Acredite nos que buscam a verdade... Duvide dos que encontraram! (A.Gide)

27 junho 2010

A CORUJA E O CHOPIM (uma historinha de 1990, ou então: "algumas coisinhas que eu já tinha aprendido 20 anos atrás"...)


NOTA NÃO SEM IMPORTÂNCIA: Ser chopim é um papel social específico entre os bichos. Por um acaso, os chopins de penas tem estas de cor preta - mas existe uma infinidade de pássaros de penas pretas que não são chopins. Por outro lado, entre os chopins sem penas, as cores são as mais variadas; nunca notei nenhuma relação significativa entre o comportamento chopinesco e algum tipo de cor em particular.
Era uma vez uma corujinha um tanto inconformada com a vocação ou fama das corujas. Estava farta dessa história de serem procuradas pelos outros bichos quando tinham dúvidas a esclarecer, problemas a resolver, e em seguida serem deixadas de lado. Sozinhas.
 
– Os bichos parecem ter medo de nós... Nem desconfiam que a gente às vezes também gosta de companhia, de diversão, de falar bobagem como todo mundo. E que sentimos falta de... carinho! E que falta!
 
De fato, as corujas suas colegas, na maior parte, não conseguiam desvestir uma certa solenidade, entregar-se relaxadamente a um carinho – nem mesmo ao terminar um brilhante discurso em favor da descontração e do carinho. Tinham chegado teoricamente à conclusão de sua importância, mas não sabiam como começar. Iriam sentir-se ridículas.
 
– Isso é um círculo vicioso! Vou é procurar a companhia de outros pássaros. Tico-ticos são tão alegres, que me importa se têm cérebro de tico-tico! E os sabiás, como cantam! E como se divertem os chopins!
 
A bem da verdade, devemos esclarecer que nossa corujinha não era ignorante ou preguiçosa de enfrentar o mundo do saber: ao contrário, relativamente jovem ainda, costumava espantar as corujas mais velhas (que lhe entendiam melhor), e tinha de conter-se ao conversar com as de sua idade, geralmente mais versadas do que ela em alguma especialidade, mas incapazes de acompanhá-la em seus ousados vôos transdisciplinares.
 
Isso a fazia confrontar uma imagem de velhice precoce que a irritava muito,
e ela resolveu “mudar-se da casa dos eruditos, e bater a porta ao sair.” (Como boa intelectual, lá por dentro apoiava sua decisão numa espécie de nota de rodapé do pensamento: “No dizer de Nietzsche, citado por Rubem Alves em Conversas com quem gosta de ensinar, que acabamos de reler.”)
 
Foi direto a um conhecido e barulhento galho-bar. Por um instante estremeceu antes de entrar: “vão perceber que não sou habituée”. Mas aí lembrou ter lido que o álcool nivela tudo. Por via das dúvidas invocou a palavra “nonchalance”, estufou o peito, e foi direto até o balcão.
 
– Vê uma purinha aí pra mim, ô meu. – Sentiu-se ótima falando assim. Naturalmente os habitués e garçons estranharam um pouco, mas ela evitou olhar em torno até sentir, na terceira dose, que estava pronta.
 
Ora, a menos que o leitor também esteja bêbado não vai agüentar descrição detalhada dos papos & acontecimentos daquela noite. Basta dizer que logo – ela não lembra como – se viu sentada numa mesa cheia de velhos conhecidos nunca antes vistos. Não era ignorante de artes teatrais, e conseguiu certo sucesso soltando piadas que passaram por novas – é que tinham sido ouvidas há dez, quinze anos, e ela não sabia esquecer.
 
Lá pelas tantas um anu lhe perguntou: – Mas e aí, dona Coruja, conta aí pra nós o que foi que aprendeu lá nos livros, nos seus estudos... Não me leve a mal, eu sou uma ave ignorante, a senhora sabe, mas sou curioso, gosto de perguntar. Conta aí o que aprendeu!
 
– Pois estudando as mais antigas e sagradas escrituras – respondeu com bêbada solenidade lembrando a citação do Eclesiastes que
“acabara de reler em Rubem Alves, op.cit.” – o que aprendi foi o seguinte: no muito saber há enfado, e quem aumenta ciência aumenta tristeza.
 
Olhou em torno, mas não sentiu nem sinal do sucesso que essa frase teria causado entre suas colegas. Sentiu até uma certa decepção, como se de fato esperassem alguma coisa dela, alguma coisa real. Mas como, se real era justamente o que lhe faltava? Não deixou passar mais um instante e completou com outra citação da literatura bíblica: – E que
o vinho alegra o coração do homem. Garçom, traz mais! Traz pra todo mundo. É por minha conta!
 
Foi o bastante: se havia outra expectativa, foi esquecida, e a corujinha foi eleita a uma vez “membra” honorária da turma e rainha daquela noite.
 
 
Mais tarde saíram por aí, ainda em bando, e logo se aproximou da corujinha um chopim. Ela estremeceu: tinha passado a noite com os olhos naquela gracinha de chopim, franguinho ainda, do outro lado da mesa. Tinha tido a impressão de que ele, que quase não tinha falado, às vezes também olhava pra ela, mas achava absurdo pensar que um tão jovem e desejável passarinho desse bola pra uma coruja, e já algo madura. Ainda não sabia que há bichos atraídos pelo aspecto de experiência e sabedoria, mesmo que não lá muito pelo conteúdo das mesmas.
 
Enfim: papo vai, papo vem, terminaram a noite na toca da coruja. Do alto de uma sensação de glória ela só se perguntava: “não sei por que é que esperei tanto pra cair na real!
 
 
Não podemos dizer que não durou, o caso de nossa corujinha e do franguinho de chopim: este, relatando sérias incompatibilidades familiares (ainda mais que chopim costuma sair do ovo em ninhos dos passarinhos mais inesperados!) pediu licença e trouxe as malas para a toca. A coruja ficou muito feliz: da noite para o dia sentia sua vida cheia, rica, divertida... Às vezes estranhava alguma coisa, mas achava que, enfim, era tudo uma questão de tempo, era o aprendizado das regras de uma nova vida, muito mais interessante.
 
Uma ou outra vez alguma atitude do chopim chegava mesmo a chocá-la. Não estava convencida, por exemplo, que dividir a comida por igual fosse um refinamento decadente de sua classe, e se incomodava ao vê-lo encher o prato sem lembrar dos outros. Mas era só ele vir com aquele biquinho pra um cafuné e ela se desmanchava, esquecia tudo.
 
 
Com o tempo começou a descobrir que não desprezava tudo na antiga vida de coruja. Às vezes se pegava entediada no meio da conversa do bar, ou dos chopinzinhos que vinham à sua toca visitar o amigo. Às vezes sentia - estranho! - vontade de discutir algum assunto mais erudito, um pouquinho só... Começou a convidar de vez em quando antigas companheiras. Escolhia as mais ousadas, que não se chocassem com seu caso chopinal, e até soubessem, de um modo ou de outro, apreciá-lo. Ele até que se esforçava: falava pouco, às vezes conseguia dizer alguma coisa sobre um livro que estivesse tentando ler – dava seus foras, é verdade, mas as amigas da coruja eram educadíssimas e consertavam as coisas disfarçadamente, ou fingiam não ver.
 
Depois de algumas vezes também ele não escondia seu tédio, e aí combinaram que não iam fazer tudo juntos: que às vezes ela receberia corujas em casa e ele encontraria os amigos no bar. E algumas vezes funcionou.
 
Mas de repente ele achou injusto ter de sair. Afinal, morava ali ou não morava? E começou a entrar e sair no meio dos encontros de corujas, trazer todo mundo pra lá. A corujada de início até se divertia, mas dali a pouco também se entediavam e, ao verem que toda a comida oferecida era devorada pela chopinzada, começaram a pensar duas vezes antes de visitar a extravagante amiga -
 
... a qual, dessa vez, resolveu reclamar quando se viu sozinha com o chopim. Mas quem disse que este estava com paciência? – Qualé, coruja velha, vai querer regular, agora? – e saiu, jogando-a pra um canto com força bastante pra machucar. Coruja é mais forte que chopim, mas nossa amiga teria achado uma indignidade reagir.
 
“Acho que não dá mais”, ficou pensando sozinha. Mas à medida que a noite avançava e ela relembrava a toca de antes, fria e solitária, perdia toda a coragem de terminar. Lembrava aquelas peninhas pretas, aquele cheirinho de passarinho jovem... e quando afinal o chopim chegou, de madrugada, batendo porta, foi ela quem foi encorujar-se em suas asas e pedir perdão.
 
 
E assim continuaram as coisas. Decidida a não perder o chopim, a coruja passou a investir mais e mais em divertimento e mesa farta. Voltou a pagar rodadas de bar. Em casa muitas vezes observava que já tinham avançado no estoque de inverno, e ainda mal era outono. Pensava às vezes em dar um toque, mas dizia a si mesma “deixe de ser careta! A fábula da Cigarra e da Formiga não passa de uma história capitalista, uma pedagogia da exploração! O negócio é viver o momento, essa moçada tem razão.”
 
Uma ou outra vez chegou a falar de sua preocupação ao chopim – e uma e outra vez saiu arranhada e bicada, de novo sem querer reagir. Pras amigas arranjava alguma desculpa pros machucados, sentia-se meio ridícula, mas não ousava tomar atitude. “Ainda mais que aí vem o inverno, e será tão bom ter o calorzinho do meu chopim...”
 
Mas... justo ao começar o inverno é que estourou a bomba: de repente, a despensa vazia, não havia mais como disfarçar. E a coruja apresentou ao chopim não mais uma previsão, mas um fato consumado.
 
– Bom – reagiu o  passarinho – acho que o melhor que se tem a fazer é ir procurar outros ares. Há lugares onde ainda é verão.
 
– Mas não vai ser difícil a gente começar vida nova, do zero, em outro lugar?
 
– A gente? Por que a gente? Em época de dificuldade é melhor cada um se virar por si. Eu já estou pronto, falô?
 
– Mas, peraí: eu não posso deixar assim minha toca, não tenho muita coisa, mas, sabe como é, esses livros, os desenhos originais de artistas amigos, seria loucura deixar e...
 
– Isso é problema seu! – largou o chopim já virando as costas e disparando pelos ares.
 
 
Não é preciso dizer que foi um duro inverno, o que nossa amiga passou. Na carta em que me contou suas aventuras e desventuras, ela diz ter chegado a duas conclusões – ou melhor: a uma conclusão e uma não-conclusão:
 
“Primeiro”, diz ela, “podem dizer que A Cigarra e a Formiga é uma fábula careta, mas o inverno existe. É frio e dói. Se você, ao contrário das cigarras, é um ser que vive mais de um ano, tem que fazer alguma coisa a respeito. Não precisa fazer como formigas, que acumulam mais do que precisam, e por isso se multiplicam tanto que infernizam o resto do mundo. Mas alguma coisa tem que fazer.
 
“Escrever livros dizendo que o inverno não existe, isso, meu amigo, só fazem os que estão bem abrigados.
 
“Segundo, a não-conclusão: minhas amigas dizem que nunca dá certo, caso de coruja com chopim. Que é sempre assim. Eu não sei. Cientificamente tudo que posso dizer é que esse chopim não deu certo. E que não é prudente trazer chopim pra casa antes de conhecer melhor.
 
“Mas sou uma coruja teimosa: já imaginou se consigo provar, contra todas elas, que é possível a felicidade conjunta de uma coruja e de um chopim? Agora, meu amigo, com licença, acabo de ver uma gracinha pousar no galho ali do lado.”
 
(E eu, o que posso fazer além de, cientificamente, esperar pra ver?)
 
Ralf Rickli • Botucatu, 1990
Publicado anteriormente em Duas Histórias de Corujas
São Paulo: Trópis, 1998

Fw: O Jeito Paulista de Fazer Política

 
ÓTIMO, Giva!  Estou reenviando a outras listas, então me permita aproveitar e repostar aqui um pouco reformatado, pois merece ser bastante lido, e a maior parte se acovarda rápido diante de um Times New Roman 10 :-D .  Abraços & bom domingo!   (Ralf)

O jeito paulista de fazer política
Por RUDÁ RICCI • 27/06/2010, 10:30


http://rudaricci.blogspot.com/2010/06/artigo-da-semana-o-jeito-paulista-de.html

Se o jeito mineiro de fazer política é o mais português e feminino de todo o país, o jeito paulista é o mais norte-americano e masculinizado. O desastre atual do modo serrista de conduzir a campanha e definir o nome de seu parceiro de chapa é a expressão mais acabada do político paulista. Como sou paulista migrante, que vive em Minas Gerais, tenho um olhar caolho sobre a política dos dois Estados. Com este olhar que mira um com parte da visão no outro, vou me arriscar a sugerir um decálogo do jeito paulista de fazer política. Devo perder alguns amigos, mas nunca me acusarão de perder a piada. Vamos ao decálogo:
 
1) Auto-suficiência
Todo político paulista acredita que nasceu para ser governante do país. Sendo poder em São Paulo, não haveria motivos para não dirigir o país. Afinal, São Paulo é a sexta maior cidade do planeta; tinha o maior acervo de cobras do país (acabou sofrendo o maior incêndio contra o maior acervo de cobras do país); centro corporativo e financeiro da América Latina; é a décima cidade mais rica do planeta; maior população do Brasil; maior registro de migrantes; motor econômico, responsável por 1/3 do PIB nacional. Todos estes dados são ouvidos pelos paulistas desde que nascem. Imaginem o que as mães dos políticos falam para eles desde pequenos? Paulista dificilmente pensa nos outros Estados como iguais. Há, é verdade, uma ponta de inveja em relação aos cariocas, com seu charme praiano. Se um carioca tiver interesse em provocar um paulista, basta dizer que paulista trabalha para carioca poder aproveitar a praia.

 
2) Arrogância
A conseqüência natural de todo pensamento acima é uma arrogância espontânea de todo político paulista, independente de partido. De Maluf à Marta Suplicy, passando por Serra e FHC, todos destilam este olhar altivo, sempre mirando acima do ombro do interlocutor. Não fala com dúvida. Paulista dificilmente tem alguma dúvida sobre qualquer assunto que diz respeito ao Brasil. A fala é meio que definitiva. Afinal, o Estado sempre deu certo. Há, em toda fala de político paulista, algo de pensamento linear do antigo conceito de progresso. São Paulo, evidentemente, estaria na linha final do progresso. Todos outros Estados estariam abaixo do ranking, tentando chegar ao que São Paulo já é.

 
3) Ética do Sucesso
Até aqui, político paulista parece uma ave de rapina, olhando fixo para sua presa. Mas é aparência. Paulista sofre consigo mesmo. Ele é seu principal inimigo. Todo paulista procura o sucesso. Sem sucesso é visto como fracasso. Não há meio termo. É fundamental que seja o primeiro em algo. Daí político paulista ter sido sempre o primeiro a construir ou criar algo. O sofrimento é atroz porque é preciso assistir todos os filmes comentados por críticos, todos jogos de futebol transmitidos pelos canais à cabo (não vale canal aberto), fazer todas coleções da revista Caras, reproduzir sem gaguejar o obituário do dia anterior, saber os shows de rock que São Paulo sediará nos próximos cinco anos e assim por diante. Um sofrimento. Tempo é dinheiro ou sucesso. Não existe possibilidade de beber uma cerveja com um amigo depois do expediente sem que não ocorra alguma disputa enciclopédica. Mesmo que seja para discorrer sobre todas cervejas do mundo, seus diversos sabores e harmonização.

 

4) Disponibilidade total para a guerra
O sucesso no encalço faz do político paulista um guerreiro. Sempre está preparado para o ataque, desde o primeiro "bom dia". A derrota, assim como para o norte-americano, é declaração de incompetência. É sofrido. Acreditem.

5) Força com pouca astúcia
Como sempre está preparado para o ataque, a força é sempre mais cortejada e valorizada por um político paulista que a astúcia. Para que, afinal, perder tempo? Trata-se da fase anterior à Maquiavel, quando os romanos acreditavam que virtú significava virilidade. Daí o jeito masculinizado de fazer política. Todo político paulista escamoteia para não revelar seu lado agressivo e guerreiro. Como escamotear é perda de tempo, não conseguem iludir por muito tempo. Não que não saibam encenar – afinal, "todo ator paulista é melhor" -, mas tem hora para tudo.

 
6) Estresse
Todos os pontos anteriores desaguam no estresse extremo. Político paulista à altura do nome é sempre estressado, dorme pouco, memoriza todos os dados, não improvisa, está sempre atrasado (porque dá a sensação que sempre faz muita coisa importante que o atrasa), deveria comer melhor (mas não tem tempo para questões secundárias), poderia ter tirado 10 ao invés de 9,75 e assim por diante. As olheiras são um adorno que prova que é paulista da gema.

7) Ansiedade travestida de racionalidade
Todo político paulista é ansioso. Mas como bom paulista, não pode revelar este traço de falibilidade. Assim, a ansiedade ganha uma vestimenta providencial: o de racionalidade. Quem é racional não gosta de firulas. É direto, objetivo, "doa a quem doer". Tem algo de gente que parece pouco educada, pouco afável. Não é o que parece. É ansiedade. Paulista tem que correr atrás do sucesso. E, lembre-se: assim que atingir o sucesso almejado, começa nova campanha (já que o sucesso passa a subir de patamar!)

 
8) Impessoalidade
Tal ansiedade-racionalidade leva à total impessoalidade. Cheira a populismo e falta de tempo, o sorriso. Graça ou humor é infantilismo. Perda de tempo. Dizer bom dia ou boa noite é perda de tempo. Ser delicado é perda de tempo. Seria um preâmbulo desnecessário. O foco é o sucesso. Tudo tem que ser muito prático e objetivo. Para político paulista, às vezes o fim justifica os meios. Lembrar de um nome e do passado vale a pena se leva a ganhar pontos no presente e futuro. Caso contrário, é perda de tempo.

9) Corrida contra o tempo
Por este motivo, o tempo é mais veloz para os paulistas. Sempre falta tempo. E o trânsito ainda ajuda a potencializar esta sensação. A conquista do sucesso (e a ansiedade) aumenta a correria. Por este motivo é sempre difícil caminhar com um paulista. Se for paulistano é quase impossível. Em pouco tempo dá a sensação que estamos disputando uma maratona. E, às vezes, o que parece é o que é.

10) Demonstrações públicas
Por tudo o que se disse anteriormente, político paulista é o mais performático de todos brasileiros. Tudo se faz em público. Lembro de Jânio Quadros jogando o livro que Franco Montoro acabara de ler, em pleno debate na televisão. Recordo de Suplicy levantando o cartão vermelho no Senado. Até o ataque ao adversário do mesmo partido tem que ser performático. Porque é preciso que todos saibam do poder que se tem. O político paulista até sabe que não seria bom revelar o quanto é agressivo e competitivo. Mas não consegue se conter. É por demais saboroso o gosto da vitória.
 

--
Postado por Rudá Ricci no
  em 6/27/2010 10:30:00 AM
Compartilhado por Giva, http://infanciaurgente.blogspot.com/ ,
depois por Ralf, http://pluralf.blogspot.com
 

20 junho 2010

Um jorro salutar de momentâneas catedrais [variações sobre um fenômeno chamado samba]

 
O samba é pai do prazer
o samba é filho da dor
o grande poder transforma-dor

Gilberto Gil & Caetano Veloso, 1993

Desde há muito me passou a parecer que a alegria é mais preciosa,
mais difícil e mais bela que a tristeza. E assim que fiz essa descoberta,
por certo a mais importante que se possa fazer ao longo desta vida,
a alegria se tornou para mim não apenas uma necessidade natural
- o que já era - mas até mesmo uma obrigação moral.

André Gide, 1935


I. Quem será mais revolucionário, a dor ou o prazer?

Começo estas notas num domingo à noite, chegando de uma espécie de missa corpórea e revigorante: um samba.

Um samba popular, robusto - mas não “simples”, porque “samba simples” não é possível, seria uma contradição em termos. Se algum ouvinte achar que um verdadeiro samba é simples, simples é o ouvinte, incapaz de reconhecer sua complexidade.

Mas ao dizer que é complexo não estou dizendo difícil nem penoso! Estudada bioquimicamente, a fotossíntese é de uma complexidade absurda - e no entanto as plantas estão aí, despejando vida no mundo sem parar... como se fosse simples!

Bom, mas então eu estava no Samba do Monte, no espaço da Associação Comunitária Monte Azul, e a cada mês o Samba do Monte homenageia um ou uma grande sambista: já foi Clara Nunes, Noel Rosa... e hoje era Chico Buarque. O lado sambista do Chico.

Chico veio da classe média? Ora, Noel também. E nenhum sambista ousaria dizer que o Chico não tem sambas tão sambas quanto os de um sambista oriundo de favelas ou cortiços. É samba sim!

É sim. Sim. Mas mesmo assim...

... não houve como negar: no meio dos sambas do povo local, o samba do Chico soou intelectualizado: soou cheio de intenções não brotadas da própria vitalidade, mas acrescentadas ao samba pela cabeça.

Ora, nós sabemos que a intenção do Chico é a de conscientizar o ser humano das suas dores pra que se revolte contra elas e tente superá-las com uma ruptura chamada revolução.

E não é agora que pretendo discutir se a revolução é mesmo o melhor caminho para a humanidade, ou qual modelo de revolução; o que me interessa agora é o fato de que o samba do povo não parece estar ali para estimular anseios por um gozo futuro, e sim para ser um gozo presente. (Reparem nos três pares contrastantes: o de verbos, o de substantivos, o de adjetivos).

Não que o samba ignore a dor, nem a necessidade de soluções no longo prazo - de modo nenhum! Mas sabe que inclusive pra poder lutar pelas soluções de longo prazo precisamos estar bem alimentados agora, tanto de alimento-substância quanto de alimento-prazer.

Também não entendam que eu esteja menosprezando a música do Chico! Vejam: não pude deixar de me arrepiar dos pés à cabeça, como sempre, ao ouvir “quero ver a Mangueira / derradeira estação...” preparando e dando sentido à frase musical seguinte, a das palavras: “quero ouvir sua ba---tucada, ai, ai” - que para mim atinge de repente a pungência das árias das Paixões de Bach, nada menos. É tanta beleza, que ouço pouco pra não gastar - mas é uma beleza, sabe-se lá como, feita ainda em substância de dor. Não se trata de “dor transformada”, mas de dor-ainda-dor ajeitada de modo a gerar um prazer-de-beleza ao doer...

... enquanto que no samba do povo tenho a impressão de que se pegou a dor como quem pega garrafas pet vazias e faz outra coisa com elas: corta em tiras, faz luminárias, tranças, bolsas, sei lá o quê. Na hora do uso aquilo é tudo menos garrafa.

E o sambista pode ter pego a dor como matéria prima, mas o que ele nos serve na hora de sambar é tudo menos dor. O prazer estético acontece aí na vivência não de dor mas de saúde.

Pois o samba nos traz um reforço justamente aos ritmos da vida no sentido biológico mesmo - e aí de repente esses ritmos se animam, começam a saltar, se expandem para além dos limites do corpo...

... isso porém sem jamais deixar seu enraizamento no corpo, enraizamento no fundo dos ossos e das fibras dos músculos, como quem diz: “vejam, levado a este equilíbrio e intensidade, viver é bom - e portanto a vida pode ser boa, pode ser prazer: você está experimentando que pode”.

E, não sei, algo me diz que talvez essa vivência motive mais a buscar meios de superar a dor de modo duradouro (revolução) do que é capaz aquela outra arte que é vivência estetizada da própria dor.

Afinal, quem não conhece o “revolucionarismo” romântico que consiste em levar vida desregrada para adoecer e morrer jovem, em lugar de participar das tarefas concretas tantas vezes monótonas de que dependem a manutenção e o melhoramento real da vida?

Sei que eu volto do samba com vontade de produzir melhorias & alegrias neste mundo - enquanto tantas vezes saio das mais lindas audições de música clássica com pura vontade de sumir, de me desfazer de vez em pó da terra ou em qualquer outra forma de poeira estelar.


II. O que os músculos
escutam melhor que os ouvidos
 

Pareceu-me que o melhor e mais seguro meio
de derramar felicidade em torno de si
seria mostrar em si a imagem da felicidade
- e resolvi ser feliz.
 André Gide

Mas aqui com certeza alguns dirão “sei não... ainda prefiro ouvir sinfonias que ouvir sambas” - e aí preciso esclarecer depressa que não estamos falando do mesmo ouvir! - e que, de resto, também não quero abrir mão das sinfonias! Apenas aprendi a intercalá-las com samba y otras cositas igualmente vitales para não adoecer! - Aliás, Nietzsche já havia sacado essas coisas com aquele papo do apolíneo e do dionisíaco, não é?

Então: o ouvir do samba não é só de ouvido, é com o corpo inteiro - mas, por favor!, não estou falando de um “ouvir com o corpo” metafórico, simbólico, ou induzido pelos poderes da imaginação, como quem diz: “parece que ao ouvir tal peça eu senti as rajadas do vento, ou as ondas do mar batendo em mim”. Isso pode ter seu valor, mas é de outra coisa que estou falando aqui. Definitivamente outra. Uma coisa que até hoje só identifiquei na música da Índia e na que tem raízes na África: seus ritmos têm a ver literalmente com  os ritmos dos processos biológicos do nosso corpo.

Por isso não faz sentido nenhum ouvir samba sentado - pelo menos não o tipo de samba de que estou falando. Só se você estiver doente. E aí provavelmente será chato. Pra realmente aproveitar o samba você tem que estar de pé, e não ter vergonha nem preguiça de deixar o corpo começar a se mexer, mesmo se de modo bem discreto.

Além disso, não bastam 30 segundos, dois minutos desse movimento: é preciso deixar que prossiga por um tempo razoável, até que seja um fluxo que mais ou menos nos carrega independente de qualquer esforço nosso.

E aí você começará a identificar coisas pela interação entre esses ritmos e os sensores internos dos seus músculos - coisas que jamais perceberia só com os ouvidos da cabeça.

Entenda: absolutamente não é preciso “dançar certo” de acordo com alguma receita! Apenas se deixar fazer os movimentos que os ritmos e outros sons sugerem nas diferentes partes do corpo. Aí, de repente você estará de certa forma dançando - e essa forma é importante e útil a você; as formas convencionais nem sempre. (Nesse sentido é pena que em São Paulo se tenda a olhar esquisito pra quem dança fora de formas convencionais; já vi que no Rio existe mais naturalidade quanto a isso - e entre africanos então nem se fala!)

Acontece que esses nossos ritmos biológicos são em grande parte reflexos, dentro de nós, de ritmos do ambiente, do mundo, do universo - de modo que o samba “conversa” basicamente é com os ritmos universais que nos criaram e que mantêm a nossa saúde, muito mais que com as paixões da alma que constituem a matéria principal do romantismo musical, as quais de certa forma modulam, alteram esses ritmos vitais, chegando às vezes a distorcê-los por completo, causando doença.


III. As catedrais momentâneas
e seus discretos sacerdotes
 
Eu havia escrito: ‘Daquele que é feliz e que pensa,
desse se dirá que é verdadeiramente forte’.
 André Gide
 
E pra terminar quero contar de uma imagem que me veio no último carnaval, quando caminhava alguns quarteirões com o bloco aqui do bairro. Bem: era carnaval, e carnaval é mesmo pra ser escracho: tudo o que é feio, bobo, até nojento, tem aí uma chance de se ostentar e se desafogar.

Mas eu não fiquei reparando em nada disso: só aproveitei que estava quase dentro da bateria e me soltei na batucada. E aí percebi que na batucada em si não existia nada de escracho: era prazer, mas era sério, era profundo; no fundo não tinha nada a ver com o grotesco por trás do qual se disfarçava; sua natureza era bem mais a do sublime.

Aqueles homens aparentemente simplórios que caminhavam pela rua compenetrados em bater nos seus instrumentos iam lançando formas pelo ar: formas regulares, harmônicas, que extraíam beleza e sensação dos jogos entre simetria e assimetria... como detalhes arquitetônicos - rosáceas, volutas, arcos, pináculos... na verdade nem conheço os nomes usados para o que eu quero dizer! - formas que se configuravam "no ar" e imediatamente se desfaziam, para voltarem a surgir modificadas aqui, ali restauradas à configuração original, e já modificadas de novo acolá...

Falam da arquitetura sagrada das catedrais, onde as formas e medidas expressam proporções de ritmos cósmicos (só por exemplo, uma das torres da Catedral de Chartres, na França, é proporcional ao número de dias do ano solar, a outra ao do ano lunar).

Falam também que esse tipo de harmonia matemática que flerta com a dimensão cósmica (a "música das esferas" dos antigos) pode ser encontrado na música de alguns compositores, especialmente o já citado Bach.

Pois eu afirmo que estar imerso em Bach ou num bom samba não são experiências tão diferentes quanto os virgens disso possam imaginar.
 
É verdade que Bach desenvolve sua complexidade em grande parte na dimensão do tom - das construções melódico-harmônicas - e não é nessa dimensão que o samba desenvolve a sua complexidade: é mais na da dimensão das durações (construções em ritmo) cruzada com as do tom e do timbre usadas em conjunto como faixas: por exemplo a faixa dos surdos, a das caixas, a dos tamborins, a dos agogôs, que atingem centralmente áreas e funções diferente do nosso sistema corporal (e através dele também o psiquismo - o que nem seria preciso dizer se ainda não vivêssemos no meio de tanta superstição pseudo-filosófica sobre uma suposta "inferioridade do corpo").

Diziam os contemporâneos de Bach que ele atingia seu máximo quando improvisava ao órgão, não quando a música era escrita. Embora dentro de parâmetros muito bem definidos previamente, o nota-por-nota do samba é improvisado a cada realização, irrepetível (como também o do jazz e os da maior parte das tradições musicais do mundo). Mas as construções que o samba produz, desse modo, dentro das dimensões em que atua, não são de nenhum modo menos complexas que as contruções produzidas por Bach nas dimensões com que trabalha, e também não menos ricas de efeitos complexos sobre o ser humano.
 
E ambos produzem uma espécie de arquitetura fugaz, estruturas que surgem no "ar", brincam com as proporções dentro de si mesmas e entre umas e outras, são apreendidas com o ouvido e com o corpo no interior de um instante, e já não existem mais... a não ser nas conseqüências que deixaram em nós.

Quem se deixa arrancar do chão pelos golpes dos surdos para em seguida ser jogado como nas mãos de um malabarista pelas batidas do tamborim, e ter os quadris conduzidos pelo pulsar frenético e ao mesmo tempo harmônico do cavaquinho... esse perde peso e ganha graça - não só no sentido de aparência harmoniosa mas também de sensação de plenitude espiritual: “sim, existe a dor, mas o humano também pode ser isto: erguido acima do seu próprio peso, trepidante de uma glória atingível pelo aperfeiçoamento, realização, intensificação - não pela negação de si.

E aí eu vi a palhaçada dos mais levianos - ali na rua naquele carnaval - como de grande utilidade não só como desafogo para eles mesmos, mas sobretudo para distrair a atenção de potenciais inimigos da profundidade do principal: com mais ou com menos consciência disso nas mentes, por trás de seu leve sorriso, aqueles homens simples no fundo sabiam da grandiosidade das funções sacerdotais que estavam a desempenhar, reoficiando antiqüíssimos ritos de saúde e de afirmação ao encherem o ar com jorros gozosos de forças e formas vitais... como um antídoto contra os equívocos mortíferos da civilização ocidental.

14 junho 2010

Israel, a paz enganosa e o Estado Tupinambá do século 35


Dedico este artigo a todos os judeus de hoje que vêm honrando a tradição dos grandes profetas do seu povo e se colocando contra os crimes do movimento sionista e do Estado de Israel

Tenho recebido algumas tentativas de defender Israel no caso da flotilha que rumava para Gaza, em forma de denúncia de que eles “não eram na verdade pacifistas”. Entre elas se destaca a mensagem de uma médica brasileiro-israelense (ah, essas duplicidades a que nós comuns dos mortais não temos direito...) que teria “visto com os próprios olhos” provas das más intenções da flotilha.
 
Sua mensagem parece de boa-fé, mas é engraçado como contrasta com as vigorosas denúncias da posição de Israel como indefensável por parte de intelectuais e políticos judeus que constituem uma espécie de elite moral do seu povo - um deles o grande lingüista Noam Chomsky, um judeu que foi proibido de entrar e palestrar em Israel há poucas semanas. Outro, o jornalista e ex-parlamentar israelense Uri Avnery, que elencou 81 perguntas incômodas sobre o caso (link 1 no fim do post).

Quero acreditar que essa médica seja uma pessoa boa porém ingênua, que nunca ouviu falar em evidências plantadas - risco que qualquer jovem brasileiro de periferia sabe que corre quando a polícia o manda parar.
                       
Mas quero falar mesmo é de outra coisa: de o quanto pode ser enganosa a palavra “paz”.

Que eu lembre, em nenhum momento o pessoal da flotilha disse que era pacifista. Humanitário e pacifista não são sinônimos. Gandhi (o evidente modelo da ação da flotilha) nunca se disse pacifista, ele falava de luta não-violenta, de emprego da força da verdade (satyagraha).

Soa meio chocante, mas em política "paz" e "pacifista" são via de regra palavras ou de trouxa, ou de trapaceiro.

A chave pra entender isso é: o conceito "paz" só é real entre partes que estejam em igualdade de condições. Onde existem diferenças de poder ou de oportunidade, a palavra "paz" se torna sinônima de "não-perturbação da opressão". Como opressão é violência solidificada, onde há desigualdade a palavra "paz" sozinha já é uma mentira, um disfarce do seu contrário.

(Com “violência solidificada” quero dizer: transformada de ato momentâneo em estrutura duradoura. Para ajudar a entender: "receber um impacto de 10 toneladas" nos parece algo violento, mas não costumamos pensar o mesmo de "ter que suportar continuamente 10 toneladas nas costas" - o que é na verdade pior).

Já Santo Agostinho se referia a isso com a expressão "paz é fruto da justiça". Evito um pouco essa expressão porque a própria definição de "justiça" costumar gerar briga... Mas falei acima de "igualdade", e sei que essa palavra também arrepia a maior parte dos conservadores. Acaba exigindo explicações de que não estamos negando as diferenças naturais entre os indivíduos, apenas questionando as diferenças não-naturais, criadas e mantidas por ações humanas (quer individuais, quer coletivas; quer conscientes, quer inconscientes).

Aí as vezes vale lembrar, sobretudo pra conhecedores da Bíblia, que é precisamente o par igualdade/desigualdade que em linguagem mais antiga se dizia eqüidade/iniqüidade...

E por falar em Bíblia, temos visto que justamente quem recebeu uma educação cristã e/ou bíblica tende facilmente a procurar desculpas para o lado de Israel. E, olhando bem, descobrimos aí uma razão puramente emocional: os judeus são nossos conhecidos. Ouvimos os nomes e histórias deles desde o berço. Em contraste, na nossa mente "árabes" ou "persas" são apenas vultos sem rosto e sem história.

Mas partindo de um conhecimento desigual dos dois lados, nosso julgamento só pode terminar sendo iníquo - mesmo que por ingenuidade, como a de uma criança que não quer que prendam o Papai Noel que é na verdade um ladrão disfarçado.

Com conhecimento equitativo dos fatos reais relativos aos dois lados, presentes e passados, a mera existência do atual Estado de Israel se mostra como uma barbaridade injustificável. Os dados que vou mencionar a seguir provêm de historiadores e jornalistas judeus, não árabes; apenas que de judeus moralmente responsáveis: para começar, os judeus que criaram o Estado de Israel não descendem do povo judeu dos tempos bíblicos, e sim de integrantes de outros povos convertidos ao judaísmo em tempos pós-bíblicos (ver o link 2, para texto de um historiador da Universidade de Tel-Aviv).

Esses neo-judeus da Europa já haviam convencido e financiado os cristãos a fazerem guerras de conquista daquela região no século 12 (as cruzadas). E de certa forma repetiram a dose entre a 1.ª e a 2.ª guerras mundiais, quando praticamente obrigaram os ingleses a apoiá-los na invasão da região - inclusive chantageando-os com atos de terrorismo (é isso mesmo o que eu disse: terrorismo de judeus contra ingleses).

Não vou entrar agora no histórico de barbaridades e massacres que vem sendo perpetrado há um século por esses neo-judeus contra os povos que viviam há mais de dois mil anos na região cobiçada, ainda falando em grande parte a língua que Jesus falava: o aramaico. Vou só destacar que há mais sangue de judeus dos tempos bíblicos no povo palestino que nos judeus que saíram da Europa pra implantar o Estado de Israel.

Não foram reconhecidos como tais porque a palavra “judeu” não se refere a um povo e sim a uma religião, e boa parte daqueles judeus originais havia se convertido ao cristianismo, e outra parte ao islamismo - o qual havia surgido como uma espécie de retorno ao monoteísmo “linha-dura” dos tempos do Velho Testamento, enquanto o judaísmo medieval tinha virado na prática um festival de recurso a seres espirituais intermediários, aliás bastante parecido com a umbanda.
 

O ESTADO TUPINAMBÁ. Acho que a situação atual da Palestina fica mais clara com uma comparação imaginária - que, não me entendam mal!, não traz nenhuma acusação aos tupinambás verdadeiros, e nem qualquer desculpa para o terrível genocídio praticado nas Américas pelos invasores europeus de que em parte descendemos.  Mas vamos lá:

Imaginem que uns poucos descendentes de índios tupinambás espalhados pelo mundo fossem pouco a pouco convencendo pequenos grupos, aqui e ali, a adotar elementos da antiga religião e costumes dos tupinambás, e a se identificarem com esse nome.

Então, por volta do futuro ano de 3400, esses grupos escolhem um nome histórico como símbolo, se organizam como "movimento pindoramista" e começam a invadir a costa e a primeira faixa dos planaltos brasileiros do Maranhão até São Paulo, e a exigir a soberania da região, com a submissão de todo o povo que se formou aí nesse meio tempo (que neste exercício podemos imaginar como o que somos hoje, embora não saibamos como vai ser daqui a 1400-1500 anos).

Conseguem apoio internacional para uma partilha que deixa umas pequenas faixas descontínuas fora da sua soberania, mas depois não cumprem o acordo e começam a invadir também o resto, pois "historicamente lhes pertence".

Aí, quando algum de nossos tatatatataranetos, desesperado de ver seus amigos e parentes reduzidos à miséria e opressão, cometer algum ato contra eles, será acusado de "não querer a paz". 

E ali pelo ano 3450 um líder pindoramista proclamará: "devemos matar cem ou mil brasileiros para cada tupinambá que eles matam".

Essa frase foi pronunciada a semana passada pelo sionista Ron Torossian, organizador da manifestação “Estamos com Israel” em frente à missão da Turquia na ONU: “devemos matar cem ou mil árabes por cada judeu que eles matam”.

Mas isso não é uma reação a violências recentes: ele está apenas dando continuidade ao programa definido já na década de 1920 pelo ideólogo do "sionismo revisionista" Zeev Jabotinsky: “a única maneira de impor o Estado judeu será esmagando os árabes” (v. link 3).

Esse árabes que de lá para cá só deram provas de que merecem mesmo ser esmagados, e precisamente pelo crime de não se deixarem esmagar sem reagir: "queríamos poder roubá-los e pisá-los sem derramamento de sangue, mas eles são perversos: não sabemos por quê, não nos deixam fazer isso em paz."
 
---------------------------------------------------------------------------  
Link 1: Uri Avnery (jornalista e ex-parlamentar israelense),
O que o governo e os militares israelenses tentam esconder”
http://www.viomundo.com.br/voce-escreve/uri-avnery-o-que-o-governo-e-os-militares-israelenses-tentam-esconder.html

Link 2: Schlomo Sand (historiador e professor da Universidade de Tel Aviv),
Como surgiu o povo de Israel?”
http://operamundi.uol.com.br/opiniao_ver.php?idConteudo=1147

Link 3: Juan Gelman (escritor judeu argentino), “Inexplicável?”
http://www.cartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=16672

Outra recomendação importante sobre os métodos do Estado de Israel:
o filme “Munique”, do judeu Steven Spielberg.

12 junho 2010

Sofia Convivialis



Aliás, acho que nunca apresentei aqui a nossa querida Sofia Convivialis,
mascote da Biblioteva Virtual Trópis há muitos anos,
criada por um sujeito que às vezes se chamava Alex Mzplik,
às vezes Alexandre Vaz, e às vezes até Jesus Creison!


... Mas isso não importa agora, né?  Estou aqui para apresentar a Sofia, não o seu pai! :D





Discurso-denúncia de veterano do Iraq - no youtube, legendado

 
Um amigo acaba de mandar o link. É triste, mas também bonito ver que tem gente falando assim nos USA.Comentei no meu orkut: 
 
"Os verdadeiros terroristas éramos nós" - "São bilionários pondo pobres para lutar contra pobres" e muito mais. Dolorido, mas IMPRESCINDÍVEL. Neste momento uma das melhoes coisas que poderiam acontecer PELO MUNDO seriam mil, cem mil desses falando em todas as cidadezinhas dos EUA.
 
E respondi ao meu amigo: "Se é verdade que ele apareceu morto dois dias depois, não sabemos, mas isso não afeta a enorme verdade do discurso. O sistema é grande o suficiente pra agüentar contestações como essas... mas também perverso o suficiente pra às vezes matar como exemplo... Os EUA precisavam de uma nova onda de resistência jovem como houve contra a guerra do Vietnã... mas infelizmente parece que neste momento vem sendo bem o contrário, que são os fascistas e conservadores que estão crescendo lá... Por isso, ver esse discurso é acalentador. Realmente espero que não seja verdade que apagaram o moço... mas se for, que seja uma semente que faça brotar mil no lugar!
 

09 junho 2010

um livro PARA TODOS, e MUITO mais importante do que se imagina

 
Se você pensa que esse é um livro que interessa exclusivamente à comunidade gay, se enganou. Confesso que eu mesmo nunca imaginei que encontraria aí tanto conteúdo para reflexão - pedagógica, política, antropológica - e tanto motivo de respeito e admiração.

Estou falando de Soldados Não Choram, 200 páginas que representam 1/3 dos depoimentos do ex-sargento Fernando Alcântara de Figueiredo registrados pelo jornalista Roldão Arruda, sobre sua vida e a do seu companheiro Laci Marinho de Araújo.

Sim, são os dois que saíram na capa da Época em 2008, e dias depois apareceram no programa da Luciana Giménez. Se por algum acaso a imagem que lhe ficou for a de umas bichinhas histéricas que foram dar piti na tevê por fragilidade, apague.

E vá ao livro conhecer dois meninos das periferias de Recife e de Natal, sofridos e lutadores desde o berço - um deles que chegou a enfrentar, recusando-se a chorar, o assassinato do pai a foice, e o conseqüente mergulho da mãe em anos de depressão.

Vá ainda conhecer dois cabras machos que decidiram expor seu amor-entre-iguais em público sobretudo como um lance radical em sua resistência a uma apavorante perseguição, devida não à sua homossexualidade, e sim a terem levado a instâncias superiores seu inconformismo com a grossa roubalheira com que viam representantes de interesses privados lesarem gente humilde como seus pais dentro da instituição pública. Confesso que com as poucas linhas da imprensa sobre isso, eu havia chegado a suspeitar de balela, mas a concretude do relato não deixa dúvidas.

Já está lhe surpreendendo? Pois lhes garanto que o livro vai ainda muito além!


Desde há muito avalio que a questão mais grave da teoria política seja a seguinte: mesmo a mais justa e igualitária das sociedades precisará manter uma instância capaz de fazer uso de força caso seja preciso impedir que alguém destrua essa justiça e eqüidade em algum ponto. Mas como impedir que essa instância capaz de fazer uso de força a empregue para outros fins, que não a proteção da justiça e eqüidade?
Essa é uma das questões mais sérias para toda e qualquer sociedade no alvorecer deste milênio, e o livro de Fernando oferece abundante material de reflexão sobre essa questão geral através do caso específico brasileiro.

Começa por uma descrição como nunca vi da chocante anti-pedagogia empregada em todos os níveis de sua formação, de aspirantes e recrutas a sargentos. Não duvido que haja outros relatos sobre isso na literatura brasileira - mas de uma formação que se deu de 1990 para cá? Depois da "plena redemocratização"?

Onde estarão as origens de um "sistema de treinamento" que consiste basicamente em humilhar, brutalizar, desumanizar - e em que o pouco que poderia merecer o nome de "ensino" é aplicado com espantosa incompetência?

Parece coisa remanescente do prussianismo do século 19, e em parte talvez seja - mas de outras histórias sabemos que foi de instrutores estadunidenses que o exército brasileiro recebeu, depois de 1964, instrução sistemática quanto a aplicação de certos tipos de tortura. E - pasmem - pouco antes de sua formatura como sargentos nossos jovens se vêem submetidos sem aviso a sessões reais de torturas desse tipo, inclusive com risco nada desprezível de morte.

Isso vem de onde, e desde quando? Nossa sociedade foi consultada se é isso o que ela quer como formação de seus jovens para a defesa nacional?

E que tipo de instituição se procura criar e manter através disso?

E aí voltamos ao grande drama: como um governo democrático pode conseguir transformar as forças armadas que tem teoricamente a seu serviço, se a possibilidade de empregar a força está justamente com elas? Tenho dito com freqüência que em política nada está mais longe da verdade que o famoso ditado "querer é poder": é justamente na vasta e tensa distância entre esses dois verbos que toda a política se dá!

Volto a Fernando e Laci: eles ainda têm 36 anos, então espero que a longa vida que ainda devem ter pela frente não venha a me contradizer - mas neste momento, se eu tivesse que apontar um livro a ser entregue sem hesitação na mão de adolescentes brasileiros como modelo de garra no enfrentamento da vida e - sim - da bravura moral de que nosso povo tanto precisa, eu não teria a menor dúvida em apontar esta dupla biografia de Fernando e Laci.

Mas um casal gay como exemplo para adolescentes? - muitos são capazes de exclamar chocados.

Pois digo que no conjunto total do livro como eu o apreendi, a homossexualidade é quase que circunstancial: o jovem que tiver em si uma tendência predominantemente heterossexual também irá se beneficiar desse modelo de bravura sem que isso venha a lhe alterar a orientação sexual. Quem já estudou o assunto a sério sabe muito bem disso.

Por outro lado, os não poucos jovens estruturalmente homossexuais, e os bissexuais com razões para optar por esse lado, têm aqui também um magnífico exemplo de que sua orientação sexual não tem que ser sinônimo de uma vida fútil nem covarde, mas que, pelo contrário, podem estar entre os elementos de maior valor na luta de construção de um Brasil e de um mundo mais dignos que os de hoje.

Esclarecendo melhor este último ponto, toco de leve num assunto a ser aprofundado futuramente: o psicólogo Carl G. Jung dizia acreditar numa sabedoria da natureza - e por essa mesma fé previa que "no futuro" haveria um grande aumento da taxa de homossexulidade na população. Por quê? Para ele, simplesmente porque o tamanho da população humana já estava ultrapassando o razoável em muito, e sem dúvida será necessário reduzi-la. E vínculos de afeto sem risco de procriação servem tanto a essa redução quanto à manutenção do bem-estar da sociedade, que depende precisamente de vínculos.

Conservadores fazem às vezes discursos alarmados no sentido de que a humanidade estaria em risco de extinção com o aumento da homossexualidade - o que diante da situação real não passa de uma piada de péssimo gosto. Mesmo se, digamos, 60% da humanidade optasse exclusivamente por relações sexuais não reprodutivas, por muitos séculos isso não seria um problema e sim um benefício à própria humanidade e ao conjunto do planeta. E estou falando de um número altíssimo que provavelmente jamais será atingido.

Acrescente-se a isso a descoberta feita pelos zoólogos, de que quanto mais freqüentes as relações homossexuais dentro de determinada espécie, mais pacífica é essa espécie: mais as relações de competição são substituídas pelas de colaboração, mais a violência é substituída pelo cuidado mútuo como força estruturadora da sociedade.

Não é de estranhar, portanto, que os que se empenham em preservar uma cultura da violência e da opressão se sintam incomodados ao verem dois machos potentes e capazes de briga se entregarem, pelo contrário, ao amor.

Mas a despeito de qualquer oposição, nossas ruas estão cada dia mais cheias de pares de adolescentes do mesmo sexo manifestando atração e carinho um pelo outro - exatamente como Jung previu há mais de 50 anos. E os mais informados e/ou perspicazes sabem enxergar nisso não um desvio da natureza, e sim uma manifestação da sua sabedoria; não uma degeneração da humanidade, e sim um dos passos de uma evolução que visa a sua salvação.

Não pensem, porém, que eu esteja só feliz ao ver isso: também me sinto preocupado. Pois que modelos de vida estamos oferecendo a esses adolescentes? O das drag queens e o dos go-go boys e nada mais? Pois não se enganem: adolescentes sempre pensam que inventam tudo e não imitam ninguém, mas nós sabemos que é justo o contrário... E o que a sociedade vem oferecendo - e com certeza nada inocentemente - é um modelo de pura futilidade, que só encoraja o narcisismo e o consumo, e jamais a participação na luta de construção da sociedade justa e igualitária, antes de cuja realização nenhum ser humano tem direito moral de descansar mais que por instantes.

E é por isso que digo uma vez mais: não conheço nenhum outro livro que ofereça um modelo humano tão realisticamente apropriado aos jovens brasileiros de hoje - tanto homo quanto heterossexuais - como a história desses dois soldados que souberam lutar e também chorar, e também rir, cantar e se amar.

PS: o livro foi lançado em dezembro de 2008 e eu só fiquei sabendo da sua existência há poucos dias - talvez mais uma demonstração da tentativa de submersão da vida gay numa cultura da futilidade. Mas volto a insistir que esse não é um livro apenas para gays e simpatizantes: é um livro para todo brasileiro que se interessa pelo presente e pelo futuro do seu próprio povo, e da humanidade em geral.

05 junho 2010

Palavras de Gandhi sobre os judeus na Palestina e na Alemanha (1938 e 47)

 
OS JUDEUS (The Jews) - artigo de Gandhi em seu jornal Harijan, 26.11.1938
Texto original em fonte gandhiana oficial:
http://bit.ly/aYJI7Q
Nova tradução e notas de Ralf Rickli - 31.05.2010

Recebi diversas cartas pedindo que declare meus pontos-de-vista quanto à questão árabe-judaica na Palestina e quanto à perseguição dos judeus na Alemanha. Não é sem hesitação que me arrisco a oferecer minha visão dessa questão tão difícil. [Nota do Tradutor (NT): é preciso ter em mente que este artigo foi escrito relativamente no começo dessa perseguição, ainda antes do início da II Guerra]

Os judeus têm toda a minha simpatia. Eu os conheci intimamente na África do Sul. Alguns deles vieram a ser companheiros para toda a vida. Através desses amigos eu aprendi muito sobre sua perseguição ao longo de eras. Eles foram os intocáveis do cristianismo: há um paralelo muito próximo entre o seu tratamento pelos cristãos e o tratamento dos intocáveis pelos hindus. Nos dois casos a religião foi invocada para autorizar o tratamento desumano que lhes foi aplicado. Além das amizades existe então essa razão mais comum e universal para que eu tenha simpatia pelos judeus.

Mas minha simpatia não me torna cego às exigências de justiça. O clamor por um lar nacional para os judeus não encontra muita ressonância em mim. Busca-se autorização para ele na Bíblia e na tenacidade com que os judeus têm ansiado por retornar à palestina. Mas por que eles não podem, como outros povos da Terra fazer seu lar aquele país onde nascem e onde ganham a vida?

A Palestina pertence aos árabes no mesmo sentido em que a Inglaterra pertence aos ingleses e a França aos franceses. [NT: esta observação é mais sutil do que parece à primeira vista: Gandhi com certeza sabia que nem os ingleses nem os franceses de hoje foram os primeiros povos a ocupar esses territórios, assim como nem os palestinos de hoje nem os judeus em relação à assim-chamada Palestina]. É errado e desumano impor os judeus aos árabes. O que está acontecendo na Palestina hoje não pode ser justificado por nenhum código de conduta moral. Os mandatos [com que a terra vem sendo ocupada] não têm nenhum fundamento senão os resultados da última [Grande] Guerra. Seria com certeza um crime contra a humanidade subjugar os orgulhosos árabes para que a Palestina pudesse ser parcial ou inteiramente restituída aos judeus como seu lar nacional [NT: na I Guerra a região foi liberada do domínio do Império Otomano (turco), de facto pela atuação dos árabes, porém mantida 'de direito' como mandato britânico pelos tratados internacionais impostos pelas potências ocidentais; o famoso filme Lawrence da Arábia traz contribuições para a compreensão disso].

O caminho mais nobre seria insistir em que os judeus sejam tratados de modo justo onde quer que tenham nascido e sido criados. Os judeus nascidos na França são franceses. Se os judeus não têm outro lar se não a Palestina, será que eles gostarão da idéia de serem forçados a deixar as outras partes do mundo onde estão estabelecidos? Ou eles querem ter dois lares onde possam permanecer à vontade? Esse clamor pelo seu lar nacional oferece uma justificativa plausível para a expulsão dos judeus pelos alemães.

É verdade que a perseguição alemã aos judeus não parece ter paralelo na história. Os tiranos da antigüidade nunca ficaram tão loucos quanto Hitler parece ter ficado. E ele o está fazendo com zelo religioso. Pois está propondo uma nova religião que consiste exclusivamente em nacionalismo militante em nome do qual qualquer desumanidade se torna um ato de humanidade a ser recompensado aqui e no além. O crime que é uma juventude obviamente enlouquecida porém intrépida esta sendo infligido a toda a sua raça com uma ferocidade inacreditável. Se pudesse haver alguma vez uma guerra justificável em nome e em favor da humanidade, seria completamente justificada uma guerra contra a Alemanha para impedir a brutal perseguição a toda uma raça. Mas eu não acredito em nenhuma guerra. Uma discussão dos prós e contras de uma tal guerra se encontra fora dos meus horizontes e território.

Mas se não pode haver guerra contra a Alemanha nem mesmo por causa de um crime tal como vem sendo cometido contra os judeus, aliança com a Alemanha com certeza não pode haver. Como pode haver aliança entre uma nação que alega representar a justiça e a democracia e uma que é inimiga declarada de ambas? Ou a Inglaterra estará se desviando na direção da ditadura armada e de tudo o que isso significa? [NT: Hitler esperou desde sempre contar com a Inglaterra em uma aliança pan-germânica contra os franceses, russos e outros povos - afinal, anglos e saxões são subdivisões dos povos germânicos. Em 1933 fez uma proposta oficial à Inglaterra, que contrapropôs 10 anos de prazo antes de fechar a decisão. Gandhi escrevia precisamente no meio desse período, em que a posição da Inglaterra em relação à Alemanha ainda não estava decidida, o que viria a ocorrer com a declaração de guerra em setembro de 1939]

A Alemanha está mostrando ao mundo com que eficiência a violência pode ser exercida quando não se vê embaraçada por nenhuma hipocrisia ou fraqueza disfarçada de humanitarismo. Está mostrando também o quanto é horrenda, terrível e terrificante quando vista em sua nudez.

É possível aos judeus resistir a essa perseguição organizada e desavergonhada? Haverá modo de preservar seu auto-respeito e não se sentirem impotentes, abandonados e sem esperança? Sugiro que há. Nenhuma pessoa que tem fé em um Deus vivo tem necessidade de se sentir impotente e sem esperança. O Jeová dos judeus é um Deus mais pessoal que o Deus dos cristãos, dos muçulmanos ou dos hindus, embora, na realidade, em essência Ele seja comum a todos, seja um que não tem "segundo", e esteja além da possibilidade de descrição. [NT: durante alguns séculos os não-judeus acreditaram que essa fosse a pronúncia do principal nome divino hebraico, que em sua própria tradição sequer deve ser pronunciado. Gandhi escreve 'Jehovah' apontando para algo que na verdade não se chama assim, mas é suficientemente claro a que quer se referir. Ou seja: a mera inexatidão desse nome não seria um contra-argumento honesto.] Mas como os judeus atribuem personalidade a Deus e acreditam que ele rege cada uma das ações deles, eles não deveriam se sentir impotentes. Se eu fosse um judeu e tivesse nascido na Alemanha e ganhado minha vida lá, eu reclamaria a Alemanha como meu lar tanto quanto o gentios de maior estatura pode reclamar, e o desafiaria a atirar em mim ou a me lançar na masmorra; eu me recusaria a ser expulso ou a me submeter a tratamento discriminatório. E para fazê-lo eu não ficaria à espera de que os companheiros judeus se juntassem a mim em resistência civil mas teria confiança de que os demais terminariam inevitavelmente seguindo o meu exemplo. Se um judeu ou todos aceitassem a prescrição que eu ofereço aqui, ele ou eles não teriam como ficar pior do que estão agora. E o sofrimento voluntário por que viessem a passar lhes traria uma força interior e uma satisfação que não pode ser trazida por nenhuma quantidade de moções de solidariedade aprovadas no mundo fora da Alemanha. Em realidade, mesmo se a Grã-Bretanha, a França e a América declararem guerra à Alemanha, isso não poderá trazer nenhuma satisfação e nenhuma força interior. A violência calculada de Hitler pode até mesmo resultar em um massacre geral dos judeus como primeira resposta à uma tal declaração de hostilidades. Mas se a mente judaica pudesse se preparar para sofrer voluntariamente, até mesmo o massacre que eu imaginei poderia ser transformado em um dia de ação de graças e alegria porque Jeová operou o livramento da raça mesmo nas mãos do tirano. Para o temente a Deus não há terror na morte. É um sono alegre a que deve se seguir um despertar tão mais revigorante quanto tiver sido longo o sono.

Nem me deveria ser necessário apontar que para os judeus está mais fácil seguir minha prescrição do que está para os tchecos. E eles têm um paralelo exato na satyagraha dos indianos na África do Sul [NT: satyagraha, "força da verdade", era a palavra usada por Gandhi para os atos e campanhas de resistência não-violenta que liderava e cujas estratégias desenvolveu]. Lá os indianos ocupavam precisamente o mesmo lugar que os judeus ocupam na Alemanha. O presidente Kruger costumava dizer que os cristãos brancos eram os escolhidos de Deus e que os indianos eram seres inferiores criados para servir aos brancos. Uma cláusula fundamental da Constituição do Transvaal era a de que não devia haver igualdade entre os brancos e as raças de cor, incluindo os asiáticos. Também lá havia guetos descritos como alojamentos nos quais os indianos eram confinados. As outras limitações eram quase do mesmo tipo que as dos judeus na Alemanha. Os indianos, não mais que um punhado, recorreram à satyagraha sem nenhum suporte do mundo exterior nem do governo da Índia. Na verdade os funcionários britânicos tentaram dissuadir os satyagrahis do passo que tinham em vista. A opinião mundial e o governo da Índia vieram em seu auxílio depois de oito anos de luta. E também isso se deu por meio de pressão diplomática e não por ameaça de guerra.

Mas os judeus da Alemanha podem oferecer uma satyagraha [resistência não-violenta] com auspícios infinitamente melhores que os indianos da África do Sul. Os judeus na Alemanha são uma comunidade compacta, homogênea. Estão de longe melhor dotados que os indianos da África do Sul. E tem uma opinião mundial organizada por trás de si. Estou convencido de que se alguém com coragem e visão puder se levantar dentre eles para liderá-los em ação não-violenta, em um piscar de olhos o inverno do seu desespero poderá ser transformado no verão da esperança. E aquilo que hoje se tornou uma caçada humana degradante pode se tornar numa resistência serena e determinada oferecida por homens e mulheres desarmados possuidores da força do sofrimento, concedida a eles por Jeová. Será então uma resistência verdadeiramente religiosa oferecida contra a fúria desdivinizada de homens desumanizados. Os judeus alemães terão marcado uma vitória perene sobre os gentios alemães no sentido de que terão convertido estes últimos a uma valorização da dignidade humana. Terão prestado um serviço aos seus camaradas alemães e provado seu direito de serem os verdadeiros alemães, em contraste com aqueles que hoje, mesmo sem entender, estão arrastando o nome "alemão" para o lodaçal.

E agora uma palavra sobre os judeus na Palestina. Eu não tenho nenhuma dúvida de que eles estão lidando com a questão de maneira errada. A Palestina em sua concepção bíblica não é uma área geográfica: está nos seus corações. Mas se eles precisam buscar a Palestina da geografia como seu lar nacional, está errado entrar nela sob a sombra do fuzil britânico. Um ato religioso não pode ser realizado com ajuda de baioneta ou de bomba. O único modo pelo qual eles podem se estabelecer na Palestina é pela boa-vontade dos árabes. Eles deveriam buscar converter o coração árabe. O Deus que rege o coração árabe é o mesmo que rege o coração judeu. Eles podem apresentar satyagraha diante dos árabes oferecendo-se a serem alvejados ou lançados no Mar Morto sem levantar um único dedo contra eles. Eles encontrarão a opinião mundial a favor de sua aspiração religiosa. Há centenas de modos de dialogar com os árabes, se eles apenas descartarem a ajuda da baioneta britânica. Do modo como está acontecendo, os judeus são co-autores, com os britânicos, na espoliação de um povo que não fez nada de errado contra eles.

Não estou defendendo os excessos dos árabes. Eu gostaria que eles tivessem escolhido o caminho da não-violência para resistir ao que consideraram corretamente uma intrusão indefensável na sua terra. Mas de acordo com os padrões aceitos de certo e errado, nada pode ser dito contra a resistência oferecida pelos árabes em face de uma desvantagem esmagadora.

Que os judeus que alegam ser a raça escolhida provem essa sua qualidade escolhendo o caminho da não-violência para defender a sua posição na Terra. Todo e qualquer país é seu lar, inclusive a Palestina, mas não mediante agressão e sim mediante a prestação de serviço com amor. Um amigo judeu me mandou um livro chamado 'A Contribuição Judaica à Civilização', de Cecil Roth. Ele oferece um registro do que judeus fizeram para enriquecer o mundo nos campos da literatura, arte, música, teatro, ciência, medicina, agricultura etc. Havendo determinação de vontade, o judeu pode se recusar a ser tratado como o pária do Ocidente, ser desprezado ou tratado como inferior. Pode conquistar a atenção e respeito do mundo sendo "homem, criatura escolhida de Deus" em lugar de ser "homem que afunda rapidamente para o nível do animalesco e rejeitado por Deus". Às suas muitas contribuições, eles podem ajuntar a que vai além de todas, a da ação não-violenta.
Segaon, 20 de novembro de 1938.

Resposta de Gandhi a uma pergunta da United Press of America
sobre a questão Palestina, no jornal The Bombay Chronicle, June 2, 1947
Texto original em fonte gandhiana oficial:
http://bit.ly/b1scZa
Tradução de Ralf Rickli - 31.05.2010

Qual o senhor acha que é a solução mais aceitável para a problemática da Palestina?
- O abandono, inteiramente por parte dos judeus, do terrorismo e outras formas de violência.

Observação final do tradutor: esta resposta é o último dos seis pronunciamentos feitos por Gandhi sobre a questão judaica após a II Grande Guerra, listados e reproduzidos em site oficial. Cinco meses depois (29.11.1947) a ONU aprovava a divisão da Palestina em um estado judeu e outro árabe, o que não foi aceito pelos árabes e deu início imediato a 15 meses de guerra. Israel proclamou sua existência como Estado em 14.05.1948, em meio a essa guerra. Gandhi havia sido assassinado em 30 de janeiro do mesmo ano - ao que consta por razões não relacionadas a estas.

Tem-se usado a expressão "o total abandono" na tradução dessa resposta, mas a formução em inglês é: "The abandonment wholly by the Jews of terrorism and other forms of violence". A posição e a forma adverbial, não adjetiva, de 'wholly' apontam inequivocamente para um sentido muito mais radical: "a responsabilidade pela solução está inteiramente na mão dos judeus; se eles tomarem a iniciativa de abandonar integralmente o terrorismo e outras formas de violência [e, conhecendo-se Gandhi, isso significa: sem imporem condições ou exigirem garantias prévias para isso], a situação se encaminhará para uma solução".

03 junho 2010

o 'impulso de Manu' e a Flotilha da Liberdade

 
O 'impulso de Manu'
e a Flotilha da Liberdade

- compartilhando um [pre]sentimento pessoal -



Neste artigo se optou por dizer as coisas com a linguagem antroposófica - derivada da obra de Rudolf Steiner. Toda linguagem é um sistema de símbolos. As coisas mais relevantes têm uma realidade para lá dos símbolos, e portanto também poderiam ser ditas com outras linguagens, totalmente diversas. Há razões para termos escolhido esta, neste caso. Quais, seria uma discussão à parte, mas de relevância quase nula em comparação com a do que se quer dizer. Que toda atenção fique, portanto, com o que se quer dizer, não com o 'como'.
 
Não faz muito tempo tive a oportunidade de fazer a revisão e editoração da tradução que o amigo Gerard Bannwart fez do último livro de Bernard Lievegoed, "O Salvamento da Alma" - agora disponível no catálogo das Edições Micael, de Aracaju.
 
Consistindo de memórias e reflexões expressas oralmente quando o autor, literamente, já se encontrava mais próximo do além que do cotidiano terrestre atual, era inevitável que ele abandonasse aí a reserva quanto às dimensões esotéricas do seu pensamento - reserva de que fez uso em trabalhos como "Fases da Vida" ou "Desvendando o Crescimento", em que falava basicamente como um médico ou psicólogo "que sabe um pouco mais".
 
O tema principal de "O Salvamento da Alma" são as três correntes espirituais cuja atuação o autor vê como como decisivas no mundo de hoje, e ao mesmo tempo como componentes indispensáveis do movimento antroposófico, mutuamente complementares, se for para este chegar a efetivamente cumprir suas missões perante a humanidade. (Nunca é demais a ênfase em que essas correntes pertencem ao mundo, não a um movimento; um movimento pode ser melhor ou pior instrumento das atuações de correntes assim, ou até mesmo deixar de ser deixar, mas nunca contê-las).
 
Uma dessas correntes teria por missão tratar especialmente das questões do conhecer, da (auto)consciência do espirito - e seria liderada (digamos assim) pela individualidade espiritual que se manifestou em Rudolf Steiner. Outra tem a ver sobretudo com a elaboração da matéria pelo espírito, envolvendo p.ex. - entre outras áreas - a farmacologia e a agricultura, e seria liderada pela individualidade conhecida como Christian Rosenkreuz.
 
Como se vê, em termos antroposóficos temos aí caminhos ligados prioritária e respectivamente ao Pensar e ao Querer. E o caminho do Sentir? Lievegoed o vincula à individualidade de Manu/Menes/Mani, da qual Rudolf Steiner teria dito possuir um grau espiritual de longe superior ao dele próprio e ao de Christian Rosenkreuz. Isso é bem compreensível pelo fato de esse caminho - o do Coração - ser responsável não só por si mesmo como também pela integração do conjunto dos três. (Parêntesis meu: o que foi expresso em termos de Filosofia, de modo independente, como "a Lógica do Terceiro Incluído", pelo filósofo rumeno Stéphane Lupasco, nas décadas de 30 a 60 do século passado).
 
A atuação principal da corrente de Manu seria a restauração, manutenção e desenvolvimento da capacidade de vínculo, solidadriedade e cooperação, sem a qual os seres que somos permanecem no nível do animal; sequer se efetivam como humanos. (Idem: outra percepção de Rudolf Steiner que foi amplamente reafirmada por pensadores e pesquisadores do século XX, entre eles o russo Vygotsky e o brasileiro Paulo Freire, e mais recentemente pela neurociência).
 
O impulso de Manu estaria presente em todas iniciativas das pessoas comuns de se ajudarem mutuamente, sem esperar soluções do Estado e sem interesses comerciais - mas não me cabe desenvolver isso em detalhes aqui: para tanto é melhor ir direto ao livro de Lievegoed.
 
Daqui para frente saio dos parênteses e assumo a frente do discurso pessoalmente: Neste momento o organismo-humanidade inteiro vem sofrendo direta e indiretamente (no sentido do agravamento de riscos) as conseqüências da defesa inadequada de uma causa inicialmente justa, porém que enveredou pelo pecado de considerar que alguns humanos são mais humanos que os outros.
 
Há poucos dias entrei em contato pela primeira vez com as reflexões de Gandhi (um óbvio representante da corrente de Manu) sobre a problemática judaica - e é impressionante como já nos anos 30 ele apontava que o encaminhamento dado à questão pelo movimento sionista estava levando a atos "que não podem ser justificados por nenhum código de conduta moral", a "crimes contra a humanidade", a "afundar em brutalidade". (Alguns trechos estão disponíveis em português, em tradução minha, em http://bit.ly/c6aEet ; a coletânea de todos esses textos em inglês se encontra em http://bit.ly/dw9PuG ).
 
Mas ainda hoje quem se limita ao que vê na grande imprensa, sem se dar o trabalho de pesquisar em fontes suficientemente sérias e isentas, dificilmente imagina que seja tamanha a lista de atrocidades cometidas pelos governos de Israel desde a criação do país - e ainda antes pelos ativistas sionistas -, e que o grau de violência empregado, e o número de vítimas tanto fatais quanto 'meramente' reduzidas à miséria, é da ordem de dezenas de vezes tudo o que os vizinhos árabes já tenham feito contra Israel ou contra judeus, se não de centenas. (E, por favor, não diga que não antes de pesquisar!)
 
Somente mais algumas linhas de contextualização para o que vou dizer depois: atualmente 1 milhão e meio de pessoas vivem na faixa de Gaza em condições de campo de concentração. Conseguiu-se reconstruir, e precariamente, no máximo 1/4 do que foi destruído pelos bombardeios de 2008 - e que havia sido quase tudo . Israel não deixa entrar cimento - nem lâmpadas, velas, fósforos, livros, instrumentos musicais, giz de cera (!), roupas, sapatos, colchões, lençóis, cobertores, chá, café, chocolate, xampu. Comida e medicamentos básicos são de longe insuficientes. Assistência médica depende de conseguir um lugar na cota fixa dos que se deixa sair para isso, e muitos morrem sem conseguir. 
 
A ONU já emitiu incontáveis ordens de levantar o bloqueio e é sumariamente ignorada. E 'razões de Estado' pareceram impedir até agora que qualquer governo se atreva a tomar medidas enérgicas contra essa e inúmeras outra violações dos acordos internacionais em vigor - se é que isso não se deve ao simples fato de Israel ter construído entre 100 e 200 bombas nucleares enquanto insistia em que ninguém mais pode tê-las.
 
No meio disso, 750 civis enchem seis navios com comida, medicamentos, cimento, roupas, e até brinquedos, e partem desarmados para Gaza.
 
Nem preciso relatar aqui que os barcos foram invadidos na escuridão das 4 e meia da manhã em águas internacionais, e seus tripulantes levados à força para Israel - país a que nem pretendiam chegar, pois Gaza oficialmente não faz parte dele.
 
Porém o que mais me impressionou em toda a seqüência dos fatos foi a recepção que os integrantes da flotilha tiveram depois, nos locais para onde foram "deportados" do país para onde tinham sido levados à força: na fronteira da Jordânia uma multidão começou a se formar dez horas antes da chegada dos ônibus; quando estes chegaram, seus passageiros foram recebidos entre festas e cantos e aclamados como heróis. Coisas semelhantes - mesmo se com ar menos 'interiorano' - se deram nos aeroportos da Turquia e da Grécia.
 
Motivado por sentimentos anti-Israel ou anti-judeus?

Não: olhem as fotos, olhem as caras: pelo menos nesses momentos, não existe um só rosto anti nada, só pró: pró uns aos outros, pró humanidade, pró restauração na crença de que podemos agir movidos pela compaixão e solidariedade até o nível do heroísmo, a despeito das razões de Estado e dos interesses econômicos. Um momento de emocionanete reencontro da humanidade com o melhor de si mesma, cujo impulso precisa ser percebido, captado, haurido, amplificado dentro de nós e devolvido ao mundo multiplicado milhares, milhões de vezes. Pois dificilmente se encontrará resposta melhor aos ataques tanto do poder-por-interesse-em-vantagens-concretas (Áriman) quanto do poder-pelo-gosto-do-poder (Lúcifer).
 
Estarei fantasiando quanto à nobreza de sentimentos de palestinos e jordanianos? Dou a palavra a Hedy Eppstein, 85 anos, judia cuja família toda pereceu em Auschwitz e que escapou da Alemanha nazista por pouco - e militante pela causa palestina desde 1982. Hedy já esteve cinco vezes na Cisordânia desde 2003 "para ver de perto o que estava acontecendo". "Muitos me diziam para ter cuidado, que como judia corria riscos nos territórios palestinos, mas a verdade é que os palestinos abriram suas casas e seus corações para mim, e até me protegeram do perigo, o qual veio do outro lado: o governo israelense."

Hedy está em sua terceira tentativa de chegar a Gaza, inclusive participando de uma caminhada através do deserto. Tentou embarcar na Flotilha da Liberdade em Chipre; como não conseguiu, pretende se juntar ao barco irlandês que, apesar de todo o acontecido, segue neste momento o mesmo trajeto da Flotilha da Liberdade, levando entre outros a Nobel da Paz Mairead Maguire. Consta, aliás, que diversos outros barcos estão se preparando para fazer o mesmo.
As fotos no início do artigo são de Hedy Eppstein, sobre a qual se encontram algumas informações adicionais em http://bit.ly/bS2Rt6 , e de Iara Lee, documentarista brasileira filha de coreanos e radicada em Nova York, que resolveu participar da Flotilha da Liberdade pelas razões que expôs em http://bit.ly/bTjJd4 . Seu relato depois do acontecido se encontra em http://bit.ly/dtONsA .
 
E agora deixo o assunto com vocês!
 
São Paulo, dia de Corpus Christi de 2010
................................................................
Ralf Rickli • arte em idéias, palavras & educação
http://ralf.r.tropis.org • (11) 8552-4506 • S.Paulo