Desde as 12:45 de anteontem (14.09.2011) este que vos escreve se encontra na cidade de Vitória, capital do Estado do Espírito Santo.
Bom, isso não chega a ser novidade: desde 1985, esta é a quinta vez que ponho os pés neste chão. Só que desta vez - salvo imprevistos incontroláveis que aposto que não virão - é pra ficar. Por no mínimo 7 anos (há razões não exatamente cabalísticas para isso), talvez por mais. Talvez pelo resto da vida - quem pode dizer?
Em 1957 pousei neste planeta em Curitiba porque meus pais - ambos do interior do Paraná - haviam se conhecido por lá, mas com por volta de um mês já estava morando em Guarapuava - na época, apesar de seus 140 anos, não mais que um pequeno núcleo imerso em poeira ou em lama (dependendo de chover ou bater sol), situada em campos nativos belíssimos porém a 1.100 metros de altitude - quer dizer: varridos quase o tempo todo por um vento gelado cortante - e com uma cultura local não menos cortante, quando não contundente ou perfurante: faca, porrada ou bala, o mais típico far-west. Viver nesse lugar numa casa onde havia livros, Beethoven e Bach - apesar de não pouca porrada também dos pais - foi uma espécie de exercício precoce em dialética.
Vivi em Guarapuava até uns dois meses antes de completar 15 anos, e aí me instalei em Curitiba, em casa de tia & vó, pra tentar achar meus caminhos no mundo civilizado... E, não, não foi uma continuação, uma metamorfose ou desenvolvimento do anterior: foi outra vida. Verdade que houve um fio condutor: uma das duas únicas coisas bonitas que eu havia conhecido até então: música (a outra era a natureza). Na dúvida entre Filosofia, Psicologia e Jornalismo, fiquei mesmo só com o estudo de música, que dois meses antes dos 18 virou ensino de música: meu primeiro emprego, em carteira, professor de música em Santa Catarina (!) (eu ia uma vez por semana, a divisa dos estados é a menos de 100 Km de Curitiba). Eu pensava sinceramente que lidaria com isso pelo resto dos meus dias, frequentava congressos e cursos de Buenos Aires a São João del Rei - mas entre os 21 e 22 essa segunda vida teve um fim. Desmoronou por si mesma, pela incapacidade de equacionar sozinho uma porção de tensões internas, e falta de quem ajudasse a equacionar.
Aí cruzei o pessoal da antroposofia, que me pareceu detentor de possibilidades de síntese entre as diferentes coisas que minha(s) vida(s) já me havia(m) dado a conhecer: natureza & vida no interior, arte & cultura em geral, e um campo entre o filosófico & o místico fazendo a costura entre os dois anteriores. Fui pra Inglaterra estudar agricultura biodinâmica e desenvolvimento rural em perspectiva antroposófica - dois anos no Emerson College - não porque tivesse talentos de agricultor, mas porque entendia que nenhuma cultura seria sustentável sem uma relação saudável com a natureza nesse alicerce da civilização que é a produção dos alimentos. Mas meu objetivo não era ficar no alicerce: a ideia era criar possibilidades de crescimento cultural, de desenvolvimento humano pleno sem precisar abandonar o interior. Ao voltar da Inglaterra passei mais algum tempo em Guarapuava e em Curitiba, temperado com alguns meses de São Paulo, e me instalei em Botucatu, cidade do interior de São Paulo em situação geográfica análoga à de Guarapuava no Paraná - na verdade a 12 Km da cidade, no conjunto de iniciativas de inspiração antroposófica que começava a vicejar em torno da pioneira fazenda Demétria. Também pensava que esta terceira vida seria definitiva, e que a ida para um ano de Alemanha entre os 33 e os 34 anos seria apenas um detalhe da mesma.
O que eu não esperava é que a tentativa de estudar a realidade histórica e social brasileira com o instrumental disponibilizado pela antroposofia terminasse me revelando inconsistências estruturais profundas no corpo dessa proposta de cultura nascida no espaço cultural alemão, que tem uma pretensão de universalidade que é ao mesmo tempo o seu charme e sua fraqueza, pois se mostra insustentável frente a um entendimento efetivamente antropológico das coisas. Enfim, concretamente, aos 35 me vi em São Paulo - a antítese total do interior em que eu havia imaginado trabalhar - trabalhando com cultura no oceano dos jovens da periferia - que é, afinal, onde o povo original do interior já havia ido parar. E essa veio a ser uma quarta vida; a passagem pelas periferias urbanas da Região Metropolitana da Baixada Santista (2002-2007) não foi nenhuma interrupção, mas apenas uma variação dentro do mesmo processo. E foi nessa situação que realizei o que me parece ser um fruto significativo - se há outros não sei, mas esse eu ouso apostar que é: o desenvolvimento das bases e diretrizes de uma Filosofia e Pedagogia do Convívio (sobre as quais já há pelo menos 600 páginas disponíveis em www.tropis.org/biblioteca - embora ainda falte muito para o quadro estar suficientemente completo e organizado).
O "detalhe avassalador" dessa quarta vida foi: sendo atividade prospectiva, experimental, pioneira, nunca encontrei quem estivesse disposto a bancá-la a não ser por períodos curtos. Na maior parte do tempo eu mesmo tive que financiar o trabalho mais importante da minha vida fazendo coisas que julgo de importância menor, como aulas de idiomas e traduções. Uma ou outra vez, é verdade, consegui aprovação de projetos relativos à própria Pedagogia do Convívio, e aí tive que administrá-los - mas administrar não é o mesmo que estar na execução direta da pesquisa-ação. Desse modo, se os 18 anos de 1992 a 2010 foram os interiormente mais enriquecedores da minha vida, exteriormente seu resultado foi o mais completo empobrecimento: aulas, traduções e projetos não deram conta de bancar o custo desses tempos experimentais: também as propriedades que eu havia herdado (não muitas, mas houve) foram vendidas e comidas até o último centavo - em uma mesa onde raramente estavam sentados menos de cinco pessoas, muitas vezes dez ou mais.
Bonita que tenha sido, também essa quarta vida chegou a um limite por si - e o trabalho de parto de uma quinta parece ter começado em outubro de 2010, quando enfiei minhas coisas em duas mochilas - entre elas dois projetos de mestrado - e tentei me mudar para Salvador. Depois de 40 dias, inesquecíveis mas que não trouxeram o ingresso no mestrado desejado, voltei a Curitiba, onde nasci, para encontrar minha mãe, aos 88, numa situação quase tão frágil quanto a minha 53 anos antes. Ficou evidente que precisava ficar lá cuidando daquela situação, mas ainda em dezembro topei assim como que casualmente com o edital de um concurso do governo do Espírito Santo - terra do amigaço que tem sido o companheiro mais presente & leal nos últimos anos.
Resultado: nove meses depois de encontrar o edital (acreditem: nove!) estou nomeado e empossado como um Especialista em Desenvolvimento Humano e Social do Estado do Espírito Santo - um título que tem tanto a ver com tudo o que veio antes que espero que tenha a oportunidade de se realizar de fato, não ficando meramente no nível dos rótulos burocráticos. Como isso se dará no cotidiano concreto, ainda não sei: ainda está para começar. Mas o contraste já por definição com os 20 anos anteriores, de batalhas muitas sem respaldo institucional nenhum, é suficiente para sugerir que começa uma 5.ª vida, nesta 15.ª cidade onde já morei ou trabalhei (bom, pode ser apenas a 12.ª, se contar as 4 da Baixada Santista como uma só...)
Acho que até posso pedir aos amigos que me desejem força, luz & sorte nesse momento, né? ;)
Adorei fazer essa leitura. Seus relatos revelam uma pessoa única, admirável!!Boa sorte, axé, muitas bençãos, bons fluídos, bons frutos!
ResponderExcluirmaria elvira
Rickli,
ResponderExcluirQue delícia de texto!
É bom quando a gente tem a sensação de que tudo o que fez na vida faz um sentido e, enfim, converge a nosso favor, não é? De novo, tudo de muito bom nessa nova fase!