eu também possa viver mais
em ti,
mas volta! pra que eu também possa viver mais
em ti,
e em mim,
e em-ti-em-mim-e-em-mim-em-ti!
e em-ti-em-mim-e-em-mim-em-ti!
vai, vai, meu amor!
e vem.
2007
* * *
oi Ralf! gostei muito de tuas poesias.
ResponderExcluirAlias faz muito tempo q gosto de tudo o q vc escreve, e me inspira no meu dia a dia e no meu trabalho.
Nem sei se vc lembra de nós, mas a associação de mulheres aqui do pará, q nasceu qdo lemos a filosofia toda da Trópis, já tem 4 anos e agora somos "legais" (antes tb éramos...)
vou ler as poesias para as meninas. um beijão!
Muito feliz com isso, Antonella! Você nem imagina o quanto!
ResponderExcluirAcho que a necessidade de "desencaixotar" minha poesia surgiu pra contrabalançar o fato de que estava trabalhando só com textos teóricos... E chega uma hora em que o esforço da formulação teórica parece que seca a alma, suga tudo dela, ameaça matar... Aí o trabalho empacou, e deu uma vontade doida de fazer uma temporada mais pelo coração...
E que as DUAS coisas, a teoria & a poesia, possam ser úteis numa situação como a do seu trabalho aí na Amazônia... isso traz uma alegria emocionada que dá um arrepio da cabeça aos pés, rsrs
Então eu agradeço DE CORAÇÃO mesmo que você tenha tido a iniciativa de se manifestar!