OS JUDEUS (The Jews) - artigo de Gandhi em seu jornal Harijan, 26.11.1938
Texto original em fonte gandhiana oficial: http://bit.ly/aYJI7Q
Nova tradução e notas de Ralf Rickli - 31.05.2010
Recebi diversas cartas pedindo que declare meus pontos-de-vista quanto à questão árabe-judaica na Palestina e quanto à perseguição dos judeus na Alemanha. Não é sem hesitação que me arrisco a oferecer minha visão dessa questão tão difícil. [Nota do Tradutor (NT): é preciso ter em mente que este artigo foi escrito relativamente no começo dessa perseguição, ainda antes do início da II Guerra]
Os judeus têm toda a minha simpatia. Eu os conheci intimamente na África do Sul. Alguns deles vieram a ser companheiros para toda a vida. Através desses amigos eu aprendi muito sobre sua perseguição ao longo de eras. Eles foram os intocáveis do cristianismo: há um paralelo muito próximo entre o seu tratamento pelos cristãos e o tratamento dos intocáveis pelos hindus. Nos dois casos a religião foi invocada para autorizar o tratamento desumano que lhes foi aplicado. Além das amizades existe então essa razão mais comum e universal para que eu tenha simpatia pelos judeus.
Mas minha simpatia não me torna cego às exigências de justiça. O clamor por um lar nacional para os judeus não encontra muita ressonância em mim. Busca-se autorização para ele na Bíblia e na tenacidade com que os judeus têm ansiado por retornar à palestina. Mas por que eles não podem, como outros povos da Terra fazer seu lar aquele país onde nascem e onde ganham a vida?
A Palestina pertence aos árabes no mesmo sentido em que a Inglaterra pertence aos ingleses e a França aos franceses. [NT: esta observação é mais sutil do que parece à primeira vista: Gandhi com certeza sabia que nem os ingleses nem os franceses de hoje foram os primeiros povos a ocupar esses territórios, assim como nem os palestinos de hoje nem os judeus em relação à assim-chamada Palestina]. É errado e desumano impor os judeus aos árabes. O que está acontecendo na Palestina hoje não pode ser justificado por nenhum código de conduta moral. Os mandatos [com que a terra vem sendo ocupada] não têm nenhum fundamento senão os resultados da última [Grande] Guerra. Seria com certeza um crime contra a humanidade subjugar os orgulhosos árabes para que a Palestina pudesse ser parcial ou inteiramente restituída aos judeus como seu lar nacional [NT: na I Guerra a região foi liberada do domínio do Império Otomano (turco), de facto pela atuação dos árabes, porém mantida 'de direito' como mandato britânico pelos tratados internacionais impostos pelas potências ocidentais; o famoso filme Lawrence da Arábia traz contribuições para a compreensão disso].
O caminho mais nobre seria insistir em que os judeus sejam tratados de modo justo onde quer que tenham nascido e sido criados. Os judeus nascidos na França são franceses. Se os judeus não têm outro lar se não a Palestina, será que eles gostarão da idéia de serem forçados a deixar as outras partes do mundo onde estão estabelecidos? Ou eles querem ter dois lares onde possam permanecer à vontade? Esse clamor pelo seu lar nacional oferece uma justificativa plausível para a expulsão dos judeus pelos alemães.
É verdade que a perseguição alemã aos judeus não parece ter paralelo na história. Os tiranos da antigüidade nunca ficaram tão loucos quanto Hitler parece ter ficado. E ele o está fazendo com zelo religioso. Pois está propondo uma nova religião que consiste exclusivamente em nacionalismo militante em nome do qual qualquer desumanidade se torna um ato de humanidade a ser recompensado aqui e no além. O crime que é uma juventude obviamente enlouquecida porém intrépida esta sendo infligido a toda a sua raça com uma ferocidade inacreditável. Se pudesse haver alguma vez uma guerra justificável em nome e em favor da humanidade, seria completamente justificada uma guerra contra a Alemanha para impedir a brutal perseguição a toda uma raça. Mas eu não acredito em nenhuma guerra. Uma discussão dos prós e contras de uma tal guerra se encontra fora dos meus horizontes e território.
Mas se não pode haver guerra contra a Alemanha nem mesmo por causa de um crime tal como vem sendo cometido contra os judeus, aliança com a Alemanha com certeza não pode haver. Como pode haver aliança entre uma nação que alega representar a justiça e a democracia e uma que é inimiga declarada de ambas? Ou a Inglaterra estará se desviando na direção da ditadura armada e de tudo o que isso significa? [NT: Hitler esperou desde sempre contar com a Inglaterra em uma aliança pan-germânica contra os franceses, russos e outros povos - afinal, anglos e saxões são subdivisões dos povos germânicos. Em 1933 fez uma proposta oficial à Inglaterra, que contrapropôs 10 anos de prazo antes de fechar a decisão. Gandhi escrevia precisamente no meio desse período, em que a posição da Inglaterra em relação à Alemanha ainda não estava decidida, o que viria a ocorrer com a declaração de guerra em setembro de 1939]
A Alemanha está mostrando ao mundo com que eficiência a violência pode ser exercida quando não se vê embaraçada por nenhuma hipocrisia ou fraqueza disfarçada de humanitarismo. Está mostrando também o quanto é horrenda, terrível e terrificante quando vista em sua nudez.
É possível aos judeus resistir a essa perseguição organizada e desavergonhada? Haverá modo de preservar seu auto-respeito e não se sentirem impotentes, abandonados e sem esperança? Sugiro que há. Nenhuma pessoa que tem fé em um Deus vivo tem necessidade de se sentir impotente e sem esperança. O Jeová dos judeus é um Deus mais pessoal que o Deus dos cristãos, dos muçulmanos ou dos hindus, embora, na realidade, em essência Ele seja comum a todos, seja um que não tem "segundo", e esteja além da possibilidade de descrição. [NT: durante alguns séculos os não-judeus acreditaram que essa fosse a pronúncia do principal nome divino hebraico, que em sua própria tradição sequer deve ser pronunciado. Gandhi escreve 'Jehovah' apontando para algo que na verdade não se chama assim, mas é suficientemente claro a que quer se referir. Ou seja: a mera inexatidão desse nome não seria um contra-argumento honesto.] Mas como os judeus atribuem personalidade a Deus e acreditam que ele rege cada uma das ações deles, eles não deveriam se sentir impotentes. Se eu fosse um judeu e tivesse nascido na Alemanha e ganhado minha vida lá, eu reclamaria a Alemanha como meu lar tanto quanto o gentios de maior estatura pode reclamar, e o desafiaria a atirar em mim ou a me lançar na masmorra; eu me recusaria a ser expulso ou a me submeter a tratamento discriminatório. E para fazê-lo eu não ficaria à espera de que os companheiros judeus se juntassem a mim em resistência civil mas teria confiança de que os demais terminariam inevitavelmente seguindo o meu exemplo. Se um judeu ou todos aceitassem a prescrição que eu ofereço aqui, ele ou eles não teriam como ficar pior do que estão agora. E o sofrimento voluntário por que viessem a passar lhes traria uma força interior e uma satisfação que não pode ser trazida por nenhuma quantidade de moções de solidariedade aprovadas no mundo fora da Alemanha. Em realidade, mesmo se a Grã-Bretanha, a França e a América declararem guerra à Alemanha, isso não poderá trazer nenhuma satisfação e nenhuma força interior. A violência calculada de Hitler pode até mesmo resultar em um massacre geral dos judeus como primeira resposta à uma tal declaração de hostilidades. Mas se a mente judaica pudesse se preparar para sofrer voluntariamente, até mesmo o massacre que eu imaginei poderia ser transformado em um dia de ação de graças e alegria porque Jeová operou o livramento da raça mesmo nas mãos do tirano. Para o temente a Deus não há terror na morte. É um sono alegre a que deve se seguir um despertar tão mais revigorante quanto tiver sido longo o sono.
Nem me deveria ser necessário apontar que para os judeus está mais fácil seguir minha prescrição do que está para os tchecos. E eles têm um paralelo exato na satyagraha dos indianos na África do Sul [NT: satyagraha, "força da verdade", era a palavra usada por Gandhi para os atos e campanhas de resistência não-violenta que liderava e cujas estratégias desenvolveu]. Lá os indianos ocupavam precisamente o mesmo lugar que os judeus ocupam na Alemanha. O presidente Kruger costumava dizer que os cristãos brancos eram os escolhidos de Deus e que os indianos eram seres inferiores criados para servir aos brancos. Uma cláusula fundamental da Constituição do Transvaal era a de que não devia haver igualdade entre os brancos e as raças de cor, incluindo os asiáticos. Também lá havia guetos descritos como alojamentos nos quais os indianos eram confinados. As outras limitações eram quase do mesmo tipo que as dos judeus na Alemanha. Os indianos, não mais que um punhado, recorreram à satyagraha sem nenhum suporte do mundo exterior nem do governo da Índia. Na verdade os funcionários britânicos tentaram dissuadir os satyagrahis do passo que tinham em vista. A opinião mundial e o governo da Índia vieram em seu auxílio depois de oito anos de luta. E também isso se deu por meio de pressão diplomática e não por ameaça de guerra.
Mas os judeus da Alemanha podem oferecer uma satyagraha [resistência não-violenta] com auspícios infinitamente melhores que os indianos da África do Sul. Os judeus na Alemanha são uma comunidade compacta, homogênea. Estão de longe melhor dotados que os indianos da África do Sul. E tem uma opinião mundial organizada por trás de si. Estou convencido de que se alguém com coragem e visão puder se levantar dentre eles para liderá-los em ação não-violenta, em um piscar de olhos o inverno do seu desespero poderá ser transformado no verão da esperança. E aquilo que hoje se tornou uma caçada humana degradante pode se tornar numa resistência serena e determinada oferecida por homens e mulheres desarmados possuidores da força do sofrimento, concedida a eles por Jeová. Será então uma resistência verdadeiramente religiosa oferecida contra a fúria desdivinizada de homens desumanizados. Os judeus alemães terão marcado uma vitória perene sobre os gentios alemães no sentido de que terão convertido estes últimos a uma valorização da dignidade humana. Terão prestado um serviço aos seus camaradas alemães e provado seu direito de serem os verdadeiros alemães, em contraste com aqueles que hoje, mesmo sem entender, estão arrastando o nome "alemão" para o lodaçal.
E agora uma palavra sobre os judeus na Palestina. Eu não tenho nenhuma dúvida de que eles estão lidando com a questão de maneira errada. A Palestina em sua concepção bíblica não é uma área geográfica: está nos seus corações. Mas se eles precisam buscar a Palestina da geografia como seu lar nacional, está errado entrar nela sob a sombra do fuzil britânico. Um ato religioso não pode ser realizado com ajuda de baioneta ou de bomba. O único modo pelo qual eles podem se estabelecer na Palestina é pela boa-vontade dos árabes. Eles deveriam buscar converter o coração árabe. O Deus que rege o coração árabe é o mesmo que rege o coração judeu. Eles podem apresentar satyagraha diante dos árabes oferecendo-se a serem alvejados ou lançados no Mar Morto sem levantar um único dedo contra eles. Eles encontrarão a opinião mundial a favor de sua aspiração religiosa. Há centenas de modos de dialogar com os árabes, se eles apenas descartarem a ajuda da baioneta britânica. Do modo como está acontecendo, os judeus são co-autores, com os britânicos, na espoliação de um povo que não fez nada de errado contra eles.
Não estou defendendo os excessos dos árabes. Eu gostaria que eles tivessem escolhido o caminho da não-violência para resistir ao que consideraram corretamente uma intrusão indefensável na sua terra. Mas de acordo com os padrões aceitos de certo e errado, nada pode ser dito contra a resistência oferecida pelos árabes em face de uma desvantagem esmagadora.
Que os judeus que alegam ser a raça escolhida provem essa sua qualidade escolhendo o caminho da não-violência para defender a sua posição na Terra. Todo e qualquer país é seu lar, inclusive a Palestina, mas não mediante agressão e sim mediante a prestação de serviço com amor. Um amigo judeu me mandou um livro chamado 'A Contribuição Judaica à Civilização', de Cecil Roth. Ele oferece um registro do que judeus fizeram para enriquecer o mundo nos campos da literatura, arte, música, teatro, ciência, medicina, agricultura etc. Havendo determinação de vontade, o judeu pode se recusar a ser tratado como o pária do Ocidente, ser desprezado ou tratado como inferior. Pode conquistar a atenção e respeito do mundo sendo "homem, criatura escolhida de Deus" em lugar de ser "homem que afunda rapidamente para o nível do animalesco e rejeitado por Deus". Às suas muitas contribuições, eles podem ajuntar a que vai além de todas, a da ação não-violenta.
Resposta de Gandhi a uma pergunta da United Press of America
sobre a questão Palestina, no jornal The Bombay Chronicle, June 2, 1947
Texto original em fonte gandhiana oficial: http://bit.ly/b1scZa
Tradução de Ralf Rickli - 31.05.2010
Qual o senhor acha que é a solução mais aceitável para a problemática da Palestina?
- O abandono, inteiramente por parte dos judeus, do terrorismo e outras formas de violência.
Observação final do tradutor: esta resposta é o último dos seis pronunciamentos feitos por Gandhi sobre a questão judaica após a II Grande Guerra, listados e reproduzidos em site oficial. Cinco meses depois (29.11.1947) a ONU aprovava a divisão da Palestina em um estado judeu e outro árabe, o que não foi aceito pelos árabes e deu início imediato a 15 meses de guerra. Israel proclamou sua existência como Estado em 14.05.1948, em meio a essa guerra. Gandhi havia sido assassinado em 30 de janeiro do mesmo ano - ao que consta por razões não relacionadas a estas.
Tem-se usado a expressão "o total abandono" na tradução dessa resposta, mas a formução em inglês é: "The abandonment wholly by the Jews of terrorism and other forms of violence". A posição e a forma adverbial, não adjetiva, de 'wholly' apontam inequivocamente para um sentido muito mais radical: "a responsabilidade pela solução está inteiramente na mão dos judeus; se eles tomarem a iniciativa de abandonar integralmente o terrorismo e outras formas de violência [e, conhecendo-se Gandhi, isso significa: sem imporem condições ou exigirem garantias prévias para isso], a situação se encaminhará para uma solução".
Texto original em fonte gandhiana oficial: http://bit.ly/aYJI7Q
Nova tradução e notas de Ralf Rickli - 31.05.2010
Recebi diversas cartas pedindo que declare meus pontos-de-vista quanto à questão árabe-judaica na Palestina e quanto à perseguição dos judeus na Alemanha. Não é sem hesitação que me arrisco a oferecer minha visão dessa questão tão difícil. [Nota do Tradutor (NT): é preciso ter em mente que este artigo foi escrito relativamente no começo dessa perseguição, ainda antes do início da II Guerra]
Os judeus têm toda a minha simpatia. Eu os conheci intimamente na África do Sul. Alguns deles vieram a ser companheiros para toda a vida. Através desses amigos eu aprendi muito sobre sua perseguição ao longo de eras. Eles foram os intocáveis do cristianismo: há um paralelo muito próximo entre o seu tratamento pelos cristãos e o tratamento dos intocáveis pelos hindus. Nos dois casos a religião foi invocada para autorizar o tratamento desumano que lhes foi aplicado. Além das amizades existe então essa razão mais comum e universal para que eu tenha simpatia pelos judeus.
Mas minha simpatia não me torna cego às exigências de justiça. O clamor por um lar nacional para os judeus não encontra muita ressonância em mim. Busca-se autorização para ele na Bíblia e na tenacidade com que os judeus têm ansiado por retornar à palestina. Mas por que eles não podem, como outros povos da Terra fazer seu lar aquele país onde nascem e onde ganham a vida?
A Palestina pertence aos árabes no mesmo sentido em que a Inglaterra pertence aos ingleses e a França aos franceses. [NT: esta observação é mais sutil do que parece à primeira vista: Gandhi com certeza sabia que nem os ingleses nem os franceses de hoje foram os primeiros povos a ocupar esses territórios, assim como nem os palestinos de hoje nem os judeus em relação à assim-chamada Palestina]. É errado e desumano impor os judeus aos árabes. O que está acontecendo na Palestina hoje não pode ser justificado por nenhum código de conduta moral. Os mandatos [com que a terra vem sendo ocupada] não têm nenhum fundamento senão os resultados da última [Grande] Guerra. Seria com certeza um crime contra a humanidade subjugar os orgulhosos árabes para que a Palestina pudesse ser parcial ou inteiramente restituída aos judeus como seu lar nacional [NT: na I Guerra a região foi liberada do domínio do Império Otomano (turco), de facto pela atuação dos árabes, porém mantida 'de direito' como mandato britânico pelos tratados internacionais impostos pelas potências ocidentais; o famoso filme Lawrence da Arábia traz contribuições para a compreensão disso].
O caminho mais nobre seria insistir em que os judeus sejam tratados de modo justo onde quer que tenham nascido e sido criados. Os judeus nascidos na França são franceses. Se os judeus não têm outro lar se não a Palestina, será que eles gostarão da idéia de serem forçados a deixar as outras partes do mundo onde estão estabelecidos? Ou eles querem ter dois lares onde possam permanecer à vontade? Esse clamor pelo seu lar nacional oferece uma justificativa plausível para a expulsão dos judeus pelos alemães.
É verdade que a perseguição alemã aos judeus não parece ter paralelo na história. Os tiranos da antigüidade nunca ficaram tão loucos quanto Hitler parece ter ficado. E ele o está fazendo com zelo religioso. Pois está propondo uma nova religião que consiste exclusivamente em nacionalismo militante em nome do qual qualquer desumanidade se torna um ato de humanidade a ser recompensado aqui e no além. O crime que é uma juventude obviamente enlouquecida porém intrépida esta sendo infligido a toda a sua raça com uma ferocidade inacreditável. Se pudesse haver alguma vez uma guerra justificável em nome e em favor da humanidade, seria completamente justificada uma guerra contra a Alemanha para impedir a brutal perseguição a toda uma raça. Mas eu não acredito em nenhuma guerra. Uma discussão dos prós e contras de uma tal guerra se encontra fora dos meus horizontes e território.
Mas se não pode haver guerra contra a Alemanha nem mesmo por causa de um crime tal como vem sendo cometido contra os judeus, aliança com a Alemanha com certeza não pode haver. Como pode haver aliança entre uma nação que alega representar a justiça e a democracia e uma que é inimiga declarada de ambas? Ou a Inglaterra estará se desviando na direção da ditadura armada e de tudo o que isso significa? [NT: Hitler esperou desde sempre contar com a Inglaterra em uma aliança pan-germânica contra os franceses, russos e outros povos - afinal, anglos e saxões são subdivisões dos povos germânicos. Em 1933 fez uma proposta oficial à Inglaterra, que contrapropôs 10 anos de prazo antes de fechar a decisão. Gandhi escrevia precisamente no meio desse período, em que a posição da Inglaterra em relação à Alemanha ainda não estava decidida, o que viria a ocorrer com a declaração de guerra em setembro de 1939]
A Alemanha está mostrando ao mundo com que eficiência a violência pode ser exercida quando não se vê embaraçada por nenhuma hipocrisia ou fraqueza disfarçada de humanitarismo. Está mostrando também o quanto é horrenda, terrível e terrificante quando vista em sua nudez.
É possível aos judeus resistir a essa perseguição organizada e desavergonhada? Haverá modo de preservar seu auto-respeito e não se sentirem impotentes, abandonados e sem esperança? Sugiro que há. Nenhuma pessoa que tem fé em um Deus vivo tem necessidade de se sentir impotente e sem esperança. O Jeová dos judeus é um Deus mais pessoal que o Deus dos cristãos, dos muçulmanos ou dos hindus, embora, na realidade, em essência Ele seja comum a todos, seja um que não tem "segundo", e esteja além da possibilidade de descrição. [NT: durante alguns séculos os não-judeus acreditaram que essa fosse a pronúncia do principal nome divino hebraico, que em sua própria tradição sequer deve ser pronunciado. Gandhi escreve 'Jehovah' apontando para algo que na verdade não se chama assim, mas é suficientemente claro a que quer se referir. Ou seja: a mera inexatidão desse nome não seria um contra-argumento honesto.] Mas como os judeus atribuem personalidade a Deus e acreditam que ele rege cada uma das ações deles, eles não deveriam se sentir impotentes. Se eu fosse um judeu e tivesse nascido na Alemanha e ganhado minha vida lá, eu reclamaria a Alemanha como meu lar tanto quanto o gentios de maior estatura pode reclamar, e o desafiaria a atirar em mim ou a me lançar na masmorra; eu me recusaria a ser expulso ou a me submeter a tratamento discriminatório. E para fazê-lo eu não ficaria à espera de que os companheiros judeus se juntassem a mim em resistência civil mas teria confiança de que os demais terminariam inevitavelmente seguindo o meu exemplo. Se um judeu ou todos aceitassem a prescrição que eu ofereço aqui, ele ou eles não teriam como ficar pior do que estão agora. E o sofrimento voluntário por que viessem a passar lhes traria uma força interior e uma satisfação que não pode ser trazida por nenhuma quantidade de moções de solidariedade aprovadas no mundo fora da Alemanha. Em realidade, mesmo se a Grã-Bretanha, a França e a América declararem guerra à Alemanha, isso não poderá trazer nenhuma satisfação e nenhuma força interior. A violência calculada de Hitler pode até mesmo resultar em um massacre geral dos judeus como primeira resposta à uma tal declaração de hostilidades. Mas se a mente judaica pudesse se preparar para sofrer voluntariamente, até mesmo o massacre que eu imaginei poderia ser transformado em um dia de ação de graças e alegria porque Jeová operou o livramento da raça mesmo nas mãos do tirano. Para o temente a Deus não há terror na morte. É um sono alegre a que deve se seguir um despertar tão mais revigorante quanto tiver sido longo o sono.
Nem me deveria ser necessário apontar que para os judeus está mais fácil seguir minha prescrição do que está para os tchecos. E eles têm um paralelo exato na satyagraha dos indianos na África do Sul [NT: satyagraha, "força da verdade", era a palavra usada por Gandhi para os atos e campanhas de resistência não-violenta que liderava e cujas estratégias desenvolveu]. Lá os indianos ocupavam precisamente o mesmo lugar que os judeus ocupam na Alemanha. O presidente Kruger costumava dizer que os cristãos brancos eram os escolhidos de Deus e que os indianos eram seres inferiores criados para servir aos brancos. Uma cláusula fundamental da Constituição do Transvaal era a de que não devia haver igualdade entre os brancos e as raças de cor, incluindo os asiáticos. Também lá havia guetos descritos como alojamentos nos quais os indianos eram confinados. As outras limitações eram quase do mesmo tipo que as dos judeus na Alemanha. Os indianos, não mais que um punhado, recorreram à satyagraha sem nenhum suporte do mundo exterior nem do governo da Índia. Na verdade os funcionários britânicos tentaram dissuadir os satyagrahis do passo que tinham em vista. A opinião mundial e o governo da Índia vieram em seu auxílio depois de oito anos de luta. E também isso se deu por meio de pressão diplomática e não por ameaça de guerra.
Mas os judeus da Alemanha podem oferecer uma satyagraha [resistência não-violenta] com auspícios infinitamente melhores que os indianos da África do Sul. Os judeus na Alemanha são uma comunidade compacta, homogênea. Estão de longe melhor dotados que os indianos da África do Sul. E tem uma opinião mundial organizada por trás de si. Estou convencido de que se alguém com coragem e visão puder se levantar dentre eles para liderá-los em ação não-violenta, em um piscar de olhos o inverno do seu desespero poderá ser transformado no verão da esperança. E aquilo que hoje se tornou uma caçada humana degradante pode se tornar numa resistência serena e determinada oferecida por homens e mulheres desarmados possuidores da força do sofrimento, concedida a eles por Jeová. Será então uma resistência verdadeiramente religiosa oferecida contra a fúria desdivinizada de homens desumanizados. Os judeus alemães terão marcado uma vitória perene sobre os gentios alemães no sentido de que terão convertido estes últimos a uma valorização da dignidade humana. Terão prestado um serviço aos seus camaradas alemães e provado seu direito de serem os verdadeiros alemães, em contraste com aqueles que hoje, mesmo sem entender, estão arrastando o nome "alemão" para o lodaçal.
E agora uma palavra sobre os judeus na Palestina. Eu não tenho nenhuma dúvida de que eles estão lidando com a questão de maneira errada. A Palestina em sua concepção bíblica não é uma área geográfica: está nos seus corações. Mas se eles precisam buscar a Palestina da geografia como seu lar nacional, está errado entrar nela sob a sombra do fuzil britânico. Um ato religioso não pode ser realizado com ajuda de baioneta ou de bomba. O único modo pelo qual eles podem se estabelecer na Palestina é pela boa-vontade dos árabes. Eles deveriam buscar converter o coração árabe. O Deus que rege o coração árabe é o mesmo que rege o coração judeu. Eles podem apresentar satyagraha diante dos árabes oferecendo-se a serem alvejados ou lançados no Mar Morto sem levantar um único dedo contra eles. Eles encontrarão a opinião mundial a favor de sua aspiração religiosa. Há centenas de modos de dialogar com os árabes, se eles apenas descartarem a ajuda da baioneta britânica. Do modo como está acontecendo, os judeus são co-autores, com os britânicos, na espoliação de um povo que não fez nada de errado contra eles.
Não estou defendendo os excessos dos árabes. Eu gostaria que eles tivessem escolhido o caminho da não-violência para resistir ao que consideraram corretamente uma intrusão indefensável na sua terra. Mas de acordo com os padrões aceitos de certo e errado, nada pode ser dito contra a resistência oferecida pelos árabes em face de uma desvantagem esmagadora.
Que os judeus que alegam ser a raça escolhida provem essa sua qualidade escolhendo o caminho da não-violência para defender a sua posição na Terra. Todo e qualquer país é seu lar, inclusive a Palestina, mas não mediante agressão e sim mediante a prestação de serviço com amor. Um amigo judeu me mandou um livro chamado 'A Contribuição Judaica à Civilização', de Cecil Roth. Ele oferece um registro do que judeus fizeram para enriquecer o mundo nos campos da literatura, arte, música, teatro, ciência, medicina, agricultura etc. Havendo determinação de vontade, o judeu pode se recusar a ser tratado como o pária do Ocidente, ser desprezado ou tratado como inferior. Pode conquistar a atenção e respeito do mundo sendo "homem, criatura escolhida de Deus" em lugar de ser "homem que afunda rapidamente para o nível do animalesco e rejeitado por Deus". Às suas muitas contribuições, eles podem ajuntar a que vai além de todas, a da ação não-violenta.
Segaon, 20 de novembro de 1938.
Resposta de Gandhi a uma pergunta da United Press of America
sobre a questão Palestina, no jornal The Bombay Chronicle, June 2, 1947
Texto original em fonte gandhiana oficial: http://bit.ly/b1scZa
Tradução de Ralf Rickli - 31.05.2010
Qual o senhor acha que é a solução mais aceitável para a problemática da Palestina?
- O abandono, inteiramente por parte dos judeus, do terrorismo e outras formas de violência.
Observação final do tradutor: esta resposta é o último dos seis pronunciamentos feitos por Gandhi sobre a questão judaica após a II Grande Guerra, listados e reproduzidos em site oficial. Cinco meses depois (29.11.1947) a ONU aprovava a divisão da Palestina em um estado judeu e outro árabe, o que não foi aceito pelos árabes e deu início imediato a 15 meses de guerra. Israel proclamou sua existência como Estado em 14.05.1948, em meio a essa guerra. Gandhi havia sido assassinado em 30 de janeiro do mesmo ano - ao que consta por razões não relacionadas a estas.
Tem-se usado a expressão "o total abandono" na tradução dessa resposta, mas a formução em inglês é: "The abandonment wholly by the Jews of terrorism and other forms of violence". A posição e a forma adverbial, não adjetiva, de 'wholly' apontam inequivocamente para um sentido muito mais radical: "a responsabilidade pela solução está inteiramente na mão dos judeus; se eles tomarem a iniciativa de abandonar integralmente o terrorismo e outras formas de violência [e, conhecendo-se Gandhi, isso significa: sem imporem condições ou exigirem garantias prévias para isso], a situação se encaminhará para uma solução".
É incrível o Ghandi! E isso que foi escrito en 1938...parece que tudo continua igual ou pior.
ResponderExcluirBoa traduçao.
;)
Bárbaro, Ralf
ResponderExcluirobrigada por traduzir isto
Mais uma para minha admiração à Gandhi. Se naquele período assim fosse feito, muita desumanidade teria sido evitada.
ResponderExcluirObrigada pela tradução, pela contribuição.