Adam Smith e Marx dialogam sobre o desmonte do capitalismo financeiro
"O que aconteceu nos últimos 30 anos no mundo vai contra tudo o que tu e eu, como economistas e como filósofos morais, queríamos", diz Adam Smith a Karl Marx", num diálogo imaginado pelo professor Antoni Domènech, professor de Filosofia da Universidade de Barcelona. No diálogo, eles conversam sobre a situação do capitalismo, defendem a atividade econômica geradora de riqueza e criticam os parasitas rentistas que buscam o lucro a qualquer preço.
Antoni Domènech - revista Sin Permiso
O professor Antoni Domènech, catedrático de Filosofia Moral na  Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade de Barcelona e editor da  revista SinPermiso, produziu um diálogo fictício entre Adam Smith e Karl Marx  sobre a crise atual do capitalismo.
Karl Marx: Viste, velho, que  esse menino, Joseph Stiglitz, anda dizendo por aí que o colapso de Wall Street  equivale à queda do Muro de Berlim e do socialismo real?
Adam  Smith: Não é para ficar contente, nem eu nem tu. E tu, menos ainda que eu,  Carlos. 
Karl Marx: Cara, por conta do suicídio do capitalismo  financeiro, meu nome voltou a estar na moda; meus livros, segundo informa o  The Guardian, se esgotam. Até os mais conservadores, como o ministro das  finanças da Alemanha, reconhecem que em minha teoria econômica há algo que ainda  vale à pena levar em conta...
Adam Smith: Não me venhas agora com  vaidades acadêmicas mesquinhas post mortem, Carlinhos, já que em vida  jamais te abandonaste a esse tipo de coisa. Eu falo num sentido mais  fundamental, mais político. Nenhum dos dois pode estar contente e, te repito, tu  menos ainda que eu. 
Karl Marx: Sim, e aí?
Adam  Smith: O "socialismo real" que se construiu em teu nome e não tinha nada a  ver contigo. Pelo menos tu, sim, te identificaste como "socialista". Eu, por  outro lado, nem sequer jamais chamei a mim mesmo de "liberal"! Isso de  "liberalismo" é uma coisa do século XIX (a palavra, como tu sabes, foi inventada  pelos espanhóis em 1812), e vão e a atribuem a mim, um cara que morreu  oportunamente em 1793. É ridículo!Como isso foi me acontecer?
Karl  Marx: Já vejo por onde estás indo. Queres dizer que nem a queda do Muro de  Berlim nem o colapso do capitalismo financeiro em 2008 têm muito a ver nem  contigo nem comigo, mas que, ainda assim, nos jogam as responsabilidades?  
Adam Smith: Exatamente. Mas em teu caso é pior, Carlos. Porque  tu, sim, te disseste socialista. A mim pouco importa o "liberalismo", qualquer  liberalismo. Não há o que explicar a ti, precisamente um de meus discípulos mais  inteligentes, que nem minha teoria econômica nem minha filosofia moral tinham  nada a ver com o tipo de ciência econômica, positiva e normativa, que começou a  impor-se nos teus últimos anos de vida, isso a que tu ainda chegaste a chamar  "economia vulgar" e que tanto agradou aos liberais de tipo decimonônico.  
Karl Marx: Claro, tu e eu ainda fomos clássicos. Depois veio essa  caterva vulgar de neoclássicos, incapazes de distinguir qualquer coisa.  
Adam Smith: Por exemplo, entre atividades produtivas e  improdutivas, entre atividades que geram valor e riqueza tangível e atividades  econômicas que se limitam a obter rendas não resultantes de trabalho (rendas  derivadas da propriedade de bens imóveis, rendas derivadas dos patrimônios  financeiros, rendas resultantes de operações em mercados não-livres, monopólicos  ou oligopólicos). Nunca deixou de me impressionar a agudeza com que elaboraste  criticamente algumas dessas minhas distinções, por exemplo, nas teorias da  mais-valia. 
Karl Marx: É evidente. Tu falaste repetidas vezes da  necessidade imperiosa de intervir publicamente em favor da atividade econômica  produtiva. Isso é o que para ti significava "mercado livre"; nada a ver com o  imperativo de paralisia pública dos liberais e dos economistas vulgares,  incapazes de distinguir entre atividade econômica geradora de riqueza e  atividade parasitária visando ao lucro. 
Adam Smith: Em meu  mercado livre os lucros das empresas verdadeiramente competitivas e produtivas e  os salários dos trabalhadores dessas empresas nem sequer teriam que ser  tributados. Em troca, para manter um mercado livre no sentido em que defendo, os  governos deveriam matar de impostos os lucros imobiliários, financeiros e todas  as rendas monopólicas... 
Karl Marx: Quer dizer, a tudo o que,  depois de terem dado a mim por morto, e em teu nome, Adam, em teu nome!, se fez  com que deixassem de pagar impostos nos últimos 25 anos. Haja  saco!
Adam Smith: Haja saco, Carlos! Porque o que eu disse é que  uma economia verdadeiramente livre, na medida em que estimulasse a riqueza  tangível podia gerar - graças, entre outras coisas, a um tratamento fiscal  agressivo do parasitismo rentista e da pseudo-riqueza intangível - amplos  recursos públicos que poderiam ser destinados a serviços sociais, à promoção da  arte e da ciência básica  que é, como a arte, incompatível com o lucro privado  -, a estabelecer uma renda básica universal e incondicional de cidadania, como  queria meu conterrâneo Tom Paine, etc. Vês, já, Carlos: eu, que não passei de um  modesto republicano whig (1) de meu tempo, agora, se quatro preguiçosos,  ainda que ignorantes, professorzinhos não me falseassem, e se lessem com  conhecimento histórico de causa, até poderia passar por um perigosíssimo  socialista dos teus. E te direi, e há de ficar entre nós, que, considerando o  que temos visto, a tua companhia resulta bastante grata a mim...
Karl  Marx: Na realidade, todo o teu conhecimento, como o de tantos republicanos  atlânticos de tua geração, foi posto a serviço do princípio enunciado pelo  grande florentino mal-afamado, a saber: que a liberdade republicana não pode  florescer em nenhum povo que consinta com a aparição de magnatas e senhores  [gentilhuomini], capazes de desafiar a república. E só assim se vê como a  falsificação, em teu caso, é pior que no meu: o "socialismo real" abusou  aberrantemente da palavra "socialismo", dando cabimento ao regozijo de meus  inimigos; mas tu nem chegaste a te inteirar sobre o que era esse tal de  "liberalismo"!
Adam Smith: Quem não se consola é porque não quer,  Carlos. O certo é que o que aconteceu nos últimos 30 anos no mundo vai contra  tudo o que tu e eu, como economistas e como filósofos morais, queríamos. Olha  esses pobres espanhóis, inventores do termo "liberalismo". A ti e a mim  importava sobretudo a distribuição funcional do produto social (isso a que agora  tratam como PIB): pois bem, a proporção da massa salarial em relação ao PIB não  parou de baixar, na Espanha, e seguiu baixando inclusive depois que o partido  até há muito pouco tempo se dizia marxista voltou a assumir o governo em 2004...  
Karl Marx: Sim, sim, um horror...Mas é que quando esses meninos  supostamente me abandonaram por ti e passaram a se chamar "social-liberais" no  começo dos anos 80, o que fizeram foi uma coisa que também teria te deixado de  cabelo em pé. Observa que não só retrocedeu a proporção da massa salarial em  relação ao PIB, senão que, na Espanha do pelotazo (2) e do  enrichisez-vous (3) de Felipe González, o mesmo que na Argentina  da "pizza e do champanhe" de Menem e em quase todo o mundo, os lucros  empresariais propriamente ditos também começaram a retroceder também em relação  aos rendimentos imobiliários, financeiros e as rendas monopólicas, no  PIB...
Adam Smith: Como nos arrebentaram, Carlos!
Karl  Marx: Não te desesperes, Adam. A história é caprichosa e, quem sabe seja  melhor, agora, que comecem a nos levar a sério. Observa que acabaram de dar o  Prêmio Nobel a um menino bem danado, que há anos estuda a competição monopólica  e resgata Chamberlain e Keynes, esses caras que ao menos se esforçaram para nos  entender, a ti e a mim, nos anos 30 do século XX, e que queriam promover a  "eutanásia do rentista"...
Adam Smith: - Eu fui um republicano  whig bastante cético, Carlos. Não vivi o movimento dos trabalhadores dos  séculos XIX e XX e a epopéia de sua luta pela democracia. Não posso entregar-me  tão facilmente ao Princípio Esperança (4) daquele famoso discípulo teu,  agora, certamente, quase esquecido. 
Tradução: Katarina  Peixoto
Notas
(1) O Whig Party era o  partido que reunia as tendências liberais no Reino Unido e se contrapunha ao  Tory Party, dos conservadores. Whig (ou Whigs) é uma expressão de origem popular  que se tornou termo corrente na designação do partido liberal no Reino Unido.  Esta corrente contribuiu para a formação do atual Partido Democrata Liberal   Liberal Democrats. Também está presente em algumas vertentes do Partido  Trabalhista inglês-Labour Party. É profundamente relacionado ao protestantismo  calvinista, na sua forma presbiteriana, das sociedades escocesa inglesa. Tem  origem nas forças políticas escocesas e inglesas que lutaram a favor de um  regime parlamentar protestante: o Whig Party.
O Whig Party foi um dos  partidos mais influentes no sistema parlamentar britânico até o fim da Primeira  Guerra Mundial, alternando com os Tories na formação do governo britânico.  Depois da Primeira Guerra, o partido perdeu importância e foi praticamente  substituído pelo partido trabalhista (Labour Party) na alternância do poder  político no Reino Unido com os  Tories.
(http://pt.wikipedia.org/wiki/Partido_Whig_(Reino_Unido)  N.deT.
(2) A cultura do pelotazo, na Espanha, refere-se ao  enriquecimento rápido e sem esforço. 
(3) Expressão  atribuída historicamente a uma suposta afirmação do historiador e político  francês François Guizot (1787-1874). Num contexto de restauração de forças  conservadoras no poder francês, teria Guizot, segundo consta na tradição do  anedotário político, expressado seu entendimento da agenda revolucionária de  1789. Consta que, logo após ter assumido a chefia efetiva do governo, por volta  de 1840, ele pronunciou: "Esclareçam-se, enriqueçam, melhorem a condição moral e  material da nossa França". Para outros, Guizot disse isto: "Enriqueçam para o  trabalho e para a indulgência e serão eleitores", respondendo aos detratores do  voto censitário. A expressão passou então a ser usada como descrição de um  comportamento cínico e privatista, como parece ser o caso nesse diálogo.  N.deT.
(4) O Princípio Esperança (editado no Brasil pela  Contraponto) é o trabalho mais famoso de Ernst Bloch, de 1959. Sobre Bloch, são  dignas de reprodução as seguintes considerações de Michael Löwy: "Teólogo da  revolução" e filósofo da esperança, amigo de juventude de Lukács e Walter  Benjamin, Ernst Bloch designa a si próprio como um pensador romântico  revolucionário. Nascido na cidade industrial de Ludwigschafen, sede da IG Farben  (Importante Empresa Química), olhava com espanto e admiração a cidade vizinha,  Manheim, velho centro cultural e religioso; como dirá mais tarde numa entrevista  autobiográfica, esse contraste entre "a aparência feia, despida e sem delicadeza  do capitalismo tardio" - símbolo do "caráter-de-estação-de-trens"  (Bahnfof-shaftigkeit) de nossa vida moderna e a antiga cidade do outro lado do  Reno, símbolo da "mais radiante história medieval" e do "Santo Império Romano  Germânico", deixou uma profunda marca em seu espírito.
Leitor entusiasta  de Schelling desde a adolescência, aluno do sociólogo neo-romântico (judeu)  Georg Simmel, em Berlim, Bloch irá participar durante alguns anos (com Lukács)  do Círculo Max Weber de Heidelberg, um dos principais núcleos do romantismo  anticapitalista nos meios universitários alemães. Testemunhos da época o  descrevem como um "judeu apocalíptico catolicizante", ou como "um novo filósofo  judeu..." que se acreditava, com toda evidência, precursor de um novo Messias./  Por essa época (1910-17), havia uma profunda comunhão espiritual entre Bloch e  Lukács, de que é possível acompanhar os vestígios em seus primeiros escritos.  Segundo Bloch (na entrevista que me concedeu em 1974), "éramos como vasos  comunicantes; a água encontrava-se sempre à mesma altura nas duas colunas". Foi  graças a Lukács que ele se iniciou no universo religioso de Mestre Eckhart,  Kierkegaard e Dostoiévski  três fontes decisivas para sua evolução espirital.  "In: Redenção e Utopia: o judaísmo libertário na Europa central (Um estudo de  afinidade eletiva)". Trad. Paulo Neves, São Paulo, SP, Companhia das Letras,  1989, p. 120). N. de T.
Ralf Rickli  arte em idéias, palavras & educação
http://ralf.r.tropis.org  (11) 8552-4506
