Começo por observar que fiz
absoluta questão de não averiguar quê pessoas organizaram o evento, para ficar
claro que me refiro exclusivamente aos fatos objetivos que mencionarei, sem
nenhuma interferência de sentimentos em relações a pessoas e nem mesmo a
instituições - isso apesar de que, devido ao pouco tempo que resido em Vitória,
provavelmente eu não conheço mesmo as pessoas envolvidas.
Também faço questão de dizer que reconheço que não é moleza
organizar um evento desse porte, e sei que eu mesmo não seria capaz!
É, enfim, num tom de 'feedback' amigável e colaborativo que
trago esses dois pontos à baila.
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Não vem de
hoje meu encantamento pela vertente humana e cultural que procede da África -
como pode ser ver no post anterior, sobre um livro meu escrito há 18
anos.
Por isso fiquei extremamente entusiasmado quando soube da
existência da existência de um centro de referência para a cultura afro em
Vitória: o MUCANE - Museu
Capixaba do Negro - e triste
de saber que estava em reforma há tempo.
Aí recebi notícias da festa de reinauguração, na última
quinta-feira, a partir das 19 horas, e coloquei ansioso na minha agenda, com
duas semanas de antecedência. Sabia que, por razões de trabalho e de saúde, não
ia conseguir estar lá às sete, mas não me preocupei: com apresentação
programada de dois grupos musicais - sendo o segundo o Ilê Ayê de Salvador - a
festa havia de ser longa!
Cheguei às oito horas - e encontrei apenas um show na rua. As
portas do museu fechadas. Mas como assim? João nos convida para o seu
aniversário, aparece para abrir a festa e vai embora?
Voltarei ao ponto acima, mas antes falo da segunda
frustração: ao colocar os pés no trecho de rua onde o show acontecia, percebi:
"não posso ficar; não trouxe protetor de ouvido, e talvez nem mesmo o
protetor fosse suficiente".
Explico: talvez
devido ao excesso de volume usual nos shows da minha adolescência, nos anos 70, por volta dos quarenta anos
comecei a ter problemas de audição. Algumas frequências são mal ouvidas,
encobertas por tinidos e chiados, outras soam fortes demais, dando um efeito de
saturação e, com aquele volume, de dor física mesmo. Sendo a música uma das
minhas maiores paixões, a ponto de não ver razão para sobreviver num mundo sem
música, valorizo demais preservar o que restou da audição, e já fui advertido
por especialistas que a exposição a altos volumes é o melhor caminho pra
terminar de perdê-la.
Estou fazendo onda com um assunto exclusivamente
pessoal?
NÃO! Estou falando de um assunto de saúde pública.
E, de quebra, de
educação.
Desde meados dos anos 80 eu nunca havia voltado a encontrar,
em nenhum lugar, os níveis de volume de som que tenho visto em Vitória. Já
é o quarto evento, entre os artísticos e os políticos, que me vejo obrigado a
abandonar por isso. Mas consultem qualquer otorrinolaringologista responsável,
e ele dirá: o ouvido humano - danificado ou normal - não foi feito para tolerar
esses níveis. O dano pode só se tornar perceptível muitos anos depois, mas ele
é garantido.
Como é, então, que o mesmo poder público responsável por
zelar pela saúde dos cidadãos se descuida a ponto de ele mesmo infligir danos
corporais permanentes aos cidadãos sob seus cuidados? Se as secretarias de
saúde ainda não têm especialistas e protocolos de procedimento nessa área, está
na hora de instituir - senão isso é crime de responsabilidade, senhores!
Só não confundam: com isso não estou levando água para o moinho
da perseguição à música em bares - medida totalmente equivocada, no meu ver,
lesiva à vida social, cultural e turística da cidade, e que não costuma incidir
no problema dos níveis de volume de que estou falando. Falo é dos grandes shows
em espaços abertos - mas também de manifestações, eventos políticos e
sindicais, cujos responsáveis também fariam bem em estudar o assunto, pois sua
finalidade última também é o bem da população.
Sei que muitos dirão que "é assim que o povo
gosta", "só assim o povo vem". Não é verdade. Experimentem fazer
eventos com som alto mas não ensurdecedor, e vão ver. Shows são inclusive
momentos de encontro, em que as pessoas também gostam de conversar, e na
reinauguração do MUCANE nem isso era possível a menos de uns 60 metros do
palco. As pessoas se sentem oprimidas no meio disso, e acabam indo embora mais
cedo.
Também nos eventos políticos, não é expressão de democracia
um volume duas ou três vezes superior ao necessário à perfeita compreensão por
todos do que é falado nos microfones: é, pelo contrário, típico das técnicas de
dominação, de subjugação: "não deixo você falar com que está ao lado, não
deixo nem pensar por si: invado sua cabeça com a minha voz até pela vibração dos
ossos". De modo que qualquer instituição que atue de verdade pela democracia e pelo povo faria bem
em rever seus padrões de controle da mesa de som!
Finalmente: tendo trabalhado por muitos anos com jovens de
periferia, percebi que, depois de terem sido levados a experimentar isso, eles
mesmos logo aderiam aos volumes moderados, percebendo que eles permitem
apreciar melhor a música em seus detalhes do que os volumes que provocam
embotamento. Então isso é também uma questão de educação.
E - ah, sim, falando em educação: estranhei muito mesmo que o
museu estivesse fechado ao longo dos shows que comemoravam... sua reabertura!
Seria preciso fechar as portas para preservar os espaços internos, já que esse
tipo de show poderia atrair vândalos ou algo assim?
Circulei por cerca de meia hora entre os presentes (apesar
dos riscos à audição) e não consigo acreditar que isso fosse possível
(mantidas, é claro, as medidas de segurança básicas indispensáveis em espaços e
eventos públicos). E também não quero acreditar que a organização tenha
pensado assim - pois teria sido uma chocante manifestação involuntária de
preconceito internalizado, atuando justo no momento de consagração de um local
destinado ao combate ao preconceito!
Não quero crer que tenha acontecido isso... mas não tenho
como não lembrar da imensa quantidade de material pedagógico que se perde no
Brasil, enviado a escolas mas não repassado aos alunos com a alegação de que
"eles estragam tudo..."
Então
não tenho como não me perguntar se não atuou aqui um outro tipo de preconceito, profundamente
entranhado nos meios pedagógicos e administrativos do nosso país: o que vê a
cultura das ruas, do povo, como uma não-cultura, e vê como cultura apenas
aquilo que for institucionalizado, realizado em espaços fechados e - em última
análise - derivado da cultura das classes dominantes. Escolas seriam espaços
feitos para arrancar crianças e jovens de sua não-cultura (na verdade, de sua
cultura nativa) e imergi-los em outra cultura decretada de cima para baixo.
Quase não há trânsito nem interação entre os saberes e valores das ruas e os
escolares - e é por isso que a escola continua sem
conseguir quase nada: educar alguém não pode ser sinônimo de fazê-lo renegar a
si e aos seus.
A
própria palavra "museu" é impregnada de ressonâncias dessa concepção
de "cultura culta" procedente das classes dominantes - mas é óbvio
que as pessoas capazes de criar e instituir um Museu do Negro estão muito além
dessa forma retrógrada de entender "museu" - senão sequer o teriam
criado!
Mesmo
assim, não há como evitar a pergunta: não terá havido algum traço de
contaminação desse tipo de ideologia na organização desse evento em particular
- esse estranho evento em que se celebrou a reabertura de um espaço fechando-o?
Espero
que este artigo não seja entendido como uma declaração de guerra, e sim - muito
pelo contrário - como a declaração de profundo interesse que é, e de vontade de
contribuir, seja como for, para o máximo sucesso do Museu Capixaba do Negro!
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